Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em Londres com Ivan Lessa

Convivi cinco anos com Ivan Lessa, a partir de 1986. Trabalhamos no Serviço Brasileiro da BBC, na Bush House, no centro de Londres. Quando cheguei, Ivan estava lá havia quase vinte anos. Dizia que nunca voltaria ao Bananão, como chamava o Brasil, mas o país nunca o deixou.

Vimo-nos poucas vezes desde que voltei, em 1991. Mas ele estava sempre por perto, na memória e na estante de long-plays. Naquele final dos anos 80, Ivan estava trocando sua coleção de vinil pelos modernos CDs, e eu fui o feliz depositário das bolachas que ele descartava aos poucos.

O disco nunca vinha sozinho. Havia quase sempre um bilhete, em que ele sugeria os trechos para prestar mais atenção, um solo, um fraseado, um verso. Foi assim que ouvi pela primeira vez Mel Tormé, Billy Eckstine e tantos outros. Ninguém conhecia mais a música popular americana do que ele.

Ivan não era dado a solenidades. Chegava à Redação no final da manhã para gravar seus programas de rádio, que mais tarde seriam transmitidos em ondas curtas. Num saquinho de plástico trazia as raridades e as deixava num escaninho em meu nome.

Não perdia a chance de me gozar. Junto com um dos primeiros LPs, um bilhete bem ao seu estilo: “Ao amigo Oscar, com a admiração do Zé Antônio”. E o pior foi que, sem decifrar o garrancho, eu caí.

Ivan não perdoava. Certa vez caçoou um amigo – que se tornaria cronista famoso e polêmico – que lhe disse ter assobiado determinada harmonia. Pois o amigo então não sabia de que se trata de uma impossibilidade física? Como é possível alguém assobiar, ao mesmo tempo, pelo menos três notas, que é o que se precisa para formar uma harmonia? Pelo menos o amigo aprendeu a diferença entre harmonia e melodia.

Outra faixa

Trabalhar com o Ivan era sobretudo divertido. Fiz muitas transmissões ao vivo com ele. Nas duplas, ele era quase sempre o segundo apresentador, condição que lhe dava mais liberdade. O âncora, por assim dizer, tinha a responsabilidade de produzir a transmissão e de encerrá-la na hora exata, com poucos segundos de tolerância. Se passasse da hora, o programa era cortado abruptamente; se terminasse antes, entrava um sinal eletrônico para ocupar a frequência, o que gerava reprimendas das instâncias superiores. Pois não é que nos momentos finais da transmissão, quando eu estava com um olho no ponteiro de segundos e o outro no script, Ivan se punha na frente do relógio a fazer caretas!

Quando o conheci ele era assim, uma criança de quase 60 anos. Era também uma referência para os jornalistas da geração anterior. Afinal, era o cara que tinha feito o Pasquim – o grande ícone da resistência irreverente à ditadura militar –, a figura mais respeitada pelos humoristas mais sofisticados que hoje escrevem em jornais e se apresentam na TV.

Ao saber de sua morte, fui ouvir Eckstine. Serenade in Blues me deixou triste. O Ivan certamente teria pensado alguma brincadeira para me tirar dessa, teria sugerido mudar de faixa, quem sabe Without a Song? Mas, Ivan, o disco todo é tão triste. Ou talvez não seja o disco, porque hoje até uma marcha carnavalesca soaria, para mim, em tom menor. Acho que vou reler suas crônicas – é lá que você está, e na minha memória.

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[Oscar Pilagallo é jornalista, autor de História da Imprensa Paulista]