Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Osvaldo Martins

‘Há mais de um mês está em pauta o debate sobre o decreto nº 5.396, de 16 de março, o qual estabelece regras para a veiculação de publicidade em emissoras de televisão públicas, educativas e culturais. Tal decreto alcança apenas as TVs geridas por ‘organização social’, figura jurídica que só se aplica à TVE, do Rio de Janeiro. Todas as demais, inclusive a TV Cultura, permanecem perdidas no emaranhado da caótica legislação brasileira, em grande parte em desacordo com a lei maior, a Constituição Federal, em vigor desde 1988.

A natureza casuística do decreto torna-o inaplicável. Cogita-se da emissão de um novo decreto para estender as normas do atual a todas as demais emissoras. Isso tampouco resolve a questão, dada a enorme quantidade de preceitos legais, muitos deles conflitantes entre si, que ainda regulamentam o setor. A solução definitiva seria a votação da Lei Geral de Comunicação há anos parada no Congresso Nacional.

Enquanto a solução definitiva não vem, a cada novo episódio – como o tal decreto – a discussão sobre o tema reaquece sobre o fogo dos argumentos pró e contra a publicidade na TV não comercial. Foi o que aconteceu no último fim de semana, com a publicação de reportagem da Gazeta Mercantil sob o título ‘Publicidade liberada’.

Ouvido pela GM, o respeitado professor Laurindo Leal Filho, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP tem razão ao afirmar que ‘… no Brasil o Estado vem se desobrigando (do dever) de fomentar a área cultural, transferindo para o setor privado essa atribuição’. O professor levanta porém uma hipótese discutível: a de que ‘a inserção publicitária tende a tornar a grade de programação mais emocional e, portanto, menos reflexiva’. E completa: ‘O risco é que esse ritmo da emoção contamine os programas’.

Já que o próprio professor fez duas ressalvas, ao empregar os vocábulos ‘tende’ e ‘risco’, pode-se perfeitamente usar os mesmos argumentos para defender idéia oposta. No caso da TV Cultura, não tende – e o risco, aparentemente, não existe. Um outro raciocínio do professor da ECA remete ao exemplo da mais conceituada TV pública do mundo, a BBC, que não veicula publicidade. Sua receita provém da contribuição compulsória de todos os britânicos que têm aparelho de TV em casa (99%) de equivalentes 600 reais por ano, o que garante à emissora uma receita de R$ 3 bilhões (só para comparar, a receita da TV Cultura é 30 vezes menor, em torno de R$ 100 milhões/ano).

Acontece que a BBC é a TV pública do Reino Unido, uma das economias mais desenvolvidas do mundo, onde não há miséria e a renda per capita é altíssima. Lá, os serviços de saúde, de educação e de transporte públicos têm o mesmo nível de excelência da famosa TV. O exemplo não vale para cá. Aqui em São Paulo, há dez anos ensaiou-se algo parecido, a cobrança de uma taxa pró-TV Cultura de 5 reais nas contas de luz acima de 30 reais. Foi um escândalo e a idéia morreu soterrada por uma avalanche de críticas indignadas da imprensa. É impossível, no Brasil – onde a carga tributária já consome 36% do PIB –, propor qualquer nova contribuição que onere o combalido orçamento da família brasileira.

Os intelectuais brasileiros prestariam um grande serviço ao país se pusessem suas privilegiadas cabeças a serviço de soluções viáveis para a nossa dura realidade, em vez de viajar pelos confortáveis domínios das utopias.

Para completar, o professor lembra que a BBC é orientada por um conselho de cidadãos, o que garante a sua independência. Isso já existe aqui. O Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, por exemplo, é composto por 45 membros: 3 vitalícios, 20 natos (que representam entidades culturais, incluindo reitores de cinco universidades), 21 eletivos, também recrutados na sociedade civil, e um representante dos funcionários.

Independência é o que não falta à TV Cultura. O Governo do Estado de São Paulo, que garante cerca de 80% das receitas da emissora, não exerce sobre ela qualquer interferência. Tampouco os anunciantes ou instituições para as quais a Cultura presta serviços. Mesmo assim, o ideal é que o setor público como um todo (nas esferas municipal, estadual e federal) contribuísse com 50% das receitas, mas a Prefeitura de São Paulo e o Governo Federal nunca destinaram 1 mísero real à nossa TV pública.

Com os restantes 50% da receita captados no setor privado (publicidade e prestação de serviços), o perfil da Cultura ficaria mais próximo daquilo que se entende por TV pública e mais distante do antigo conceito de TV estatal. Não concordo com a tese de que a publicidade tenda a contaminar os conteúdos da programação. Pelo contrário. Creio que o crescimento da receita publicitária permite, sim, a melhoria da qualidade técnica e da qualidade dos programas. Televisão é uma atividade cara, que consome muito dinheiro. Importante é saber usá-lo em benefício da finalidade da TV pública, que é a difusão do conhecimento e conseqüente promoção da cidadania. O resto são fantasmas e preconceitos.’