Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Ferreira dos Santos

‘Hoje os amigos do Lula vêm, politicamente corretos, tirar a nega maluca, o barbeiro e o veado da nossa boca. Se ninguém tivesse falado nada, se ficássemos no estupor costumeiro, filhos que somos dos cabeças-chatas e paneleiros, amanhã esses burocratas comunistas que querem legislar até sobre o que nos vai na língua, eles viriam novamente na surdina, achando que somos todos surdos e ceguinhos como um personagem qualquer do Marcos Frota na novela das nove. Eles viriam ao estilo cigano, traiçoeiros, e proibiriam outra bobagem qualquer a pretexto do que acham bons modos. Na falta do que fazer, depois da cartilha que lançaram semana passada condenando o uso de expressões preconceituosas como ‘farinha do mesmo saco’ e ‘mulher ao volante perigo constante’, a nova polícia da língua poderia se invocar, por exemplo, com nossos prolegômenos e circunlóquios. Achariam que são palavras compridas demais. Esticam a conversa quando são servidas com ovo colorido no balcão semântico. Que se prendam essas desocupadas no dicionário. Elas não deixam o país ir direto ao assunto. Recolham as malfeitoras dos botequins.

João Ubaldo Ribeiro fez bem em rodar a baiana e judiar dessa versão barbuda da irmã Paula, bando de João Sem Braço querendo fazer caridade com a ignorância alheia. Retardados. Não passarão. O baiano Ubaldo pegou seu coco e dele não fez uma cocada como é de costume entre os conterrâneos. Bateu um e-mail veemente e armou uma baianada daquelas. Fê-lo bem, meu preto. Esses caucasianos de meia-tigela não sabem que baiano burro nasce morto. Daqui, branquelo azedo que sou, junto-me aos seus reclames e deixo claro. Já que a economia de Estado fracassou, esses funcionários públicos do PT querem estatizar a língua. Bando de palhaços. Anões intelectuais. Baitolas, boiolas, rabiolas, beiçolas de neguim. Deviam gastar papel para encher a buraqueira das estradas, a cama dos hospitais, enrolar um e dar aquele tapa na beata que eles não sabem se fumam, se desberlotam ou mandam a carola de volta para a igreja.

Eu poderia aproveitar o ridículo em curso e, dando uma de caipira, sempre com o mesmo papo-perneta, reclamar mais uma vez dos maus-tratos a que meu nome tem sido submetido nas conversas de botequim. Poderia pedir à Secretaria Especial de Direitos Humanos do PT que baixasse portaria enérgica também contra quem use o nome de Joaquim para ilustrar piada de português. Prendam-se os Cassetas, tudo pinel. Se as maiores autoridades da nação pedem que não se chame pobre de ladrão, nem mulher bigoduda de sapatão, aos Joaquins cabe o direito de não se deixarem generalizar, muito menos marechalizar , como sinônimo de dono de armazém. Português é a vovozinha, essa outra coitada que vive reclamando da discriminação vernacular, mas sabe que isso não é caso de polícia nem de orientação governamental. Com mil macacos e grafites! Aqui ó! Banana pra vocês, seus roceiros! O gilete e seu amiguinho, o barca da Cantareira, não são mais vítimas do preconceito verbal do que ninguém.

Lula começou a entrevista coletiva de dias atrás falando da ‘principalidade’ de sua pauta governamental. A palavra teria a ver com um suposto verbo ‘principializar’, uma dessas excrescências terminadas em ‘lizar’ (confidencializar, potencializar) que acometem a língua a partir do cruzamento do telemarketing com livros mal traduzidos de administração e a falta de cultura que grassa. Coisa de bebum . Se me fosse dado o poder de uma cartilha de bom-tom, eu proibiria, para principializar , o tal. Lula, novo-rico, quer falar difícil e riscar da memória a cerveja barriguda e o palavreado das fábricas. Babau. Vivaldino de araque. Melhor quando só reclamava da carestia. Qualquer dia proíbe o país de alcunhar por bagulho a mulher feia que passa. Por que não, sugerirá de dentro de seus novos ternos engomados, chamá-la senhora cosmeticamente diferente?

Nunca estivemos tão burros, outra palavrinha proibida, e não nos é de culpa. Somos uns aleijados verbais. Um país é feito de homens e livros, como diz o clichê dos entendidos. Pela cartilha do politicamente correto sabe-se agora que não só não há carecas entre nós (temos seres capilarmente prejudicados), como também desconhecemos turcos, macumbeiros, cancerosos e loucos. Tá russo. Não é só para a mulher de vida fácil. Não tá fácil pra ninguém. Faltam homens que tratem de suas funções e, vê-se agora, livros de gramática que contem aos governantes a necessidade cívica de incorporar todas as expressões, inclusive as malditas, que expressam o nosso preconceito.

Lula não deve ter lido, mas fez sua a frase de Rubem Fonseca: ‘Nada temos a temer, exceto as palavras’. Elas aprontam, meu nego. Dinâmicas, dão nos nervos de quem tenta segurá-las com portarias de gabinete. São todas da pá virada, como essas que o governo agora quer proibir que se digam. Umas vadias, desocupadas, fanáticas, Maria vai com as outras, todas de classe baixa e malandras. Não há regimento interno, decreto-lei ou cartilha que monte na lambreta das bichinhas.

No país dos governantes com a língua presa, eu tenho como filosofia de vida o que me ensinou o flanelinha do Canecão: ‘Deixa solto, doutor’. Sugiro o mesmo a todos que, nostálgicos da ditadura dos gorilas, querem colocar ordem de comando militar e apertar o corretivo no cabresto da língua. Ela só dá branco quando a gente deixa de poder vituperar ao vento de outono os palavrões cabeludos de nossa raiva. É bom que o crioléu vibre a gíria da bandidagem-funk nos borogodós d’antanhos. Arrepie gostoso na quebrada dos anacolutos. Liberdade para as palavras, do pô ao paralelepípedo, do neologismo dos gringos ao cocoroca do academicismo. Da prosopopéia de Vossa Excelência ao caraca-mané da adolescente. O resto é expressão democrática, essa prática em desuso, samba que Jair Rodrigues cantou faz tempo e Lula esqueceu ainda agora. Deixa que digam, que pensem e que falem o que der na telha.’



Dora Kramer

‘Presidencialmente incorreto ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 8/05/05

‘Lula tem todos os motivos para se irritar com cartilha politicamente correta Todos os defeitos da cartilha politicamente correta editada pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos já foram nominados e, desta vez, nem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ficou de fora do bombardeio: chamou o chanceler da idéia às falas e mandou o secretário Nilmário Miranda recolher o manual à sua insignificância.

Perda de tempo, desperdício de dinheiro, ‘brainstorm’ de mentes opacas, manifestação de ânimo autoritário, macaquice de imitação, muito se falou a respeito da cartilha, cuja maior impropriedade talvez seja ter sido feita exatamente no governo de um presidente que é quase um monumento ao politicamente incorreto.

Portanto, seus auxiliares deveriam saber que o primeiro a se sentir tolhido e patrulhado seria o chefe.

Há, nestes dois anos de meio de governo, uma seleção de grande momentos da incorreção política protagonizados pelo presidente Lula.

Só para recordar, sem a pretensão de listar a todos e com a certeza de que muitos ficarão de fora por esquecimento, vamos a alguns inesquecíveis ‘hits’.

Em 2003, ano de entusiasmo e grande boa-vontade, não era de bom-tom apontar como gafe as impropriedades do presidente. Digamos então que ele tenha sido autêntico ao convocar os aposentados a ‘não ficarem em casa atrapalhando a família’ quando sancionou o Estatuto do Idoso.

No mesmo ano, em solenidade de sanção de lei referente à saúde mental, Lula foi franco ao demonstrar intimidade com o tema: ‘Falar de doença mental não deve ser difícil para ninguém, porque a dura realidade é que todos temos um pouco de louco dentro de nós. Quem não acreditar, é só fazer uma retrospectiva do seu comportamento nos últimos dez anos.’

Sensibilíssimo, em junho de 2003 o presidente recepcionou assim os ‘companheiros’ portadores de deficiência física: ‘Estou vendo o Arnaldo Godoy sentado, tentando me olhar, mas ele não pode me olhar porque ele é cego. Estou aqui à tua esquerda, viu, Arnaldo!’

‘Há males que vêm para o bem’, realmente, não foi a melhor frase que o presidente poderia dizer ao presidente da Rússia, Wladimir Putin, em agradecimento à ajuda recebida nas investigações sobre as causas do acidente na base de Alcântara em que morreram 19 pessoas.

Ainda da série meu pé esquerdo, cumpre selecionar um clássico perpetrado em encontro com atletas paraolímpicos: ‘Estou com uma dor no pé, mas não posso nem mancar para a imprensa não dizer que estou mancando porque estou num encontro de portadores de deficiência.’

Encontro a que estavam presentes atletas cujo objetivo era conquistar vagas para os jogos paraolímpicos a se realizarem em, de acordo com Lula, ‘Antenas’.

Na categoria igualdade de sexos o presidente da República estreou esquecendo a mulher, Marisa Letícia, dentro de um carro na Espanha e mostrou-se em forma perfeita num discurso no Rio Grande do Sul: ‘A galega engravidou logo no primeiro dia (de casamento) porque pernambucano não deixa por menos.’

De fato. Segundo ele, na Amazônia vivem ‘20 milhões de cidadãos’ que ‘têm’ mulheres e filhos. Portanto, não cidadãos, mas anexos.

Na área internacional, nada se compara ao modelo a África é pobre, mas é limpinha, expresso na frase dita na capital da Namíbia para desconforto do tradutor: ‘Estou surpreso porque, quem chega a Windhoek, não parece que está num país africano.’

A Índia também levou a sua ante o estupefato presidencial com a beleza do Taj Mahal: ‘Um país que constrói um monumento daquela magnitude tem tudo para ser mais desenvolvido do que é.’

Na Síria referiu-se ao ‘continente árabe’ até então desconhecido e ao presidente sírio, abstêmio por muçulmano, ergueu a taça em brinde ‘à felicidade’ de Al Assad que sentado estava, sentado ficou.

A propósito da recente reeleição de Tony Blair, vale relembrar a reunião de chefes de Estado em Londres em que Lula vaticinou ao primeiro-ministro: ‘Daqui a dois anos o Tony Blair nem estará aqui.’

Ao embaixador do Panamá no Brasil comunicou conhecer seu país ‘só de dormir’ e ao presidente da Costa Rica fez piada dizendo ter ido ao Gabão ‘aprender como é que um presidente consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição’.

Em Nova York fez desaparecer do mapa nossos 3 mil quilômetros de fronteira com a Bolívia e informou à platéia de empresários que o Brasil ‘só não faz fronteira com Chile, Equador e Bolívia’.

O qualificativo de ‘bando’ já o mereceram, nas expressões de Lula, os soldados, os generais, os jornalistas e os ex-presidentes, sendo os dois últimos ‘de covardes’.

Na área educacional, o presidente com franqueza revelou que aprendeu a contar até dez ‘apesar de só ter nove dedos’.

Poderia aprender até mais, não fosse a leitura algo muito parecido com a esteira ergométrica: ‘Dá uma preguiça desgramada, mas depois de uns 20 minutos a gente vê como é importante.’

Como se vê, a Secretaria de Direitos Humanos não entendeu o espírito da coisa.’



Jorge Bornhausen

‘O show de cada dia’, copyright Folha de S. Paulo, 9/05/05

‘O presidente prometeu tantas coisas e, na hora de realizar, nada. Segue fazendo piadas, como em um palanque perpétuo

Todos os dias, chova ou faça sol, há um ‘one man show’ no Palácio do Planalto. Os temas variam, mas a produção segue padrões altíssimos de custo, constroem-se cenários, mobilizam-se platéias sempre diferenciadas, ‘importadas’ do país inteiro, com passagem e hospedagem pagas. Diferentes guichês -pode ser o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o Banco do Nordeste, o Incra, o Ministério da Saúde etc.- vazam, de algum fundo público (geralmente via agência de publicidade, que este é o governo que mais paga contas de propaganda), o dinheiro indispensável para comprar o espetáculo.

No show de cada dia, o produtor ou serviço público que o patrocine deve oferecer, ‘a título de sugestão’, um texto, possivelmente escrito por ases da propaganda, para ser lido pelo presidente da República. É dinheiro perdido. Tudo indica que os textos jamais são utilizados, porque esse é o espaço de criatividade e expansão pessoal do ‘showman’, dono do palco e do picadeiro: o presidente Lula não abre mão do direito de executar seus números de histrionismo.

Nessa hora, o que parece é que ele não ouve ninguém. Conta lenda dos corredores do Congresso que, antes de partir para o primeiro andar do Palácio, onde encontra à sua espera platéia, microfones e câmeras, o presidente Lula, para acalmar os colaboradores, usa a seguinte frase: ‘Confiem no meu taco’.

Esses shows diários no Palácio do Planalto geram anedotas, chistes, inconveniências, gafes e as exclamações chulas com que o presidente da República está mantendo viva sua presença nos telejornais da TV e desenvolvendo o marketing da campanha para sua reeleição em 2006. Na minha atividade diuturna, ouvindo políticos e eleitores, impressiona-me a repercussão dessas aparições. O efeito eleitoral do presidente todo dia na TV é incomensurável e dificilmente será compensado por qualquer outro candidato.

Como presidente de um partido de oposição -oposição mesmo, sem conchavos ou negociações por debaixo do pano, claramente anunciada ainda em novembro de 2002, quando as urnas mal haviam sido apuradas e o PFL assumiu seu papel-, começo a avaliar que o tiro pode sair pela culatra: o show do presidente da República começa a expor seu lado populista, chulo e debochado. Perigosamente debochado, esse lado nada tem de simples, inocente ou ingênuo -atributos do homem comum.

Para muitos -e já ouvi observações nesse sentido-, Lula está, tanto repete suas impertinências, sugerindo que é assim que governa o país. O que a população espera dos governos não é isso. Governar é coisa séria, exige experiência acumulada, exige capacidade de administrar, exige conhecimento profundo da realidade do nosso povo.

O presidente prometeu tantas coisas e, na hora de realizar, nada. Segue fazendo piadas, como se estivesse em um palanque perpétuo. Por quê? Porque não há experiência, não há capacidade administrativa; ele não sabe como gerir o dinheiro do povo. Não passa pela sua cabeça a obrigação de devolver os recursos do povo na forma de obras públicas, de serviços públicos, de educação, de saúde, de transporte.

No episódio em que reclamou que o brasileiro não se levanta da cadeira para trocar de banco e experimentar menores tarifas e taxas de juros mais baixas, o presidente foi longe demais. Não apenas pela expressão chula que usou, anedótica, para ser explorada em piadas, mas por fazer pouco da grande maioria dos brasileiros. O presidente demonstrou desconhecimento dos obstáculos enfrentados pela maioria dos brasileiros e dos problemas enfrentados pelos empresários, num país em que o crédito é difícil, seletivo e submete o tomador às piores contingências.

Ele sugeriu, por ignorância, má-fé ou humor negro de ‘showman’ para despertar sua platéia, que os juros e as tarifas não refletem as variáveis da economia, mas dependem apenas do público, que deve acirrar a concorrência entre os bancos.

Não sei não, não sou profeta, mas sou político e estou na rua. Por isso, peço que anotem: esse número do ‘showman’ Lula pode ter sepultado definitivamente a reeleição do presidente Lula. Veremos em 2006.

Jorge Konder Bornhausen, 67, é senador pelo PFL-SC e presidente nacional do partido. Foi governador de Santa Catarina (1979-82) e ministro da Educação (governo Sarney) e da Secretaria de Governo da Presidência da República (governo Collor).’



Luís Peazê

‘Bucho de bode’, copyright Direto da Redação (www.diretodaredacao.com), 2/05/05

‘A mesmice é uma tendência da sociedade moderna que vive o paradoxo da reinvenção de si mesma para fugir da repetição. Tudo o que é diferente atrai o indivíduo, mas também o choca, pouco ou muito. Das instituições mais representativas, às classes de atores mais salientes a regra é a mesma. Para se manter em harmonia com o grupo, segue-se o fluxo da maioria, para se destacar faz-se algo diferente, desde que seja para o resto seguir, ou endeusar. Isso não tem nada a ver com bucho de bode, mas tentarei fazer com que tenha. Por ora, pense numa senhora faminta, esquelética, no sertão do nordeste.

Do governo Lula quem esperou que houvesse uma revolução para o trabalhador, deveria estar sonhando, pois mesmo na campanha eleitoral para presidente ele já avisava que nada iria mudar abruptamente. Houve quem acreditasse que Lula mentia, para inglês ver que não daria um cavalo-de-pau, mas daria. Não deu, e nunca vai dar. Parece ter pego o manche das mãos do seu antecessor em pleno vôo e, após dois terços de mandato, aterriza-o suavemente na pista. Sem derrubar um copo. E a única esperança que se tinha, logo nos primeiros dias de Lula no governo, era aquela frase que ele repetia, incrivelmente sem errar na semântica e concordância, mas que a imprensa, pelo menos, parece ter esquecido: ‘eu não posso errar’. Pois é o que ele tem feito mais assiduamente, um erro atrás do outro.

Na sua única entrevista coletiva para a imprensa, semana passada, ele respondeu, ‘posso ter errado’, a uma pergunta da repórter da TV Globo sobre suas derrotas na Câmara e no Senado, mas em seguida acrescentou ‘não sei se errei, só a história irá dizer’. Admitiu que queria ter reparado as estradas, e ainda não conseguiu. Admitiu que a reforma agrária não está indo na velocidade que ele queria. Retórica pouca é bobagem. Não admitiu mais nada, além de sofismar descaradamente quanto ao fato de o governo ter aumentado suas despesas extravagantemente, em detrimento de programas essenciais, a bolsa família, por exemplo. Aliás ninguém perguntou quando as três refeições chegarão indiscriminadamente à mesa de cada brasileiro, plataforma de sua campanha. Se alguém perguntasse talvez ele dissesse que ‘não errou’, apenas ainda não conseguiu fazer o que queria. Sofismou também quanto à questão dos juros altos e da forma como vem fazendo a manutenção da obscena dívida externa. Não dando oportunidade para os jornalistas replicarem suas respostas, inibiu qualquer questionamento consequente. No fim resumiu seu governo com a frase: ‘a inflação não pode voltar’, pois talvez ele visse o país pela ótica da fome (de poder) e descobriu o poder dos números. Parece que a história, para Lula, terá recomeçado a partir dessa entrevista, marco de início de campanha eleitoral para 2006. Não estranhe se o mote de campanha seja ‘quero reparar meus erros’, ou, ‘preciso de mais um tempinho’.

Só não vê quem não quer. Quem tiver coragem pegue um ônibus em Recife e vá até o Pará. Ou de Brasília vá até o Rio de Janeiro. Do Rio viaje a Belo Horizonte. De São Paulo vá até Porto Alegre. O Brasil parece um corpo carcomido pelas pessoas que se lhe habitam. Estradas precárias, abandono dos municípios, lixo, muito lixo espalhado nas vias públicas, construções pobres inacabadas, gente pateticamente ruidosa com os dentes à mostra, no meio de gente triste e sofrida, crianças perambulando pelas ruas no horário em que deveriam estar numa escola, escolas lúgubres para quem passa de longe, imagine de perto, bares vendendo cachaça e pratos de comida boiando em óleo saturado, higiene nenhuma, restaurantes improvisados e de serviço duvidoso, barro, poeira, animais vagueando no meio do comércio informal de tudo, de marcas famosas falsificadas à capinhas de celulares, a coqueluche da época de um povo quase todo mestiço, caboclo ou negro, macaqueando norte-americanos, esse é o verdadeiro Brasil, onde em quase tudo há sempre um toque de ilegalidade, do gato da luz elétrica à nota fiscal. A Avenida Paulista, a Visconde de Pirajá, a Mostardeiros, ou qualquer outra avenida famosa não é o Brasil, nessas avenidas não se come bucho de bode.

Não, o Brasil não é só isso. Talvez para mim e para você que está lendo a felicidade exista neste país, a diversão também, e como, assim como as necessidades básicas garantidas, e as mesmices da vida moderna. Mas somos tão poucos. E aquela senhora lavadeira nordestina que se alimentava apenas de bucho de bode, e morreu por insuficiência respiratória provocada por subnutrição, representante de milhões de brasileiros?

Enquanto a imprensa continuar curvada ao teatro de Lula, em quem mais confiar que as vísceras do Brasil ficarão todas expostas para a cura definitiva? (*) Escritor e jornalista. Tradutor de ‘Por quem os sinos dobram’, de E. Hemingway. Dirige a Clínica Literária (www.clinicaliteraria.com.br) e presidente o Instituto Brasil Costal, entidade de difusão das questões do meio ambiente marinho e costeiro.’



Comunique-se / EFE

‘RSF critica atitudes de Lula e denuncia 14 mortes na A. Latina’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 2/05/05

‘A organização Repórteres sem Fronteiras (RSF) denunciou nesta segunda-feira que no ano passado 14 jornalistas e colaboradores morreram durante o exercício da profissão na América Latina, dois deles no Brasil.

A RSF afirma que a morte de Samuel Román, no Mato Grosso do Sul, e de José Carlos Araújo, em Pernambuco, prova ‘que informar continua sendo um trabalho perigoso fora das grandes cidades’.

A organização também criticou duas atitudes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: a expulsão temporária do correspondente do The New York Times por chamar a atenção para a ‘preferência’ do presidente pelo álcool e o projeto de criar ‘conselhos de jornalismo’ para ‘orientar, disciplinar e controlar a profissão’.

O número de jornalistas mortos na América Latina em 2004 dobrou em relação ao ano anterior, mas no Brasil foi o mesmo em relação a 2003 e 2002.

A liberdade de imprensa é ‘inexistente em Cuba e regularmente desrespeitada na Colômbia’, afirma a RSF no relatório, que denuncia um ‘grande aumento’ da violência contra jornalistas no continente.

Três jornalistas foram assassinados no México, dois no Peru, Colômbia e Nicarágua e um no Haiti e República Dominicana – é preciso acrescentar a esse número a morte do motorista do diretor de uma televisão no Equador em um atentado contra o empresário.

O relatório dedica uma menção à parte a Cuba e afirma que o país continua sendo ‘um dos poucos do mundo onde a informação é monopólio do Estado’ e onde 22 jornalistas estão presos, o que faz da ilha a segunda maior prisão do mundo para jornalistas, situação só superada na China, onde 27 profissionais estão presos.

Nenhum jornalista tinha sido assassinado no México desde 1997, mas no ano passado três deles foram vítimas dos traficantes de drogas que atuam na fronteira com os Estados Unidos.

Não por acaso a revista Zeta, editada em Tijuana, recebeu o prêmio anual da RSF ‘pela qualidade das investigações e pela linha editorial corajosa’, mostrada em suas investigações sobre o tráfico.

Um dos jornalistas da revista, Francisco Javier Ortiz Franco, foi morto em junho de 2004.

Outros dois repórteres do país, Francisco Arratia Saldierna e Gregorio Rodríguez Hernández, também foram assassinados por exercer a profissão, e a RSF continua investigando se a morte de Roberto Javier Mora García está relacionada ao trabalho.

Na Colômbia, ‘a situação da liberdade de imprensa continua sendo crítica’, mas o número de mortos em 2004 caiu da média anual de cinco jornalistas assassinados para duas vítimas (Oscar Alberto Polanco e um colaborador).

Dois jornalistas foram assassinados no Peru, Alberto Rivera Fernández e Antonio de la Torre Echeandía, o que não acontecia desde 1997, o que se soma à multiplicação de atos violentos contra a imprensa.

Carlos Guadamuz e María José Bravo foram os primeiros jornalistas assassinados na Nicarágua desde 1978.

A morte do espanhol Ricardo Ortega no Haiti, a de Juan Andújar na República Dominicana e a do motorista do dono da rede de televisão equatoriana Telesistema completam a lista de assassinatos de jornalistas e colaboradores na América Latina.

Em outros países não houve derramamento de sangue, mas a situação da liberdade de imprensa piorou com a ação de ‘algumas autoridades’ que não aceitaram ‘o papel de contra-poder da imprensa’.

É o caso da Argentina, onde a RSF denunciou ‘assédio judicial, discriminação na concessão de propaganda pública e no acesso a informações oficiais, além de ameaças e agressões’ a jornalistas.

‘Nesses países a liberdade parece ter duas faces: uma na imprensa nacional, cuja importância permite a ela ficar à margem da repressão, e outra nas imprensas locais e regionais, frágeis e isoladas’, indica a RSF. (c) Agencia EFE’