Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A televisão feudal

Passado um ano que morava na Itália, recebo uma intimação judicial para fazer o pagamento do imposto da televisão, caso contrário estaria passivo à penhora de bens.

Fui até o fórum dizer que não tinha televisão, e portanto nada tinha a pagar. O funcionário que me atendeu perguntou se na casa em que eu morava existia um aparelho, disse-lhe que sim, mas que não me pertencia, pertencia à pessoa com quem morava. Ao que ele respondeu com uma prepotência digna dos tempos fascistas: ‘Então o senhor diga a essa pessoa que nos escreva uma carta informando que a televisão que o senhor assiste é dela e paga o imposto [aqui denominado ‘cânone’]’. Evitei dizer o que pensei naquele momento, me acalmei e disse que não escreveria nada, eles se quisessem que viessem provar que eu possuía um televisor e nunca mais me perturbaram.

Vamos entender: na Itália, há a obrigação de declarar-se a moradia num escritório municipal. Assim, todas as vezes que aparece um morador vindo de fora, a estatal RAI (Radiotelevisione Italiana) emite e envia um boleto, mais ou menos na base do ‘se colar, colou’.

Prática corporativista

Outra coisa a ser entendida é o porquê do imposto. Quando da criação da televisão na Itália, somente o Estado tinha condições de implantá-la e não havia anunciantes. Mas tudo mudou: de país pobre e destruído do pós-guerra a Itália passou a ser uma das grandes economias mundiais; hoje a rede estatal de televisão (3 canais) tem tanta propaganda quanto os canais privados; portanto, trata-se de um imposto obsoleto e injusto. A arrecadação anual é enorme: o país tem 18 milhões de pagantes de cânones, à base do equivalente a 300 reais por ano, o que perfaz algo em torno do equivalente a 5,4 bilhões de reais.

Como se não bastasse, na terça-feira (27/12), leio no jornal la Repubblica uma matéria estarrecedora sob o título ‘RAI, fim da troca entre pais e filhos. Desaparece o revezamento de gerações previsto até agora’.

O negócio e o seguinte: por motivos econômicos, a RAI estimulou a antecipação de aposentadoria de 736 funcionários – que receberão um bônus em dobro, isto é, 26 salários. Mas a partir de agora eles não poderão mais passar, como sempre aconteceu, sua vaga para os filhos. Sim, é isso mesmo: a TV estatal que recebe bilhões da população italiana para assistir também aos anúncios, que são regiamente pagos, tem cargos hereditários desde sua fundação, em 1954.

Mas, como sempre disse a direção da estatal, os filhos devem ser ‘submetidos a exames’, mas não diz que esses exames são pro forma e não têm nada a ver com aqueles que devem ser feitos pelos simples mortais para ter um emprego público. Mais: os ‘filhinhos de papai’, não terão o mesmo cargo nem o mesmo salário do pai, isto é, o ‘velho’ aposenta-se algo como 18,7 mil reais e o ‘junior’ começa com meros 6 mil reais – grandes salários até para quem tem que gastar em euro, já que o salário médio na Itália é o equivalente a 2,5 mil reais.

Essa herança, ao que tudo indica, desaparecerá em 2006. Por esta prática corporativista e feudal, fica fácil entender a péssima qualidade da televisão italiana.

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Jornalista