‘O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, abriu a porteira de par em par: a imprensa tem o direito não apenas de manter a sociedade informada, mas também de fazer críticas ‘ainda que contundentes e sarcásticas’.
Acelerando na curva, o ministro acentua que o direito à crítica é ainda mais legítimo quando dirigido ‘a figuras públicas, com alto grau de responsabilidade na condução dos negócios de Estado’. É uma sentença que jornalistas devem receber com alegria – mas também, e talvez principalmente, com humildade.
Não fará bem algum à democracia brasileira uma decisão da Justiça que deixe na mídia a impressão de que está aberta a temporada de caça aos poderosos (e com certeza não foi essa a intenção do ministro do STF). Por mim, dormirei mais tranqüilo se os coleguinhas entenderem a decisão como uma garantia de que continua aberta a temporada de vigilância aos poderosos. O que é bastante diferente.
Na sociedade democrática está na pauta dos meios de comunicação – como obrigação, não privilégio – fiscalizar, aberta e honestamente, o que homens públicos fazem com os poderes que a sociedade deposita em suas mãos. É o que melhor podemos fazer no campo do chamado jornalismo investigativo: cavar verdades associadas ao interesse público e levá-las para a luz do dia – para que a sociedade faça a respeito o que melhor entender. Note-se que investigar não significa comprar de olhos fechados o que outros investigaram, ou dizem que o fizeram. Conhecer o que a publicação de uma denúncia vale para o denunciante anônimo é fundamental. Muitas vezes, a motivação da fonte é parte indispensável do que se publica.
O direito de criticar os poderosos, acentuado pelo ministro Celso de Mello, na verdade não é dado ao jornalista como conseqüência de sua profissão, mas de sua condição de cidadão. Acontece que a profissão lhe fornece um alto-falante de alta potência, que as circunstâncias negam a cidadãos de outras vocações.
Por isso mesmo, bem fazem os jornais que – como O GLOBO e diversos outros – abrem suas colunas a opiniões de não jornalistas. É óbvio, mas precisa ser acentuado: o direito de ‘pensar, falar e escrever livremente’, citado na sentença, não poderá jamais ser visto como privilégio de um grupo profissional.
E sempre é bom lembrar que opinar – para elogiar ou baixar o porrete – não é aquilo que fazemos de mais importante. O arroz com feijão de nosso ofício é a informação, construída mais com substantivos do que com adjetivos. Honesta, fundamentada, beneficiando o interesse público. Incluindo o que acontece de bom e de ruim. Claro, se a notícia do segundo tipo atrapalha projetos malévolos de grupos privados poderosos ou de ocupantes de altos escalões do Estado, melhor ainda e azar o deles.
O direito de opinar e criticar é básico e óbvio (efusivos agradecimentos ao ministro Celso de Mello) – mas, do ponto de vista dos deveres da mídia, maior bem fazem ao país os sólidos substantivos da bem contada história de alguma tramóia de poderosos do que qualquer rajada de adjetivos, pesados ou sutis, lançada contra inimigos do bem público. Até porque esse pessoal, embora finja que não, costuma ter casca grossa.’
O Estado de S. Paulo
‘Vitória da imprensa ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 2/09/05
‘Ao julgar o pedido de abertura de uma ação penal contra um colunista, um editor e o presidente do Conselho de Administração da revista Veja, que no dia 3 de agosto publicou uma edição com vários artigos e matérias contundentemente contrárias ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro José Celso de Mello Filho, exarou uma sentença exemplar. A ação foi impetrada por um advogado que, descontente com o conteúdo das reportagens e artigos, acusou seus autores de colocarem em perigo o regime democrático e pediu sua condenação e a de seus superiores hierárquicos por crime de subversão contra a segurança nacional.
Apesar da gravidade da acusação, que é flagrantemente desproporcional ao teor das críticas dirigidas pela revista a Lula, Mello Filho determinou o arquivamento da ação por razões processuais, alegando que ela deveria ter sido impetrada na primeira instância da Justiça Federal, e não diretamente no STF. Mas, como o caso poderia abrir um perigoso precedente contra a liberdade de imprensa e o direito de crítica, o ministro julgou oportuno entrar no mérito da discussão, apresentando argumentos que, a partir de agora, servirão de parâmetro para o Supremo no julgamento de novas ações criminais contra jornalistas.
No regime democrático, afirmou o ministro, os jornais, as revistas, as rádios e as televisões têm o direito não apenas de informar e opinar, mas também de formular críticas, por mais veementes e sarcásticas que sejam, a todos aqueles que tiverem ‘alto grau de responsabilidade na condução dos negócios do Estado’.
As eventuais suscetibilidades dos detentores do poder e de seus simpatizantes, disse ele, em hipótese alguma podem se sobrepor nem aos interesses maiores da sociedade nem às liberdades públicas asseguradas pela Constituição de 88.
Em outras palavras, opiniões, críticas e ironias fazem parte do jogo político e da própria natureza das atividades jornalísticas, motivo pelo qual não configuram qualquer ameaça à segurança nacional. ‘No contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão penal ao pensamento, ainda mais quando a crítica – por mais dura que seja – revela-se inspirada pelo interesse público (…). É preciso advertir, notadamente quando se busca promover a repressão penal à crítica jornalística, que o Estado não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as idéias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação social’, explica Mello Filho.
Sua conclusão, amplamente embasada na jurisprudência firmada pela Suprema Corte dos Estados Unidos e por tribunais superiores europeus nessa matéria, é primorosa. ‘Nenhuma autoridade pode prescrever o que será ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento (…). O direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem restrições ou sem interferência governamental, representa (…) o mais precioso privilégio dos cidadãos.’
Evidentemente, a decisão do Supremo sobre este caso não significa que o direito de crítica seja ilimitado nem que presidentes da República e qualquer governante ou homem público não tenham instrumentos jurídicos para se defender de falsas acusações veiculadas por órgãos de comunicação. Ao consagrar o direito de opinião e de crítica, a democracia também proporciona recursos legais contra abusos cometidos por jornalistas. É para isso que existem as ações cíveis por dano moral e as ações penais por crime de injúria, calúnia e difamação, previstas pela própria Lei de Imprensa.
O mérito da sentença de Mello Filho foi atalhar uma forma de pressão que visa a constranger a imprensa neste momento em que desempenha um papel decisivo na apuração da verdade sobre a extensão e a profundidade da corrupção no PT e no governo. Com sua incisiva sentença, o ministro preservou o regime democrático, que tem na liberdade de opinião e no direito de crítica dois de seus principais pilares.’