Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eliane Lobato

‘Wanderley Guilherme dos Santos acaba de ser consagrado um dos cinco mais importantes cientistas políticos da América Latina pela Universidade Autônoma Nacional do México. Esta é apenas mais uma condecoração deste carioca graduado em filosofia, Ph.D. em ciência política pela Universidade de Stanford e laureado pela Guggenheim Foundation. Mas uma distinção merece destaque: ele antecipou o golpe que derrubou o presidente João Goulart, em 1964, no livro Quem vai dar o golpe no Brasil. Aconselha-se, portanto, a prestar atenção em seus prognósticos. Agora, prevê que o PFL possa capitanear um pedido de impedimento do presidente Lula no fim deste ano para que ele enfrente as próximas disputas eleitorais nessa vulnerável condição. Ele afirmou que quem desconsidera ‘o vetor Garotinho’ não está compreendendo bem a dinâmica da competição presidencial e defendeu que os deputados e senadores que não provarem suas acusações deveriam ser submetidos à comissão de ética e perder o mandato. Wanderley Guilherme dos Santos não busca meias palavras para expor ou fundamentar seu pensamento. Confira nessa entrevista a ISTOÉ.

ISTOÉ – Como será a disputa presidencial em 2006? O caixa 2 vai deixar de existir ou será maquiado?

Wanderley Guilherme dos Santos – Na minha opinião, o PFL – que é um partido laranja do PSDB – vai pedir o impedimento do presidente Lula, com ou sem base, no final das comissões de inquérito, portanto no fim do ano. O que significa que metade de 2006 estará envolvido no processo de impedimento do presidente. A oposição tem força no Parlamento para iniciar isso. É assim que, na minha avaliação, a oposição faz seus cálculos e é nesse contexto que estão esperando fazer uma campanha presidencial: com o Lula, que é o candidato mais forte, sendo submetido a um processo de impedimento. Quem vai votar nele pensando que poderá estar impedido mais à frente? É uma manobra suja, mas viável.

ISTOÉ – Se Lula ficar fora da disputa, quem se beneficia?

Wanderley – O PSDB é um sério candidato a chegar ao segundo turno. Mas não se sabe quem vai ser o candidato. Pelo passado, sabe-se que o José Serra tem suficiente capacidade destrutiva de concorrência dentro do partido e no final ser ele próprio o candidato. Isso trará um pouco de dificuldade de coalizão com o PFL, por conta do episódio Roseana Sarney (referência ao dinheiro flagrado na empresa Lunus quando ela era forte candidata ao governo em 2002). Mas acho difícil que outro candidato, dentro do PSDB, tenha chance de batê-lo porque Serra não tem limites. Ele é um político extremamente duro, hábil. Pela imagem pública transmitida, ele é o José Dirceu da máquina do PSDB. Não tem brincadeira com ele, domina mesmo. Agora, é preciso não esquecer que existe um candidato a candidato chamado Anthony Garotinho, que disputa dentro do PMDB.

ISTOÉ – Com que chances?

Wanderley – O PMDB, como sempre, vai rachado, seja qual for o candidato. Se o Garotinho sair pelo partido significa não só mais tempo de tevê, como também mais diretórios, a infra-estrutura nacional do PMDB. Ele não é um candidato fácil. Se Lula e Garotinho forem para a disputa, o PSDB vai ter que brigar pelo segundo ou pelo terceiro lugar com o Garotinho. Não se deve brincar com o Garotinho. Ele derrotou o Serra em seis Estados em 2002, com um partido que não tinha estrutura nacional. Ele chegou em segundo lugar em seis Estados, na frente do Serra. Desconsiderar o vetor Garotinho é não compreender bem a dinâmica que a competição presidencial pode ganhar. De repente, como aconteceu em alguns momentos da campanha passada, o PSDB pode ser obrigado a virar seus canhões contra o Garotinho.

ISTOÉ – E o caixa 2, como ficará?

Wanderley – Acho difícil deixar de existir porque faz parte da competição. Existe em todos os países democráticos nos quais a competição é acirrada. O problema é conseguir restringir isso, não expor partes fundamentais do Estado nesse jogo e, sobretudo, fiscalizar e punir. Não fazer vista grossa. Mas há que se perder a inocência, a pretensão de que é possível fazer uma legislação capaz de proibir o caixa 2. Esse caminho não leva a nada.

ISTOÉ – Afinal, o mensalão existe?

Wanderley – As coisas precisam ser provadas. O destino dos saques seria para pagar acordos de campanha. Mas para pagamento de votos no Congresso é algo que deve ser provado. Não digo que não existiu, apenas que tem que ser provado. Porém, antes que isso aconteça, a oposição aumentou a aposta na crise. Disse que o mensalão era coisa menor, e tornou mais relevante o fato de o PT ter ocupado o Estado brasileiro, estabelecido a corrupção sistêmica para financiar a perpetuação do partido no poder. Isso é uma senhora acusação! É preciso ter dados muito fortes para afirmar algo dessa gravidade. E o que acontece é que, até agora, nem mesmo questões elementares foram comprovadas. Como, por exemplo, se Renilda (mulher de Marcos Valério) mentiu. Aumentaram tanto as acusações, disseram que tantas coisas já estavam comprovadas e essas autoridades – presidentes e secretários das CPIs – não desautorizaram essas afirmações peremptórias. E, agora, se chegar à conclusão de que não houve, por exemplo, pagamentos regulares tendo em vista a compra de votos, como é que fica?

ISTOÉ – Como deveria ficar a situação dos acusadores?

Wanderley – Se eles mentiram para a opinião pública, difamaram colegas, afirmaram inverdades, caluniaram partidos, deveriam responder ao Conselho de Ética e perder o mandato.

ISTOÉ – Quem são esses deputados e senadores?

Wanderley – Eu já mencionei e não gostaria de ficar repetindo como se fosse uma coisa pessoal. Mas todos sabem: são aqueles que se sentam na frente (na CPI), sãos os primeiros a falar, a esganiçar, são muito eloqüentes, enfáticos, e também são sempre os últimos a falar porque se reinscrevem para a despedida dos holofotes.

ISTOÉ – Esses parlamentares exercitam, para usar uma expressão criada pelo sr., a lógica do blefe?

Wanderley – Não só eles, mas também líderes partidários. Incluo aí o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE) e José Agripino Maia (PFL-RN). Eles afirmaram categoricamente que já está comprovada a existência da ocupação do Estado brasileiro e de um esquema de corrupção sistêmica para financiamento do PT. Se eles têm comprovação disso, têm que revelar. Se não aparecerem provas, são responsáveis por isso. Eu fico surpreso de ver pessoas com passado e currículo relevante fazer uma acusação dessa sem provar. Porque, se for verdade, se já há fatos comprovando indubitavelmente, não precisa esperar o fim da CPMI, tem de iniciar imediatamente o impedimento do presidente da República e eu sou favorável que comece logo. Agora, se não há, não pode dizer uma coisa como essa.

ISTOÉ – O que há de comprovado?

Wanderley – Isso é exatamente o que todos nós estamos pedindo! A emoção fica sendo administrada diariamente. Não querendo ser cruel ou irônico com a senadora Roseana Sarney (PFL-MA), o fato é que todo fim de semana inventam um ‘episódio Roseana’, curiosamente com o mesmo beneficiário, todo mundo sabe quem. Os episódios se sucedem e nada se comprova. A população fica nessa expectativa. Se os resultados da CPMI dos Correios não for uma hecatombe parlamentar, ninguém vai ficar satisfeito, independentemente da verdade dos fatos.

ISTOÉ – Aconteceram escândalos no governo FHC que não causaram a mesma reação. Por quê?

Wanderley – Ponto um: porque praticamente toda a mídia era favorável a Fernando Henrique. Ponto dois: a oposição a FHC era muito frágil do ponto de vista parlamentar. Não tinha força para fazer valer no Parlamento o que PSDB e PFL estão fazendo agora, uma oposição forte. O que é bom para a democracia. Acabamos de saber que, ao investigarem o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) por conta do alargamento das investigações provocadas pela lógica do blefe, a grande falcatrua cometida lá ocorreu no final do período FHC. Eu duvido que o eixo do mal dos negócios das comunicações dê projeção a esse fato, apesar de comprovado pelo TCU. Duvido. Como não deu ao fato de que Marcos Valério contribuiu com caixa 2 na campanha de FHC em 1998.

ISTOÉ – Depois de três meses de crise, fica a sensação de que o Brasil acaba de descobrir que propina é uma prática política comum. Wanderley – Está sendo perdida uma oportunidade fantástica de ir a fundo nos esquemas ilícitos de relação entre o privado e o público no Brasil, que existe e não é de hoje. O equívoco da oposição é insistir, por razões eleitorais, na tese de que isso é inédito e se restringe ao PT. Hoje, eu vejo a oposição como um obstáculo a uma séria investigação do problema. Não deviam ter partidarizado. A questão é o sistema privado seqüestrando pedaços do Estado para operações ilícitas. Isso existe e tem que ser enfrentado. Podiam ter aproveitado a oportunidade e colocado o governo em cheque, pegando o fato de ser comprometido com a ética. Mas qual foi a estratégia eleitoral da oposição? Dizer que isso nunca houve. Ora, isso é um conto da carochinha!

ISTOÉ – O PT era considerado uma reserva moral. Isso aumenta o prazer em destruí-lo?

Wanderley – Sem dúvida. Estão pagando o preço por ter revelado que também sucumbiram a algo que englobou todos os governos passados na história da República, de 1945 para cá. Por que acontece isso no Brasil? Por que o brasileiro é naturalmente corrupto? Não, é pela própria formação da cumulação capitalista no Brasil. O sistema privado brasileiro é uma estrutura que depende dramaticamente de favores do Estado. Legislação de subsídio, de isenção de tarifa de importação… coisas sem as quais ele tem dificuldade de sobreviver. É um sistema que, por conta disso e das competições entre os diversos setores, seqüestra pedaços do Estado para obter benefícios, para obter legislação a seu favor. Isso é antigo e é seriíssimo.

ISTOÉ – O sr. é a favor do financiamento público nas campanhas?

Wanderley – Não. Primeiro porque não resolve nada e usa o dinheiro público. Sou a favor do financiamento aberto, online, o tempo todo, com limite e fiscalização séria.

ISTOÉ – Qual é o futuro do PT?

Wanderley – Não sei. Há dois PTs: o da organização e o das ruas. O segundo está aí e não vai desaparecer. Não vai certamente para o PSDB nem para o PFL. Uma parte pequena vai para o PSOL e um pedaço um pouco maior vai para o Garotinho. O PSOL é um partido que tem uma proposta pré-democrática. A democracia representativa não comporta um partido que não faz alianças ou só faz com quem pensa igual. É uma concepção de democracia autoritária. Mas acho que o PT vai se reformular e os petistas vão continuar no PT.

ISTOÉ – Estamos diante de uma suculenta pizza?

Wanderley – Acho que estamos diante de uma ameaça de arapuca. Pelo silêncio das autoridades das CPIs e, caso não se descubra nada, já, já vão estar entre ser cúmplice de uma história mirabolante e ceder à extorsão do eixo do mal do negócio das comunicações ou ser desacreditados. Não acredito em pizza. Se houver comprovação, virá a público. Não falo de caixa 2, isso já perdeu a importância. Fundamental é comprovar o valerioduto sendo alimentado por empresas estatais, com dinheiro no Exterior. O problema é se não houver provas. O que vão fazer?’



José Dirceu

‘O fuzilamento político’, copyright Folha de S. Paulo, 06/09/05

‘Revogar um mandato popular só com provas. Só a população, pelo voto, é que tem o direito de fazer um julgamento político sem provas

José Márcio Camargo, economista-sócio da consultoria Tendências

A sabedoria popular adverte: ‘As aparências enganam’. No conselho transmitido de geração para geração, os pais recomendam aos filhos que não se deixem levar pela ilusão das primeiras impressões. Para confiar cegamente em alguém ou em alguma coisa, é preciso ter certeza.

Quanto mais graves as conseqüências desse juízo, mais absoluta e inequívoca deve ser a convicção. Sob pena de cometermos injustiças irreparáveis, levados por falsas percepções, mal-entendidos, mentes confusas ou manipulação de interesses, muitas vezes ilegítimos e inescrupulosos.

Prova de que as aparências enganam é a falsa notícia que quase toda a imprensa transmitiu à opinião pública na semana passada. A sociedade foi iludida com a informação de que as CPIs dos Correios e da Compra de Votos ‘pediram’ a cassação de deputados. Não foi isso que aconteceu. Quem ler com isenção o relatório verá que houve recomendação para que a Mesa Diretora da Câmara iniciasse processos para analisar os casos de parlamentares citados nas investigações.

As CPIs lavaram as mãos, deixando o juízo de valor para o Conselho de Ética e para o plenário da Câmara. Mas a impressão geral ventilada pela mídia foi a de um veredicto público. Tanto que essa foi a interpretação da Folha no editorial ‘A cassação de Dirceu’ (pág. A2, 4/9).

Esse tipo de distorção tem sido constante neste processo. Transmitem convicções falsas e ignoram, ou reduzem a importância de, fatos e declarações favoráveis aos denunciados. Só recebem destaque versões convenientes para respaldar o julgamento sumário, o fuzilamento político.

Ao invés de investigar, apostam em declarações acusatórias, seja de quem for, venha de onde vier, mesmo sem filtro de credibilidade. Esse amontoado de fragmentos inconsistentes vai transformar-se na base de indícios que tende a prevalecer no julgamento político para saciar o ‘clamor nacional por punição’.

Nesse sentido, o relatório distorceu depoimentos para induzir conclusões erradas. Deturparam confirmações e afirmações de testemunhas, como Marcos Valério, Renilda de Souza e Emerson Palmieri. Transformaram suposições em assertivas. E suposições desmentidas por quem as teria induzido. Como foi o caso de Delúbio Soares, fato ‘esquecido’ pelas comissões. Sem falar nos relatos do deputado Roberto Jefferson, que só merecem ‘elevado grau de verossimilhança’ quando servem para me prejudicar.

Esse conjunto de impressões falsas constrói o imaginário no qual se formará a convicção da sociedade e de seus representantes no Congresso. Por essa razão, meus advogados traçaram uma linha auxiliar de defesa visando um recurso ao Poder Judiciário em caso de eventual injustiça.

Isso não é chicana. É acrescentar argumentos ao debate, aproveitando um caso individual para chamar a atenção sobre riscos futuros de outros parlamentares que exercem, tenham exercido ou venham a exercer cargos no Poder Executivo.

Até agora, as CPIs estimularam o denuncismo irresponsável para criar um ambiente de horror, cenário favorável às ambições políticas de alguns de seus integrantes. Estão longe de comprovar o desvio sistêmico de dinheiro público, e a tese do mensalão vai ficando mais frágil à medida que o tempo passa e a evidência concreta não aparece.

Como as aparências não se comprovam, recorrem a ilações subjetivas para justificar as decapitações políticas. Se fosse eu um superministro, como apregoa o editorial da Folha, não precisaria ter debatido tantos assuntos conflituosos nos grupos interministeriais coordenados pela Casa Civil. Se fosse um ditador no PT, não teria participado de disputas acirradas nem instituído o mais democrático processo de escolha de dirigentes partidários, com a participação de todos os filiados. Qual partido faz isso?

Se houve algum ato isolado de corrupção no governo, não posso ser responsabilizado. Não recebi vantagens indevidas nem participei ou fui conivente com qualquer esquema destinado a captar e distribuir recursos a partidos ou parlamentares. Essa é a verdade.

Tenho consciência de que estou sendo julgado não por meus eventuais erros ou supostos delitos, mas pelo que represento na história da esquerda, do PT e do governo Lula. Estou na linha de tiro, mas o objetivo das forças que me atacam é interromper o processo de organização dos trabalhadores e de consolidação de uma alternativa popular para o país.

Se a Folha considera que nada será suficiente para apagar a convicção preconcebida de que exerci ‘papel ativo na trama de corrupção’, é porque o processo está contaminado pelo prejulgamento próprio dos regimes autoritários. Nesse caso, a imprensa perde a legitimidade para formar opinião na sociedade.

O julgamento é político. Mas, se não houver uma constatação inequívoca da quebra do decoro parlamentar, qualquer eventual condenação será ilegítima. Condenar pelas aparências, especialmente se o conjunto de indicações estiver distorcido, é romper a linha que separa a autoridade da tirania. José Dirceu, 59, advogado, é deputado federal (PT-SP). Foi ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República (2003-5).’



Daniel Piza

‘A cultura da concessão’, copyright O Estado de S. Paulo, 4/09/05

‘Outro dia eu estava no carro de uma emissora, sendo levado para casa, quando o assunto governo Lula surgiu, trazido pelas ondas do rádio. O motorista fez um muxoxo indignado e soltou: ‘Quanta corrupção…’ A moça que vinha de carona, amiga dele, emendou: ‘É tudo ladrão. E eu votei neles.’ Uns 15 minutos se passaram, enquanto a conversa enveredou para futebol e outros temas. De repente, ela se lembrou de contar uma história para o amigo: em sua conta bancária, no mês anterior, aparecera um valor alto, depositado pelo supermercado onde trabalha como caixa, e ela foi ao gerente perguntar o que era aquilo. O chefe saiu, investigou e voltou com a explicação: tratava-se de um engano, pois aquele valor era o da movimentação do caixa dela no dia anterior. E pediu a ela que transferisse de volta a quantia, o que ela fez. Comentário do motorista: ‘Ah, mas eu não devolvia, não!’

Nesta semana, no carro de uma universidade, outro motorista, sabendo que sou jornalista, veio falar da corrupção, xingou os políticos em geral e desfechou: ‘Não dá para confiar em mais ninguém neste país.’ Meia hora de estrada depois, comentou a notícia do dono de uma mala com R$ 200 mil que deu ao homem que a encontrou no metrô R$ 120 em agradecimento. ‘Pô, R$ 120! O cara tinha que ter dado muito mais!’ Parecia supor a existência de uma taxa-honestidade.

Corta para Joaquim Nabuco. Em outros países uma figura como ele seria tema de baciadas de livros e artigos, e seus próprios livros seriam lidos nas universidades. Nabuco, ou Quincas, o Belo, não foi apenas um dos líderes da campanha abolicionista, à qual dedicou energia parlamentar e panfletos memoráveis, mas também um escritor de primeira, autor de Um Estadista do Império, sobre a geração de homens públicos à qual pertenceu seu pai, Nabuco de Araújo, e das memórias de Minha Formação, às quais o melhor elogio que posso fazer é que se comparam à obra-prima A Educação de Henry Adams. Nabuco, aliás, me faz pensar nos brilhantes fundadores da república americana, apesar de monarquista – um monarquista que batalhou pela abolição que Dom Pedro II vivia adiando, e batalhou pelo exclusivo fato de que punha a ‘dignidade humana’ acima de tudo.

Pois estou lendo agora seus recém-lançados Diários, em dois volumes, com prefácio e notas de Evaldo Cabral de Mello, numa iniciativa extraordinária das editoras Bem-te-vi e Massangana. Volto a Nabuco na semana que vem, inclusive para falar dos seus não poucos defeitos, mas eis o tipo de anotação que esses diários revelam: ‘O Deodoro é um caga-ouro. No Tibete, mandam aos príncipes como presente em caixas de ouro os excrementos secos do dalai-lama. Os do nosso são esses decretos de concessão distribuídos pelo ministro da Agricultura aos parentes, amigos e sócios do governo.’ A entrada é de 9 de março de 1891. Deodoro, sim, é Deodoro da Fonseca, presidente da República eleito pelo Congresso nove dias antes. Nabuco abandona a diplomacia e se revolta contra ele não porque monarquista, mas porque homem público de outra cepa ou, como ele diria, de outra ‘têmpera’.

Retorno para os dois motoristas. Há quem diga que esse gosto por ‘se dar bem’, na significativa expressão coloquial, é resultado das gerações seguidas de achaque burocrático, de despotismo velado, que obrigaram o povo a desenvolver o jogo de cintura, a ginga que a seleção mostra no futebol, para driblar os poderosos. E há quem diga que o comportamento das autoridades é reflexo ampliado de toda a cultura brasileira, de sua conivência com a contravenção, como nos bate-papos de atletas com traficantes, como se um povo inerentemente corrupto só pudesse ter uma classe dirigente corrupta. Eu acho que absolver o jeitinho ou o jeitão é a mesma coisa. Nabuco, naquele 28 de fevereiro, descrevia assim a responsabilidade da minoria civilizada: ‘O nosso dever consiste em manter o nível moral superior ao político.’

Pobre Nabuco. As concessões douradas a parentes e sócios continuam. Os caciques da República, não importam sua origem social ou regional, fazem agora até propaganda do prêmio dado a um cidadão pobre que devolve dinheiro encontrado, ao mesmo tempo que promovem o trânsito livre de malas de dinheiro entre servidores e contraventores. ‘Não existem provas’, diz o Deodoro do momento, mesmo diante dos extratos bancários. E lhe concedem perdão.

MAIS LINGÜETAS

Em Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira, já em DVD, chato por seu didatismo e lentidão, além de sugerir que o terror islâmico se explica apenas pelo ódio à civilização ocidental, uma cantora grega diz invejar a disseminação do português, de Goa ao Brasil, de Cabo Verde a Moçambique. Mas em vez de se estudar essa diversidade, que Victor Lopes levou para seu bom documentário Língua, gasta-se dinheiro em tentar uniformizá-lo.

Alguns dos melhores textos da atualidade são de cientistas: Oliver Sacks, Richard Dawkins, Freeman Dyson e James Gleick são grandes prosadores. Pela mentalidade que preza a clareza e a consistência, nos levam para seu mundo. O Brasil precisa de autores assim. Alguns termos da ciência, a propósito, são conceitos ricos para outras áreas: dilatar, anomalia, calibrar, entropia. Thomas Pynchon fez conto magistral com essa palavra no título, Entropy.

Na coluna passada, onde se lia ‘o pronome pessoal atrai a preposição’, leia-se, claro, ‘atrai o pronome pessoal do caso oblíquo’. Uma exceção que esqueci de citar entre os que escrevem sobre o idioma é o trabalho de Sérgio Rodrigues no site No Mínimo, que parte de palavras em pauta na imprensa. E o livro de Santuzza Bandeira, Dito e Feito!, que colige e explica expressões idiomáticas, ditados e frases feitas.

Os leitores José Werneck e Renato Guimarães se queixam de outra praga do momento: dizer ‘O projeto, ele é…’, ‘O governo, ele é…’, etc. Maria Irene Brasso aponta o abuso do adjetivo ‘interessante’ e confusões como ‘incidente’ em lugar de ‘acidente’. A lista é enorme… Também não falei sobre palavras feias, a começar por ‘mensalão’, nem de palavras gastas. ‘Palavras deslocadas e mutiladas, palavras dos outros, foi a pobre herança que lhe deixaram as horas e os séculos’, diz Borges em O Aleph. Amor, democracia, verdade, paz: as mais importantes são as que mais apanham.

DE LA MUSIQUE

Foi uma noite especial a do violinista americano Joshua Bell na agradável sala do Espaço Cultural BankBoston na última terça. Acompanhado pelo pianista chinês Frederic Chiu, ele tocou a sonata Primavera de Beethoven, a nº 1 de Saint-Saëns (a da ‘petite phrase’ de Proust), a Meditação de Tchaikovski e outras. A rapidez e precisão de seus movimentos são impressionantes, mas ele não pode ser restrito ao rótulo de virtuoso, porque capaz de interpretar cada música com uma combinação rara de inteligência e sentimento.

POR QUE NÃO ME UFANO (1)

Paulo Francis teria feito 75 anos na sexta-feira. Ele inspira muita gente ainda, mas quase ninguém faz nada por sua memória, como este pequeno registro. Também o seguem mal quando fazem uso obsessivo do antiesquerdismo e do antinacionalismo. Francis não via conspiração em toda parte – estaria rindo muito das trapalhadas de Lula – e não extraía prazer de falar mal de grandes escritores brasileiros só porque consagrados, pois gostava muito de Machado, Euclides ou Drummond. Era um cosmopolita e hedonista. O consolo é que não há uma quinzena em que não me citem seu nome.

POR QUE NÃO ME UFANO (2)O DataPiza apurou a opinião das pessoas sobre o cenário mais provável para o desfecho da crise: 1) o absurdo: só ‘magrinhos’ são cassados e Lula é reeleito em 2006; 2) o tolerável: Dirceu, Jefferson e os outros 16 são cassados e Lula perde as eleições em 2006; 3) o rigoroso: Dirceu, Jefferson e muitos outros são, além de cassados, punidos na Justiça, assim como Valério, Delúbio e os dirigentes e tesoureiros de todos os partidos envolvidos na quadrilha, Lula toma vergonha e não sai candidato e algumas medidas como a fidelidade partidária são tomadas. Como sempre no Brasil, a expectativa é pelo cenário mediano. Resta ver se, com ele, será possível combater a imaturidade da democracia brasileira, tão à mercê de mafiosos da esperança.’

Tânia Monteiro

‘Lula decide falar no rádio toda semana’, copyright O Estado de S. Paulo, 5/09/2005

‘O agravamento da crise política levou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a intensificar o seu contato com a população através do rádio. A partir de hoje, o programa Café com o Presidente, que era veiculado a cada quinzena, passará a ser semanal. O Palácio do Planalto vê nessa mudança uma oportunidade de ampliar o espaço de divulgação dos feitos positivos do governo.

Ao reduzir a periodicidade do programa, a idéia do governo é criar um contraponto positivo ao noticiário negativo continuamente alimentado, nos últimos três meses e meio, pelas denúncias de corrupção que atingem o PT e setores do governo. ‘É mais um canal de comunicação direto com a população’, definiu um auxiliar palaciano.

No programa que vai ao ar hoje Lula dirá que, apesar das turbulências políticas, a economia brasileira está indo bem. E a prova disso é que o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu, no segundo trimestre, 1,4% em relação ao primeiro trimestre, mostrando que há recuperação nos investimentos, com inflação em queda.

Lula vai procurar mostrar, em sua fala, que, a despeito da crise política, o governo não está parado. Ele reafirmará que continua viajando pelo País para inaugurar realizações de sua administração. ‘Temos muito o que mostrar’, disse um auxiliar da Presidência, repetindo frase que tem sido usada de maneira recorrente pelo próprio Lula.

No último programa da série Café com o Presidente, veiculado em 22 de agosto, o presidente elogiou a entrevista concedida pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, para explicar as denúncias de corrupção que o atingiam.’



Milton Coelho da Graça

‘Quem leva grana ilegal tem honra?’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 5/09/2005

‘O deputado Jairo Carneiro (PFL-BA), em seu relatório ao Conselho de Ética, consegue pedir a cassação do deputado Roberto Jefferson por razões erradas: segundo Carneiro, RJ ‘agiu de forma leviana e irresponsável ao fazer, sem provas, acusações a parlamentares’ e, com isso, ‘atingiu gravemente a honra pessoal dos parlamentares citados’.

Pela teoria de Carneiro, aquela deputada goiana, que botou a boca no trombone quando o ‘coleguinha’ Sandro Mabel lhe ofereceu uma boa grana para mudar de legenda, deveria ter ficado calada, ou seja, silenciar diante da tentativa de suborno.

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Quem ainda não leu deve ler e guardar

‘O exercício da liberdade de imprensa contém os direitos de informar, buscar a informação, opinar e criticar’. Este é o trecho crucial da sentença do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, em uma ação movida por um advogado contra os jornalistas Marcelo Carneiro e Diogo Mainardi, da Veja.

Não vou mencionar o nome do advogado porque aparentemente seu intuito foi exatamente o de ser protagonista de uma causa célebre e quase todos os jornais também preferiram omiti-lo. Que melhor castigo do que esse – o de ignorá-lo? Mas, por ironia, essa ação despropositada acabou se tornando a dica para o ministro Celso de Mello produzir uma atualíssima defesa do papel da imprensa e dos jornalistas numa sociedade democrática. Para ler a decisão na íntegra, clique aqui.

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Quem começa a mentir não sabe parar

A montagem de imagens como política de Estado funciona, mas só até certo ponto, como sabemos muito bem. De repente, o presidente Bush não sabe como explicar o enorme fracasso de seu governo no socorro às vítimas do furacão na costa do Golfo do México. Não duvidem de que ainda venha a aparecer de calção ajudando uma velhinha negra a embarcar em um helicóptero, enquanto sua simpática mulher segura um cachorrinho. Mas ele perdeu o momento certo e isso ficou claro desde as primeiras imagens, ainda na noite que antecedeu a chegada do Katrina a New Orleans. A TV mostrou os militares no estádio Astrodome muito mais preocupados em revistar cuidadosamente os refugiados – na grande maioria, pobres e negros – e suas magras bolsas do que em garantir-lhes refúgio digno.E informação séria? Dois dias depois do tsunami asiático já se tinha pelo menos idéia do número de mortos. Pois, com a mais ampla cobertura possível, ainda não se sabe quantos morreram. Cinqüenta e nove, como diz uma agência federal, ou ‘milhares’, segundo o prefeito de New Orleans?’