Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cintas-largas, garimpeiros e o Massacre do Paralelo 11

Duas semanas após o conflito entre cintas-largas e garimpeiros no interior da reserva indígena Roosevelt, no Rondônia, os jornais ainda não foram capazes de oferecer uma inteligibilidade mínima ao caso.

No primeiro momento, a cobertura foi feita por telefone, estendendo para as profundezas da floresta o antijornalismo praticado nas áreas urbanas. Para dissimular a superficialidade da cobertura recorre-se a mapas, gráficos e a retrospectos dos últimos meses. É o que fez a Folha de S. Paulo na edição de segunda-feira (19 de abril, ironicamente o Dia do Índio), ao registrar que ‘em agosto de 2003 os índios reativaram o garimpo e não permitem a entrada de ‘brancos’. Querem, agora, que o governo legalize a extração’.

O Estado de S. Paulo recuou um pouco mais no tempo. Foi até 1999 para dizer que nesse ano ‘foi descoberta a maior jazida de diamantes do Brasil’. No ano seguinte os caciques começaram a cobrar dos garimpeiros para acesso à reserva. Em 2001 os garimpeiros invadiram a região e com isso intensificaram os conflitos. Em 2004 a Funai e os índios expulsaram cerca de 4.500 garimpeiros da reserva e, no dia 7/4, 100 cintas-largas emboscaram 150 garimpeiros e mataram 29. Como a Folha, o Estadão também publicou uma arte indicativa da reserva, entre o norte do Mato Grosso e o sul de Rondônia.

O Brasil é o país que abriga o maior número de grupos indígenas isolados (pelo menos 40) da sociedade exterior. Apenas esse dado justificaria uma maior atenção da mídia para o que representa uma riqueza antropológica que não pode ser avaliada em unidades monetárias, mas em diversidade cultural.

Preservação, não aculturação

A oeste das quatro áreas indígenas dos cintas-largas (área indígena Aripuanã, Parque Aripuanã, área indígena Roosevelt e área indígena Serra Morena) existem pelo menos dois grupos isolados, (área indígena Igarapé Omerê e área indígena Mossaco).

E existem pelo menos meia dúzia de razões para explicar a negligência da cobertura da mídia envolvendo os choques intermináveis entre índios e ‘brancos’, terminologia que denuncia uma interpretação tosca, influenciada pelos faroestes de John Wayne.

Um deles deve-se ao fato de publishers e seus comandados, diretores e secretários de redação, serem completamente analfabetos em assuntos indígenas, o que sugere um desconhecimento do Brasil profundo e a possibilidade de estarem, neste momento, amplificando essa ignorância entre os leitores.

Outra razão está relacionada a um conceito acalentado por Cândido Rondon nos primeiros tempos (1910) do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), precursor da atual Fundação Nacional do Índio (Funai).

Rondon acreditou, nesses primeiros tempos, num processo de assimilação cultural. Mas reformulou seu pensamento e com isso alimentou metodologicamente os irmãos Villas Boas, que preservaram pelo menos 15 etnias indígenas, abrigando esses povos na reserva indígena do Xingu.

Crime chocante

Rondon, ele próprio descendente dos terenas do Mato Grosso, repeliu sua formação positivista ao se dar conta de que integrar o índio à sociedade nacional equivalia pura e simplesmente a um assassinato cultural. Ainda assim, durante o governo militar, os generais se esforçaram para materializar o que lhes pareceu uma solução ideal.

A quarta de uma série de razões possíveis para explicar a negligência da mídia em relação às questões indígenas, como se fossem acidentes pontuais (e não a manifestação de um processo que reflete contradições no núcleo do poder político nacional, velho de 500 anos) é simplesmente a recusa em investir em reportagem. Afinal, a redação só gera despesas. Seria possível acrescentar aqui uma série de outras razões, mas isso não é o mais relevante neste momento.

O fato mais significativo, para permitir alguma contextualização histórica e uma interpretação possível neste choque mais recente entre cintas-largas e garimpeiros não foi mencionado até agora por nenhum jornal. Trata-se de um crime com um conteúdo de violência que chocou o mundo e ficou internacionalmente conhecido como Massacre do Paralelo 11.

Comida e arsênico

Esse assassinato em massa de cintas-largas foi cometido por pistoleiros a soldo de empresários sem nenhum escrúpulo, com cobertura de funcionários oficiais, entre eles o próprio diretor do SPI, o major da Aeronáutica Luiz Vinhas Neves, em meados dos anos 60. Neves foi demitido ao fim de uma investigação ordenada pelo então ministro do Interior, o general Albuquerque Lima, baseado num relatório oficial de 5.115 páginas distribuído ao longo de 21 volumes.

O relatório, produzido por uma comissão criada para estudar o caso, afastou 200 funcionários do SPI, indiciou 134, incluindo dois ex-ministros, dois generais, um tenente-coronel e dois majores. Dos acusados, 38 foram demitidos a bem do serviço público e 17 presos, entre eles Vinhas Neves.

O Massacre do Paralelo 11, como foi definido pela imprensa da época, incluiu do roubo ao estupro, passando por grilagem, assassinato, suborno, tortura e outros comportamentos que chocaram Albuquerque Lima e os membros da comissão investigativa.

Nessa época, os choques já estavam se concentrando no Mato Grosso, estado que se abria para a fronteira agrícola, ainda que, na Bahia, também ocorressem crimes odientos. Fazendeiros e políticos, em ações combinadas, liquidaram duas comunidades pataxós espalhando, propositadamente, o vírus da varíola, estratégia convencional na luta pela posse da terra no Brasil, como foi exaustivamente denunciado por Darcy Ribeiro.

Para liquidar os beiços-de-pau (tapaiúnas, do tronco lingüístico jê) no Mato Grosso, um povo que já foi numeroso e hoje não chega a uma população de 100 pessoas, fazendeiros, com a ajuda de funcionários do SPI, presentearam os índios com alimentos misturados a arsênico, veneno letal. Em algumas aldeias aviões atiraram brinquedos contaminados com vírus de gripe, sarampo e varíola, a última delas uma doença agora erradicada do planeta.

Missões e desconfiança

Mas o pior de todos esses acontecimentos trágicos foi o Massacre do Paralelo 11, recuperado pelo depoimento de um dos participantes, o seringueiro Ataíde Pereira dos Santos. O relato a seguir resultou do levantamento feito pela comissão organizada para investigar o caso. Ataíde falando:

– Minha tarefa era só matar o chefe dos cintas-largas. O índio estava isolado e era o único que não trabalhava, encostado a uma pedra, parecendo fiscalizar os outros. Aí Chico Luiz me disse: ‘Segura o capitão deles que eu acabo com o resto’. O Chico Luiz me escalou porque confiava na minha pontaria. O ‘Boliviano’ [membro do grupo de ataque] tinha uma winchester, mas eu nunca errei com meu velho mosquetão – relatou o seringueiro.

Naquele dia, os atacantes dos cintas-largas estavam na margem oposta do Aripuanã, afluente do Madeira que atravessa a reserva indígena. Era um grupo de seis homens capazes de se deslocar na floresta com a habilidade de um índio. Chico Luiz era o chefe do grupo, que estava a serviço de Antonio Mascarenhas de Junqueira, seringalista respeitado em Mato Grosso, conhecido pela prática de assassinar índios. O grupo havia deixado o seringal, na confluência dos rios Juinamirin e Juruena, subindo por este último até Águas Bravas, onde o Juruena revolto não permite a navegação. Penetraram na selva e a partir daí receberam apoio aéreo de um Cessna que lançava, periodicamente, alimentos e munição.

O grupo atingiu a maloca dos cintas-largas à noite, com armas engatilhadas e sem fazer fogo capaz de denunciar sua presença. Nem um cigarro foi fumado durante toda a espera, quando se falou pouco e a sussurros.

Ao amanhecer, com os cintas-largas deixando seus abrigos, os homens estavam prontos do outro lado do rio:

– Eu quase dormi na pontaria, mas quando apertei o gatilho o índio caiu – relatou Ataíde. Mas ele mesmo ficaria horrorizado com as cenas que se seguiram. Chico Luiz portava uma metralhadora e os demais winchester-44 (‘papo-amarelo’), arma de alto poder de fogo, além de pistolas 38. Os índios não tinham como se defender sob a fuzilaria deflagrada pelo disparo de Ataíde, mas o grupo só atravessou o rio quando se deu conta de que todos estavam mortos.

A surpresa, que desconcertou Ataíde e os outros, foi a presença de uma índia levando pela mão uma criança com idade estimada posteriormente em 5 anos. Ela nem correu. Estava sem forças. Apenas chorava, o que, no relato de Ataíde, irritou Chico Luiz:

– É preciso matar todas essas pragas – berrou ele para o resto do grupo.

Ataíde disse ter tentado contemporizar:

– Não faz mais judiação, Chico. Os cintas-largas vão querer se vingar. E os padres também não vão gostar disso – argumentou, referindo-se a missionários da ordem Consolata, que trabalhavam com os índios.

– A gente pode ficar com a mulher. Ela é nova e bonita e se você não quiser a gente leva de presente pro Amorim – acrescentou Ataíde, referindo-se ao chefe do grupo que não estava presente, mas gostava de violentar índias.

– Quem quiser mulher que venha buscar mulher no mato – berrou de volta Chico Luiz.

Então, o pistoleiro agarrou a mulher, prendeu-a com uma corda numa árvore, de cabeça para baixo e, com um único golpe de facão, quase abriu seu corpo ao meio. A criança já estava morta, com um tiro na cabeça. Em poucos minutos a habilidade macabra do pistoleiro esquartejou o corpo da mulher enquanto os outros ateavam fogo à maloca minutos antes tranqüila e cheia de vida.

Ataíde relatou à comissão que pensou em alvejar Chico Luiz pelas costas, mas se acovardou e permaneceu quieto:

– Todos nós pensamos que ele havia ficado louco, mas ele continuou dando as ordens e mandou que atirássemos os corpos no rio. O ataque não durou mais que uma hora, rememorou Ataíde, ‘porque o Sol ainda não estava a pino quando partimos’.

Cada um dos assassinos deveria receber um pagamento de 50 mil cruzeiros, mas Junqueira, o patrão, recusou o pagamento sob pretexto de que não queria mais aquele tipo de ação por ser muito caro. A estratégia mais barata seria bombardear as aldeias com dinamite, usando avião. Inconformado com a recusa do fazendeiro, Ataíde resolveu vingar-se e relatar o crime com justificativas:

– A gente mata porque, às vezes, fica até seis meses no mato e acaba virando bicho. Os cintas-largas estão sentados em cima de grandes jazidas de cassiterita, a terra deles dá boa planta e tem muito mogno. Eles escolhem a melhor terra e não querem sair de lá. É preciso usar a força.

O Massacre do Paralelo 11 foi o fim do SPI criado em 1910 pelo marechal Cândido Mariano Rondon. O SPI foi substituído pela Funai, em 1967, mas boa parte dos funcionários corruptos do antigo órgão foi mantida. Novas violências seriam cometidas nos anos 70 e uma delas ainda está para ser devidamente contada: o massacre dos waimiris-atroaris (na versão dos velhos eles foram atacados com bombardeios e veneno atirados de aviões) durante a construção da BR-0174, que liga Manaus a Boa Vista, capital de Roraima.

É nesse contexto que deve ser localizada a decisão de se enviar para contato com os waimiris-atroaris, em meados dos anos 70, a missão chefiada pelo padre católico italiano Giovanni Calleri, que foi inteiramente dizimada, à exceção de uma controvertida personagem: o mateiro e aventureiro Álvaro Paulo da Silva. Nesse quadro também se encaixam as denúncias que já haviam motivado uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em 1968, envolvendo a presença de falsos missionários da Missão Evangélica na Amazônia (Meva) e seu apoio aéreo, a Asas do Socorro, relacionado à mineração e ao contrabando de minérios, inclusive para uso nuclear. A desconfiança em relação aos evangélicos das Novas Tribos fez com que se decidisse por um padre católico no contato com os waimiris-atroaris.

Repórteres passivos

Esses movimentos, nunca devidamente esclarecidos à sociedade brasileira, estão intimamente relacionados aos esforços frustrados do almirante Álvaro Alberto, criador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951, de trocar recursos minerais por conhecimento científico para a exploração da energia nuclear no Brasil.

Estão relacionados, também, às pressões das últimas semanas feitas pelos Estados Unidos envolvendo o processo de enriquecimento de urânio, em Resende, no Rio de Janeiro. Tudo isso é parte de uma longa história que perde o sentido se for contada em capítulos estanques.

A superficialidade da cobertura da mídia em casos como o choque entre garimpeiros e cintas-largas no dia 7 também reflete a atitude passiva de repórteres que mal lêem os jornais diários, fazendo-o com a mera preocupação de não serem furados por banalidades julgadas importantes pelos padrões discutíveis das redações.

Histórias de horror

Este choque mais recente entre cintas-largas e garimpeiros ainda foi precedido de uma série de fatos sintomáticos nos últimos anos. O uso de cordas para prender tanto garimpeiros como um índio capturado na cidade a uma árvore pode ter como memória distante a índia esquartejada viva por Chico Luiz.

A história entre os povos ágrafos é transmitida oralmente. E cada vez que um velho fala do passado todas as cenas são revividas.

Tomar os cintas-largas por assassinos frios e impiedosos é apagar toda a história de mutilações que eles e outros povos indígenas sofreram.

Da mesma forma, julgar os garimpeiros apenas como foras-da-lei é mais um equívoco. Garimpeiros, em boa parte dos casos, são homens e mulheres desenraizados. Levam com eles, nas profundezas da floresta, suas próprias histórias de horror.