A rotina do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem uma constante: a leitura obrigatória, todas as manhãs, de um documento conhecido como ‘carta crítica’. Uma resenha do que saiu na imprensa sobre o governo naquele dia. Nela, o presidente tem acesso a uma análise apurada do noticiário. Recebe críticas, sugestões, advertências e até broncas. Algumas vezes, em seus discursos, Lula reclama da acidez dos que acordam mal-humorados. Nestas ocasiões, ele se refere ao autor da ‘carta crítica’, o jornalista e professor da USP Bernardo Kucinski. Não é para menos. Para produzir a resenha, Kucinski acorda às 5 da manhã, percorre os jornais nacionais, internacionais e faz uma análise da conjuntura a partir do que leu. No documento, o ‘chato do Kucinski’, como é conhecido nos corredores do Planalto, tece comentários sobre as ações do governo, suas repercussões e analisa as matérias da imprensa no que elas trazem de mais interessante: as entrelinhas.
A prática de escrever esta resenha para Lula começou ainda nas eleições de 1998, quando o jornalista percebeu que uma leitura crítica do noticiário poderia ajudar o então candidato a presidente. Kucinski, que era colaborador da campanha, passou a enviar relatórios diários – conhecidos como ‘cartas ácidas’ – a Lula. Em 2000, estas cartas foram publicadas em livro. Já na campanha de 2002, dentro da lógica do ‘Lulinha paz e amor’, as ‘cartas ácidas’ se tornaram ‘cartas críticas’ e assumiram um tom mais ameno. Lula venceu e quando chegou ao Planalto continuou recebendo o material do agora assessor especial da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica.
Além do presidente, poucos colaboradores têm acesso ao conteúdo da resenha. Na entrevista a seguir, o autor das ‘cartas críticas’ fala sobre o governo Lula (‘decepcionou muito’), sobre a imprensa (‘a palavra de ordem é linchar’) e sobre o papel dos jornalistas na cobertura da crise política (‘eles estão fazendo uma cruzada moral’). Por último, mas não menos importante, Kucinski também critica a atuação de Duda Mendonça no governo – ‘ele atuou dos dois lados do balcão’ – e aponta problemas na área de comunicação do governo.
Sua entrevista:
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Qual a diferença das ‘cartas ácidas’ feitas para o candidato Lula na campanha de 1998 para a ‘carta crítica’ dirigida ao presidente?
Bernardo Kucinski – A própria nomenclatura já tem um significado de mudança. O Lula achava que eu era ácido demais e muito mal-humorado, sempre vendo o lado negativo e então, por sugestão dele mesmo, mudamos para uma coisa mais amena, pois você pode ser crítico sem ser pessimista. O nome não mudou só porque ele virou presidente, mas já na campanha de 2002. Ele achou que não podia sair de manhã com raiva da imprensa, pensando mal das coisas, e a carta ácida realmente era ácida. Então, por exigência dele, mudamos o nome para carta crítica. No sentido de ser algo mais propositivo, menos mal-humorado. Porque na campanha o Duda Mendonça disse para o Lula aquela história de ‘Lula paz e amor’. E você lê aquela coisa do Kucinski e já sai de mau-humor. Isso não é bom. Então, começou ali essa mudança de postura, uma coisa menos ácida. Quando o Lula virou presidente, foi mantido o nome carta crítica.
Como você avalia a relação da imprensa com o presidente Lula?
Kucinski – Sempre foi muito ruim. Ele sempre foi muito maltratado pela imprensa, tirando alguns períodos – como em certo momento da greve de 1978. Fora alguns períodos, ele sempre foi muito desrespeitado. Os jornalistas não aceitam um líder político que não tenha diploma.
Os jornalistas ou os donos dos jornais?
Kucinski – Os jornalistas, não os donos. Os jornalistas não têm respeito com a pessoa do Lula. Há sempre há um pressuposto de que ele vai falar besteira, vai errar, de que ele não conhece as coisas, usando como parâmetro um conceito de saber que é acadêmico. O Lula sempre foi tratado com discriminação e desrespeito. E em momentos cruciais, ele foi bombardeado com difamação. Eu me lembro que alguns momentos específicos, como aquela história do carro que ele vendeu ou dele morar numa casa de favor, coisa que milhões de brasileiros fazem. Tudo era distorcido para mostrá-lo como propenso à corrupção.
Mas ele sabe que como figura pública e ainda mais como presidente que tem telhado de vidro. Ele mesmo já falou sobre isso quando ganhou as eleições.
Kucinski – Claro. Ele tem consciência disso. Esse trato que a imprensa dá ao Lula deveria criar nele uma rejeição à mídia total, mas ele se controla. Interpretando o Lula, eu acho que ele tem uma visão não muito positiva dos jornalistas, por causa de tudo isso. Agora, o erro que o Lula cometeu é quando ele virou presidente. O Lula não soube dissociar ele como pessoa, o político que vem sendo perseguido faz anos, da figura do presidente. O presidente tem por obrigação receber a imprensa. Não importa o que ela vai fazer depois. É uma obrigação institucional. O presidente tem que falar com a imprensa e, através dela, falar com a nação. Eu acho que faltou ao Lula e ao governo a percepção dessa obrigação. O governo começou a tratar mal a imprensa, não da forma que a imprensa tratava mal o Lula – ofendendo, xingando, discriminando. Muito pior, eu acho. Ele eliminou a necessidade da imprensa. Ela passou a se comunicar diretamente, através das falas do presidente, do café do presidente, dos discursos do presidente, que é sempre uma fala vertical. Ele fala e não se submete ao questionamento. O governo até poderia ter feito isso se, ao mesmo tempo, estabelecesse um rito de coletiva, como todos os governos de países importantes fazem. Uma vez, duas vezes por semana ou todos os dias. Sempre que tiver um visitante estrangeiro, fazer uma coletiva. Tem um acontecimento importante, uma coletiva. De uma forma ritualísitca. Sempre no mesmo lugar, com o escudo do Brasil atrás. E isso, o governo Lula não fez.
Quem é contra este tipo de comunicação no governo? O presidente Lula?
Kucinski – A falha é do grupo que chegou ao poder. O PT tem uma tradição curiosa nessa análise. Ele tem propostas de políticas públicas para várias áreas: saúde, educação, agricultura, mas para comunicação não tem. As que ele tem, que os grupos de ativistas chegaram a fazer nunca foram incorporadas pelo partido. Então já começou por aí. E quando se instalou o governo a comunicação foi… eu diria o seguinte: primeiro pela experiência de vida do Lula e a convicção que ele tem que se comunica bem diretamente com o povo, o que aliás acho verdade. Segundo, a presença do Duda Mendonça foi pertubadora. Ele passou a circular no governo de maneira informal. Ele não era ministro de nada, ele era contratado pelo governo para fazer ações de comunicação. Na minha opinião, ele não podia ao mesmo tempo ser palpiteiro do governo e quem ia fazer as ações. Nem as empresas privadas fazem isso. Você apresenta sua demanda, a empresa de comunicação apresenta a proposta e você aprova ou rejeita. Ali não. O Duda ficava dos dois lados do balcão. De maneira informal, mas isso aí prejudicou a percepção pelo governo que ele tinha de criar uma política de comunicação e colocar essa política em um plano estratégico.
Como deveria ser este plano estratégico de comunicação? Deveria ser centralizado? Com quem?
Kucinski – Na forma como o governo foi criado inicialmente, isso deveria ser centralizado com o [ex-ministro Luiz] Gushiken, mas ele não era do ramo. A experiência dele é de campanha, não de comunicação do governo. Talvez por esse motivo e também por outros, ele foi tocando muito na chamada comunicação programada, em que você paga para comunicar, que são ações de propaganda. Agora, comunicação de governo não se restringe a isso. Deveria ter o mínimo de propaganda possível e ter outras formas, que são coletivas, folhetos de informação, relatórios, livros, análises, briefings com a mídia. Isso foi um dos problemas. Não houve essa percepção e não foi por falta de projeto. Eu mesmo fiz inúmeros projetos e foram todos engavetados, e também por uma outra coisa que aconteceu no começo do governo, que foi o seguinte: transferiu-se da vida política do PT um padrão de comunicação que é típico do político, que é a comunicação privilegiada. Quase todo o político tem algum jornalista que ele privilegia, e ele passa informação apenas para ele, há um acordo entre eles. Foi esse o padrão que se seguiu. O padrão de comunicação do governo Lula é por um lado a fala vertical do presidente e por outro os vazamentos, que se tornaram padrão de comunicação. Vazamento de assessores muito próximos.
Os vazamentos desmoralizam o governo, desmoralizam os comunicadores, insuflam a luta interna. Passa-se a fazer uma luta interna através da mídia. Usa-se a mídia para disputa interna. Vira uma distorção. Os vazamentos ou conversas reservadas com jornalistas têm um papel importante, mas ele é acessório. É legitimo chamar um grupo de jornalistas, tentar contextualizar uma situação, baseado no off. Você num certo sentido dá uma orientação, elementos para jornalistas optarem pelas prioridades dele. Isso é legítimo e necessário, mas isso tem que fazer parte de uma política de comunicação. Com o tempo foram se perdendo outras coisas. Você não tem um sistema que decide qual é a fala do dia, você perde oportunidades. Na semana passada mesmo [a entrevista foi feita no dia 04 de dezembro], a CEF pela primeira vez abriu financiamento para a classe média de habitação, depois de 13 anos. Foi anunciado como coisa da empresa, da Caixa. Isso deveria ser coisa do governo, com o Lula anunciando. Não há o menor planejamento. A situação, em vez de melhorar, foi se deteriorando.
O que aconteceu quando a carta crítica vazou para a imprensa em 2004? Como o senhor interpretou o fato?
Kucinski – Eu não dei bola. Certamente foi para me agredir. Quero deixar claro que o jornalista tem o direito de fuçar, descobrir e publicar. O erro está no fato de que a carta crítica é uma conversa reservada entre eu e o presidente que, por deferência dele, é compartilhada por alguns ministros. E alguém vazou. Hoje ela vai para umas 7 ou 8 pessoas. Mas é sempre considerada uma correspondência do presidente, que ele acha conveniente compartilhar. Eu não dei bola para esse vazamento. Tomo certos cuidados. Procuro ser contundente, ir ao ponto. Eu acho que tenho convicções muito democráticas sobre mídia. A carta crítica nunca tem nada de comprometedor. Um vazamento acaba não tendo efeito nenhum.
O senhor critica a forma como a imprensa conduz a crise política em Brasília? O que falta para os jornalistas?
Kucinski – Está faltando tudo. Falta conhecer história, e falta a preocupação em conhecer. Falta operosidade. Eles não trabalham a sério as questões, não vão a fundo. Estou falando do jornalista, do repórter. Você tem aí uma grife, os colunistas. Estes têm conhecimento, bons contatos, cultura, bagagem. O problema é outro.
Qual?
Kucinski – Eles têm um espaço privilegiado na imprensa porque defendem certas posições. Todos eles defendem a política econômica do [ministro da Fazenda Antonio] Palocci, do Banco Central, defendem corte de gasto público, o Estado mínimo. Por isso, eles são premiados com espaços nobres. Há um processo de seleção na verdade. E eles estão em todos os lugares. Você abre o jornal, ele está no jornal. Você liga o rádio, ele está no rádio, você liga a TV, está na TV. Estão em todos os espaços ao mesmo tempo, porque eles estão falando aquilo que o poder quer que ele fale. Você tem exceções, mas elas são contada nos dedos de uma mão, como o Luís Nassif, por exemplo. Em geral, eles são tolerados porque legitimam o jornal. Os dissidentes, os mais críticos também têm o seu espaço, mas é um espaço mais acessório, ocasional, calculado para que ele não influa no tom geral do discurso da mídia.
E os repórteres?
Kucinski – O problema do repórter é que eles estão vivendo um momento muito difícil. De extrema competição, uma carga de trabalho que não deixa espaço para um trabalho aprofundado. E nesse ambiente, com essa carga, nas circunstâncias atuais, criou-se nesse reportariado uma postura muito igual de todos eles. Sendo todos iguais, todos correm menos risco. E qual é a postura igual? Todos acham que todo o governo Lula é corrupto, tudo que todos os ministros fazem é suspeito e qualquer coisa que se faça, alguma coisa tem por trás daquilo. Como o trabalho é uma pauleira, não dá tempo de investigar direito. Aos poucos a gente foi vendo que as acusações viraram matéria; as pautas viraram matérias. Matérias inteiras que deveriam ser o ponto de partida e elas são o ponto de chegada.
Mas isso não é responsabilidade dos editores, diretores dos jornais?
Kucinski – Aí junta a fome com a vontade de comer. Eu não acho que eles [os repórteres] fazem isso porque mandam eles fazerem. Eles fazem isso porque estão possuídos por um sentimento genuíno de indignação. Eles se sentem cruzados de uma cruzada moral. Se você ousar dizer o contrário pode ser repudiado pela categoria. A palavra de ordem é acusar e linchar. Eu acho que daqui a 10 anos vai haver um mea culpa. Vão perceber que três quartos das acusações eram infundadas. Se uma pessoa vai falar com um ministro, isso não quer dizer que tem corrupção. Vão perceber que a tal empresa do Gushiken não teve sacanagem e afundou por causa dessa campanha. Vai ver quantas empresas já quebraram por causa dessa campanha.
E por que a imprensa entrou na campanha de linchar o governo Lula?
Kucinski – Porque o governo Lula decepcionou. Houve uma decepção que começou pequena e foi se aprofundando. E quando estouraram as acusações do Roberto Jefferson, que surgiu o cânone dessa lambança toda, aí a decepção foi total e não houve como esconder. O que está acontecendo é que todo mundo acha que tem que fazer uma acusação. Tem que fazer parte de um processo histórico, como se estivesse pertencendo a uma coisa que uma geração está fazendo: a nossa geração está derrubando um governo corrupto. Todo o jornalista se sente na obrigação de contribuir com isso. Eles acreditam que estão fazendo o bem. Eles estão percebendo a superfície das coisas e não os fundamentos. Eles não percebem que todos que estão acusando o PT sempre foram corruptos. Eles estão discriminando. Acusam o PT e não os outros. A história do [senador mineiro Eduardo] Azeredo, das privatizações, ela aparece muito minimizada, para legitimar a campanha contra o governo Lula. É um fenômeno interessante, parecido com o marcartismo, que aconteceu nos EUA. Anos depois veio a critica ao marcartismo, todo mundo que era vilão virou mocinho e vice-versa.
Qual será o papel da imprensa na próxima eleição?
Kucinski – Não pensei nisso. (…) refletindo profundamente nos nossos papéis, dispostos a não cometer os mesmos erros que já cometemos e dispostos a não passar cheques em branco. Uma pessoa como eu tem uma história de jornalismo, de professor, tenho minhas convicções. Nós temos que levar muito a sério a própria história. Na questão do governo Lula: apostamos no governo Lula, eu apostei no governo Lula. Acho que o governo Lula tem muita coisa boa, mas fragmentada no campo do ensino, da agricultura familiar, da inclusão social. Infelizmente, muitas delas são reversíveis. Algumas não são, como o ProUni. A mídia não está cuidando disso, porque está obcecada pela denúncia. Uma coisa ruim que está acontecendo. Ela só trata de coisas institucionais, não trata do que acontece no dia-a-dia, no real. Mas, fundamentalmente, o nosso governo não foi capaz de mudar o país como ele prometeu. Mudar para sentir que estamos caminhando para alguma coisa, você não muda de um dia para o outro, mas você cria o sentimento da mudança e esse sentimento não foi criado.
Em uma ocasião o senhor disse que o governo Lula deveria ser mais ousado. Em quê?
Kucinski – Na política econômica. Nós fomos ousados em alguns campos sociais, na política externa, mas absolutamente conservadores, retrógrados e eu diria até burros na política econômica. Esta política camuflada por um êxito nas exportações que não tinha nada que ver com a política econômica e muito mais com o cenário internacional. O discurso dominante acabou sendo esse, da continuidade, da estabilidade e não o discurso da mudança. Nós enterramos o nosso próprio discurso da mudança.
O senhor acredita que a ministra Dilma Roussef virou porta-voz dos descontentes dentro do governo?
Kucinski – Não sei.
O senhor pretende sair do governo?
Kucinski – Não vou responder.
Última pergunta: por que o ‘chato do Kucinski’?
Kucinski – Ninguém tem coragem para dizer a verdade para o presidente claramente e eu digo todos os dias de manhã. Eu não estou lá para puxar o saco, elogiar. Eu também não estou lá para infernizar. Estabeleceu-se a partir de um certo momento que eu criei uma forma de tratamento da questão que era importante para o governo e era a única instância onde isso era feito, uma forma crítica que tinha que ser preservada. O Gushiken chegou a formular esta teoria de que eu tinha que ter liberdade total. Mas a turma fala ‘o chato’ por um pouco de brincadeira. Por outro lado é uma coisa que não existe em qualquer governo, é muito raro encontrar.
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Especial para a Agência Repórter Social