É claro que na posição de coordenador de políticas culturais do MinC, o secretário Sérgio Sá Leitão deveria medir suas palavras antes de qualificar quem quer que seja de stalinista ou ex-privilegiado. A essa altura ninguém duvida disso. Nem mesmo o ministro Gilberto Gil, que disse isso a O Globo (segunda-feira, 9/1), como já havia dito em outras ocasiões. Nem mesmo o próprio secretário.
O que não é razoável é que a intempestividade de um novato no serviço público transforme-se no mais relevante acontecimento cultural da temporada e muito menos no termômetro da atuação de todo um ministério.
Deve-se avaliar seriamente o que o ministro Gil tem feito nesses três anos à frente do Ministério da Cultura. Ele montou o projeto da Ancinav, que lhe rendeu muitas críticas, mas foi muito além disso. Injetou no setor audiovisual um ânimo que há muito tempo não se via. Uma das razões sustentadas para que o governo abortasse, no final de 2004, o projeto da Ancinav era a existência nele de vetores que apontavam para a centralização da atividade.
Não é a centralização que se discute agora, mas a forma de distribuição dos recursos públicos para a produção audiovisual. Há uma corrente que defende a pulverização desses recursos; outra, que sustenta que eles deveriam ser aplicados na consolidação de uma indústria cinematográfica voltada para o mercado.
Uma e outra não são excludentes. É dever do Estado garantir meios para o desenvolvimento de uma produção independente e experimental, assim como é mais do que razoável que o poder público atue como mediador na formação de uma indústria que prescinda dos editais públicos para a sua realização, e tenha como meta principal o bom resultado de mercado.
O problema é que a noção de ‘cinema de mercado’ não se esgota no seu próprio rótulo. Não basta que um modelo de construção cinematográfica ou um mecanismo de produção se autodefina como tal para que ele se transforme num produto comercialmente bem-sucedido.
Disputa absurda
Nos últimos dois ou três anos, a atividade cinematográfica e audiovisual brasileira embarcou nessa febre de dicotomias estéreis. Ela tem dificultado a vida do cinema brasileiro em muitos sentidos. Um deles é vender a idéia de que um filme brasileiro é tanto melhor quanto mais se pareça com as formas consagradas na dramaturgia televisiva. Na verdade, os filmes que mais se parecem com produtos imaginados para outras mídias não têm tido grandes registros de sucesso. Enquanto isso, a televisão tem, ela mesma, buscado referência em filmes de sucesso para promover suas adaptações. Isso não chega a ser novidade. Casos como os de Carandiru e Cidade de Deus, para não ir muito mais longe, são rotineiros na televisão americana.
A defesa da centralização da produção, inspirada em exemplos como o de Hollywood, não é muito feliz. Hollywood é um pólo de produção para onde convergem talento e dinheiro privado. Um exemplo análogo de sucesso pode ser identificado no Projac (a Central Globo de Produções), por exemplo.
Já o cinema brasileiro não goza das condições de auto-sustentabilidade que existem no cinema norte-americano e na maior parte da atividade televisiva. Para sobreviver, depende de incentivos que têm como base a renúncia fiscal pelo Estado. É dinheiro que vem de todo o país e que tem que ser aplicado em todo o país. Além disso, muitos dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos têm origem em produções de fora da região sudeste. É o caso de Cinema, aspirinas e urubus e Cidade Baixa, para mencionar apenas dois títulos que permanecem neste momento em cartaz.
O instrumento do artigo 3º da Lei do Audiovisual, agregado à parceria das grandes distribuidoras internacionais e da própria televisão, tem gerado resultados extraordinários. Os 6 milhões de ingressos vendidos por 2 Filhos de Francisco não teriam sido possíveis de outra forma. Nem sucessos recentes como Carandiru. Não se pode descartar isso, assim como não de pode pretender estimular o monolitismo da produção. A começar pelo fato de que nem todos os produtos que se valem deste modelo se tornam Carandiru ou 2 Filhos de Fancisco.
A absurda disputa entre visões conflitantes da maneira como o Estado deve aplicar os parcos recursos que destina à cultura, e em particular à atividade audiovisual, traz ainda em seu bojo a dificuldade de reconhecimento das mudanças de lideranças operadas nessa atividade. Não apenas lideranças políticas, mas de visões afinadas com as demandas atuais, justamente as do mercado.
Modelo de construção
Cinema ‘de mercado’ é aquele que se realiza na bilheteria e não simplesmente na rotulação. O cinema verdadeiramente ‘de mercado’ que se faz hoje é bem diferente do que se fazia há 20 anos, ou 40 anos atrás. E mais: existe uma nova ordem audiovisual que inclui não apenas a convergência entre as mídias, mas toda uma forma original de criação audiovisual, que vai dos jogos eletrônicos ao conteúdo para telefones celulares.
Tal fato tem que ser reconhecido para que haja condições de modernização da atividade. Modelos de construção de produtos audiovisuais, seus mecanismos de produção e sua relação com o público constituem processos dinâmicos. Retardá-los só pode ter conseqüências nefastas tanto para a qualidade quanto para o desempenho do produto audiovisual que é produzido.
Não existe exemplo, no mundo inteiro, de um mercado audiovisual bem-sucedido que prescinda da pluralização. E, no entanto, pluralizar não é estabelecer guetos conflitantes entre pobres e ricos, entre projetos supostamente culturais e projetos supostamente de mercado. Pluralizar é reconhecer as diferenças que existem na sociedade, na maneira de se expressar para ela, na forma de atingi-la.
Cada vez que se propugna a hegemonia de um modelo de construção do audiovisual, o que se está fazendo é promover o enfraquecimento de todos os modelos, inclusive do hegemônico.