‘O Ministério Público e o Poder Executivo voltam a se atritar por causa das atribuições funcionais dos procuradores e dos limites que a Presidência da República, através da Casa Civil, gostaria de impor a elas.
Fatos a sustentar o embate, há dois: o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal sobre o poder do MP de fazer investigações – suspenso por pedido de vistas – e a suspeita de que o procurador Luiz Francisco de Souza moveu ação de improbidade administrativa contra uma empresa (Opportunity) em conluio com a outra parte interessada (Nexxy Capital) na acusação.
A desconfiança envolvendo Luiz Francisco – o ‘desconfiador’ oficial da República nos últimos anos – mostraria, pelo raciocínio vigente no Planalto, como é urgente a necessidade de impor limites às prerrogativas do Ministério Público.
Comprovaria mesmo a tese do ministro José Dirceu sobre a ‘evidente politização do órgão’, cujo resultado tem sido a ocorrência de uma série de ‘abusos inadmissíveis’ que, se não forem coibidos, muito em breve transformarão o MP num valhacouto de ‘pequenas Gestapos’ prontas a agredir o Estado de Direito.
Como o ministro não cita exemplos dos aludidos abusos, adotemos o pressuposto de que a referência seja ao conjunto da obra em matéria de exageros, distorções, leviandades, calúnias e vedetismos em geral produzidos dentro do MP nos últimos anos e, mais especificamente, ao caso de Luiz Francisco.
Provavelmente excetuando apenas o próprio Luiz Francisco – cuja missão não é só advogar em favor da sociedade mas, segundo ele mesmo, ‘destruir o Capital’ -, não há no Ministério Público hoje quem não reconheça a exigência de correções na condução profissional de muitos procuradores.
Necessidade cuja premência não se manifesta de hoje, vem de anos, desde a ampliação dos poderes e da concessão de autonomia ao MP pela Constituição de 1988.
Como de resto acontece com a democracia brasileira, desde o fim do regime militar. As instituições passam por um processo de amadurecimento e aperfeiçoamento que as torna incomparáveis ao que eram, por exemplo, em 1985.
O Executivo, o Legislativo, o Judiciário só mais recentemente, todos vêm avançando e acompanhando as novas demandas de uma sociedade mais exigente.
Tudo isso sem que seja necessário nenhum tipo de ação destrutiva, difamatória, restritiva ou hostil por parte dos cidadãos representados ou por parte daqueles que institucionalmente os representam.
Portanto, os insultos do ministro José Dirceu, ao Ministério Público ou a qualquer outra pessoa física ou jurídica da República, são dispensáveis no tocante às regras da boa educação e inócuos no que tange à evolução dos instrumentos de defesa pública no Brasil.
Simplesmente porque a democracia no País já mostrou que sabe se resolver sem recorrer ao retrocesso, ao autoritarismo ou à submissão da opinião de seu público a governos ou a partidos.
É consistente o bastante para nunca mais ceder ou tremer ante os arreganhos de napoleões de fancaria. Tragam eles a farda ao corpo ou à alma.
O dia seguinte Ao dar respaldo à tese da prefeita Marta Suplicy e condicionar o estabilidade institucional e o futuro do País a uma vitória eleitoral de município, o PT está criando uma armadilha para si e antecipando um ambiente de artificial desequilíbrio político para o dia seguinte às eleições.
Vamos que a prefeita perca, o governo federal e seu partido vão dizer o quê quando nada de mais grave acontecer? Decretar o fim dos tempos, abdicar do poder, condenar o exercício da oposição como crime de lesa-pátria, questionar o resultado eleitoral?
Nenhuma das hipóteses parece cabível nos limites da lógica e do bom senso e, por isso mesmo, certamente não estão inseridas entre as possibilidades táticas do PT para o pós-eleição.
Na tentativa de não deixar a prefeita isolada num momento politicamente desagradável, o presidente do partido, José Genoino, disse que a vitória de Marta ‘é fundamental para São Paulo, para o PT e para as mudanças no País que estão sendo feitas pelo governo Lula’.
Ou seja, ganhar é pressuposto básico para o bem-estar da Nação em geral e o conforto do PT em particular, e perder é alternativa fora de cogitação.
Fruto da alternância de poder franqueada às sociedades democráticas, admira o Partido dos Trabalhadores travar com a população um diálogo cuja preliminar é a da unilateralidade.
Além de ser uma posição desrespeitosa para com os que pensam diferente – pois acusa implícita aposta no desastre -, indica a adoção de um perigoso princípio.
Se a derrota agora arrasa São Paulo e o País, a não-reeleição de Lula em 2006 faz o mundo desabar. E assim, de dois em dois anos, fica o eleitor na boca da urna obrigado a lembrar que só o PT salva.’
Folha de S. Paulo
‘Ministério Público’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 12/09/04
‘Tem sido inestimável para o avanço das instituições brasileiras a existência de um Ministério Público (MP) independente e atuante. Como toda instituição humana, porém, o MP está sujeito a erros. Embora, em tese, busquem a verdade, os promotores são parte no processo e naturalmente por vezes deixam-se levar pelo afã de vencer. Na prática, revelam-se em alguns casos mais interessados em condenar o acusado do que em absolvê-lo caso as provas se mostrem viciadas ou insuficientes.
Não são poucas as vozes que se têm levantado contra ações do MP, a indicar uma suposta extrapolação de seu papel institucional. O órgão é acusado de cometer abusos, de atuar politicamente e de ultrapassar seus limites legais. É nesse contexto que se inscreve a polêmica em torno da competência do MP para realizar investigações criminais. A questão está em exame no Supremo Tribunal Federal, que deverá em breve manifestar-se.
Esta Folha tem defendido que o MP possa gozar de poderes investigatórios, importantes para elucidar casos que a autoridade policial, por alguma razão, não se mostre disposta a esclarecer. Num país como o Brasil, onde a corrupção, o poder de pressão das autoridades e a cultura da impunidade atingem dimensões preocupantes, não é demais ver com suspeição o interesse de políticos e representantes do poder em cercear a atividade de promotores.
Todavia, à luz das posições expostas no amplo debate dos últimos meses, no qual se pronunciaram renomados juristas, é forçoso considerar que o texto constitucional não permite que o MP inicie, por conta própria, investigações e realize diligências. A leitura conjugada dos artigos 129, que trata das funções da instituição, e 144, que versa sobre a segurança pública e dá à Polícia Federal e às polícias civis dos Estados a atribuição das investigações criminais, conduz a essa conclusão, ainda que a hermenêutica jurídica sempre permita outras soluções.
Existem razões teóricas para o constituinte ter levado a efeito essa divisão. A história e a prudência ensinam que é sempre temerário reunir poderes em demasia num único órgão. Assim, reservou-se às polícias a tarefa de realizar os procedimentos investigativos, enquanto o MP ficaria incumbido da peça acusatória. Isso não significa, em absoluto, que o MP tenha sido diminuído, pois a Constituição lhe dá a prerrogativa de ordenar à polícia a instauração de inquéritos e de requisitar diligências, bem como de acompanhá-las. Mais ainda, a Carta encarrega o MP de realizar o controle externo das polícias.
A repartição dos poderes, tal como desenhada na Constituição, é equilibrada. Conceder ao órgão a capacidade de investigar e acusar sem nem mesmo um acompanhamento externo seria excessivo e daria margem a desvios em desfavor da defesa.
Apenas em situações extremas, em que a polícia por alguma eventualidade não responda a um determinado procedimento pedido pelo promotor, aí sim o órgão estaria autorizado a atuar por conta própria, a título de exercer o controle externo.
É fundamental para a democracia brasileira que exista um MP forte e atuante. Porém é imprescindível que a repartição dos poderes se mantenha em equilíbrio, segundo a salutar fórmula de freios e contrapesos.’