Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Romance nos dias do golpe

[do release da editora]


Terceiro romance do jornalista de Moacir Japiassu, Quando alegre partiste – Melodrama de um delirante golpe militar, tem como cenário o Rio de Janeiro, com passagens por Belo Horizonte, através de ações se desencadeando nas ruas, quartéis, redações de jornais e alguns ‘ninhos de amor’ nos quais destaca-se a personagem Vera, nos dias do golpe militar de 1964.


O Rio de Janeiro, embora não fosse mais a capital do Brasil, mantinha-se como centro político do país. Neste universo circulam, expressando-se sempre com naturalidade no português acariocado da classe média nativa, nos dialetos dos migrantes, no jargão dos jornalistas ou na linguagem da caserna, tanto a coluna avançada da guerrilha quanto os encarregados de neutralizá-la. O romance inclui também didáticos recuos no tempo, revisitando, por exemplo, a morte da jovem Aída Cury, jogada do 12º andar de um prédio da Avenida Atlântica, em Copacabana. Assim reproduz a tragédia que agitou o Brasil em 1958 e, simultaneamente, exibe uma das faces do Rio ainda capital da República. As tramas envolvem personagens fictícios e reais (o nome de cada um não corresponde à ‘biografia’ exposta), recurso utilizado com notável habilidade nos livros anteriores A santa do cabaré e Concerto para paixão e desatino. Mas desta vez, Japiassu foi bem mais longe, a tal ponto de ficar difícil até saber se a principal figura, a quem o livro é dedicado, existiu mesmo ou foi inventada.


Apesar da possibilidade de Quando alegre partiste se configurar um roman-à-clef, Japiassu preferiu prestar uma homenagem aos amigos da juventude, velhos e queridos companheiros da Redação da sucursal carioca do jornal Diário de S.Paulo. Ali estão o chefe do grupo Léo Guanabara e os redatores e repórteres Pery Cotta, Elio Gaspari, Paulo Goldrajch, apelidado Fogoió, e Nicodemus Pessoa, competente jornalista e militante das Ligas Camponesas, que era chamado de Baixinho, além do contínuo Mathias. Adalberto Areias, outro redator da sucursal, empresta seu nome a um personagem assaltado por consternação e desenganos. Nem é fácil acreditar, quarenta anos depois, que aquele Brasil perturbador e inquietante, aquele país tão estranho de fato existiu. Quando tudo parece fantasioso demais, Japiassu devolve o leitor à realidade com transcrições de notícias divulgadas nas edições de jornais da época.


O autor


Moacir Japiassu é paraibano de João Pessoa, com raízes também em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, onde vive desde 1970. Jornalista profissional desde 1962, trabalhou em alguns dos mais importantes jornais e revistas do país. Fundou a revista Jornal dos Jornais (Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa, 1999); foi editor-chefe do Fantástico, da Rede Globo, e repórter, redator e apresentador de programas de rádio e televisão.




Prefácio


Augusto Nunes (*)


A conquista da cidade começa pela vitória no campo. A tese moldada por grupos comunistas, vitoriosa na China em 1949 e estendida com sucesso a outros países, nunca vingara no Brasil. Sabe-se agora que pode dar certo, mas utilizada por guerrilheiros da literatura. Pelo menos foi assim com o escritor Moacir Japiassu.


O País constatou há pouco tempo que o jornalista brilhante era um romancista na clandestinidade. Paraibano confiscado pelas metrópoles do Sul quando mal saíra da adolescência, não demorou a ganhar fama e respeito entre craques da imprensa. O Nordeste produzira um repórter talentoso, admirável domador de letras, capaz de capturar a palavra exata com a naturalidade certeira do sertanejo que laça a rês fugidia. Poucos aprendem a localizar a fronteira difusa que separa o deboche da mordacidade. Japiassu nasceu sabendo onde fica.


Sempre fez bonito nas redações. Como saber que aquele muito ainda era pouco? Como perceber o truque, a patranha, o disfarce do estrategista na preparação da guerra marcada para a virada do Milênio? Até que Japiassu, entrincheirado no lado paulista da Serra da Bocaina, senhor da fortaleza batizada de Sítio Maravalha, lançou A Santa do Cabaré. E os barulhos no sertão começaram.


A multidão de personagens forjada pelo extraordinário inventor de tipos foi posta em movimento no fim de 2002, mas induzida a mover-se nos tempos do Estado Novo de Getúlio Vargas, e num universo essencialmente rural. Até cego de feira entendeu que por trás daquilo havia um comandante singular. Havia. O guerrilheiro homiziado no Maravalha tem cabelos de fogo, fogo nas ventas e virtudes tão raras quanto as marcas de nascença.


O escritor Moacir Japiassu cavalga o idioma com a destreza de amansador de potros. Reproduz diálogos exatamente como fala a gente do lugar, com regionalismos que incorporam incorreções gramaticais sem jamais escorregar na caricatura. Conta histórias no ritmo veloz do cantador de emboladas, com a dicção esplêndida que permite a qualquer ouvinte tudo entender.


O enredo do romance se apóia na saga de uma bela jovem que, nascida em berço cobiçado, vira prostituta. Ao longo da narrativa, surgem no caminho da quenga ilustre, em tramas costuradas paralelamente, esquisitices e exotismos que só imaginações poderosas conseguiriam produzir. O fotógrafo que abandona o emprego na prefeitura e se transforma em perigoso cangaceiro. O prefeito da cidadezinha que é doido de pedra – tão doido que aciona um canhão antigo só para ver se funciona. O beato que, para evitar tanta sangueira na guerra iminente entre a polícia e o cangaço, escava um providencial desfiladeiro usando apenas os poderes que Deus lhe deu.


Tanta gente inventada parece pouco para Japiassu: ele expropria da vida real personagens que, de alma redesenhada, aumentam a confusão ao pousar no mundo delirante cuja capital é o cabaré do lugarejo e se estende por imensidões ressequidas. Nesse cenário se consuma a conquista da caatinga, consolida-se o domínio do sertão. Anexadas tais paragens, o senhor do Maravalha partirá para a invasão de cidades maiores, para incursões por terras distantes. Mas sabe que a guerra no campo não terminou.


Esse momento virá no crepúsculo de 2003, com o lançamento de Concerto para Paixão e Desatino. Para adonar-se do campo e preparar o avanço sobre as cidades, Japiassu empreendeu um movimento de causar inveja ao mais audacioso tenente da Coluna Prestes. Em vez de seguir além do Estado Novo aprisionado nas páginas de A Santa do Cabaré, preferiu recuar no tempo. E, simultaneamente, avançar no espaço.


Ele rege o Concerto… seguindo partituras montadas sobre episódios verídicos ocorridos no prelúdio da Revolução de 1930. Mantém sob estreita vigilância os coronéis do açúcar e o cotidiano nos engenhos. Mas agora, sempre a bordo de personagens reais ou imaginários, Japiassu circula pela capital da Paraíba (que ainda não se chama João Pessoa), cruza a divisa de Pernambuco, explora ruas ou becos do Recife. E vai adicionando armas ao diversificado arsenal exibido nos combates do livro anterior.


Constata-se, por exemplo, que ninguém sabe xingar tão vigorosamente quanto as criaturas de Moacir Japiassu. Que poucos casais literários conseguem amar-se com tamanha sensualidade. Que cabe na palma da mão a lista de escritores brasileiros capazes de reapresentar com tanta nitidez atores da história brasileira quase desconhecidos pela maioria dos leitores.


Especialmente impressionante é o retrato, pleno de matizes, que virtualmente ressuscita José Américo de Almeida – escritor dos bons, chefe político admirado e temido, além de secretário de Segurança do governo de João Pessoa, cujo assassinato configura o clímax do romance. Pode-se captar o tom autoritário da voz do Doutor Zé Américo, mirar-lhe os olhos míopes camuflados por lentes grossas, acompanhá-lo na movimentação que precede o assassinato, seguir-lhe os passos nos dramáticos momentos que virão.


Nesse Nordeste conflagrado, movem-se personagens que compõem o riquíssimo painel humano enxergado pelo autor. Há os canalhas absolutos, mas quase todos os tipos sugerem que, para Japiassu, não existem heróis sem pecados, mesmo seres detestáveis são capazes de gestos generosos.


Não há como catalogar, baseado em códigos simplificadores, o menino sertanejo filho de padre, que assovia como se abrigasse uma orquestra no peito, absorve partituras enormes depois de ouvi-las uma única vez, gosta de ler relíquias bibliográficas, seduz a professora protegida do coronel e, quando necessário, tortura com incomparável selvageria e mata com injeções de conteúdo apavorante, valendo-se de conhecimentos assimilados como farmacêutico aprendiz.


Japiassu não procura decifrá-lo, como não tenta explicar os mistérios do mundo. Ele é um contador de coisas. Mostra João Pessoa ou João Dantas, como todos os outros, com a nitidez que a compaixão relativiza. O ponto final do romance é a senha para o encerramento dos barulhos no campo. A próxima etapa da guerra será travada em frentes urbanas, e no Brasil de 1964.


O alvo principal é o Rio de Janeiro, que deixara de ser capital mas se mantinha como centro político do país. Naquele universo circulam, expressando-se sempre com naturalidade no português acariocado da classe média nativa, nos dialetos dos migrantes, no jargão dos jornalistas ou na linguagem da caserna, tanto a coluna avançada da guerrilha quanto os encarregados de neutralizá-la. Terminada a leitura de Quando Alegre Partiste, fica evidente que o romancista agora domina a cidade.


Paradoxalmente, o triunfo deve ser creditado a um exército de vencidos. Ou grupo, porque nesta obra há menos atores em cena. Eles vão desembarcando nas páginas com método e minúcia, liderados por figuras que, como o Tutu Caramujo de Drummond, cismam na derrota incomparável, ou logo estarão cismando. Inspirado no golpe militar de 1964, e em torno dele costurado, o romance inclui didáticos recuos no tempo. Em flashes precisos, por exemplo, revisita a morte da jovem Aída Cúri. Assim reproduz a tragédia que agitou o Brasil em 1958 e, simultaneamente, exibe uma das faces do Rio ainda capital da República.


As tramas envolvem personagens fictícios e reais, recurso utilizado com notável habilidade nos romances anteriores. Mas desta vez Japiassu foi bem mais longe. Ele se valeu do artifício para implodir limites, cruzar divisas demarcadas pela tradição, fundir territórios ou figuras. Fica difícil até saber se a principal figura, a quem Japiassu dedica o livro, existiu mesmo ou foi inventada.


Nem é fácil acreditar, quarenta anos depois, que aquele Brasil perturbador e inquietante, aquele país tão estranho de fato existiu. Quando tudo parece fantasioso demais – quando se contempla um general que subjuga adversários indefesos ou conquista objetos do desejo ainda nas fímbrias da adolescência –, Japiassu devolve o leitor à realidade com transcrições de notícias divulgadas nas edições de jornais da época. Aquilo aconteceu.


Ou não? Ou apenas em parte? Ou de modo um pouco diferente? Induzir leitores a esse tipo de flutuação é uma graça concedida só a grandes escritores. Com ela Japiassu foi contemplado pelos deuses da literatura.


(*) Jornalista