Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A face perversa do Google

“Todos conhecem os benefícios e as coisas maravilhosas que o Google nos proporciona. Poucos, entretanto, têm consciência dos riscos decorrentes da destruição de sua privacidade, do rastreamento permanente de suas consultas e do uso antiético de informações pessoais por esse monstro digital, que indexa, armazena e manipula milhões de terabytes por dia.”

Essas advertências são do pesquisador norte-americano Scott Cleland, no livro Busque e Destrua: Por que você não pode confiar no Google Inc., que foi lançado na semana passada em São Paulo pela Editora Matrix. Depois de ler o livro e entrevistar Cleland, acho que o mundo deveria preocupar-se muito mais com os riscos e problemas apontados pelo pesquisador.

O livro acusa o Google de não seguir os mais elementares padrões éticos, como o respeito à intimidade das pessoas, à propriedade intelectual e à honestidade das informações. E o faz repetidamente – diz Scott Cleland: “Em 2011, a empresa pagou multa no valor de US$ 500 milhões por ter anunciado de forma deliberada e consciente por sete anos, as importações de um medicamento controlado ilegal e inseguro, segundo as leis norte-americanas”.

Poder absoluto

É provável que a maioria das pessoas não se preocupe com o tamanho e o poder do Google. Mas, para Cleland, essa corporação gigantesca assusta porque nunca existiu empresa tão grande e tão poderosa quanto esse Big Brother, ou Grande Irmão (personagem criada pelo escritor George Orwell, em seu livro 1984).

O poder do Google cresce de forma aterradora, adverte o autor norte-americano. E lembra a frase do historiador, britânico Lord Acton, que escreveu: “O poder tende a corromper. E o poder absoluto corrompe absolutamente”.

O Google caminha para a consolidação do pior dos monopólios em âmbito mundial: o monopólio da informação. “É o que eu chamo de googlepólio. Mais do que isso: o Google rastreia tudo que você faz online. Invade sua privacidade e atua como uma verdadeira agência de espionagem.”

Cleland levanta questões cruciais, como esta: “Será que os líderes do Google – os fundadores Larry Page e Sergey Brin e o presidente contratado Eric Schmidt – estão se afastando de sua promessa de tornar o mundo um lugar melhor? Ou estão disfarçando com tamanha eficiência seus verdadeiros objetivos que ninguém foi capaz de notar?”

Advertências

O livro de Scott Cleland não é uma condenação paranoica do Google, embora escrito numa linguagem realmente dura. O que ele faz, sim, é uma radiografia dos problemas dessa empresa global. No apêndice do livro, o autor relaciona 726 documentos, artigos e pesquisas sobre a empresa, seus processos e conflitos. Como especialista nos riscos da internet e das redes sociais, Cleland já testemunhou três vezes perante o Congresso americano.

Entre os capítulos do livro, há temas que chocam, mas sua argumentação é consistente, com base em fatos, números e processos judiciais. Eis os títulos desses capítulos: “O que é seu é do Google; A segurança é o calcanhar de Aquiles do Google; Googlepólio; Um pântano de conflitos ocultos; Poder incontrolado; Por que o Google é destrutivo; A estrada digital para a servidão; Para onde o Google nos está levando? O que devemos fazer a respeito? A tirania do planejamento central; O código Google”.

Os dois Googles

Cleland lembra que ninguém está propondo a destruição do Google, até porque o mundo hoje depende dele. Por isso, é essencial que a empresa corrija seus vícios e maus procedimentos. Fiscalizar, corrigir e punir são tarefas que cabem, prioritariamente, à Justiça, ao Ministério Público, aos governos e a todas as entidades responsáveis pela proteção do direito dos cidadãos.

É preciso usar todos os meios de comunicação, a começar da internet, do próprio Google e do YouTube (que pertence a essa empresa) para esclarecer os usuários e, em especial, para advertir nossos jovens sobre os riscos e educá-los como internautas, para que saibam utilizar as informações ali contidas, com o espírito crítico que esse novo Leviatã digital nos impõe.

Eu e centenas de milhões de usuários sabemos quais são os benefícios e a utilidade do Google, como maior acervo de informações que a humanidade já produziu, ao alcance de mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo. E de graça.

De graça?

Na realidade, essa suposta gratuidade do Google é a grande isca para atrair audiência. A partir daí, o Google se transforma numa gigantesca máquina de publicidade que fatura bilhões. Seus parceiros são todos os demais sites, portais e blogs que cedem seus espaços em troca de uma remuneração próxima de zero. Como um polvo, o Google invade e ocupa todos os espaços livres de todos os portais, sites e blogs.

Precisamos ser sempre críticos e independentes diante do Google e da internet como um todo, apontando seus riscos e malefícios, em lugar de apenas ressaltar suas maravilhas.

Meu conselho é este: seja cauteloso e desconfie sempre, leitor, inclusive dos melhores projetos colaborativos, mesmo aqueles aparente ou comprovadamente filantrópicos e não comerciais, como a Wikipédia. Duvide sempre, pois a internet é um oceano de armadilhas e riscos. Leia em meu site pessoal (www.ethevaldo.com.br) mais trechos da entrevista de Scott Cleland.

A visão de Scott Cleland

Quem é Scott Cleland? O autor do livro Busque e Destrua, lançado pela Editora Matrix em tradução brasileira no dia 3 de julho, é pesquisador e consultor. Fundou a Precursor LLC, empresa de consultoria que faz pesquisas sobre o futuro da internet e de inovação em sentido amplo. Cleland criou também a Netcompetition.org, entidade que estimula a competição e o desenvolvimento das empresas de serviços de banda larga.

Scott Cleland não é um panfletário em busca de visibilidade e de uma fatia, ainda que minúscula, dos imensos lucros do Google. Como especialista em internet e Google, ele já foi convidado e compareceu ao Congresso dos Estados Unidos para testemunhar contra o Google, a quem acusa de ser um monopólio – aliás, “um monopólio predador”.

O especialista diz que, como todos sabemos, o Google tem muita coisa boa, não apenas uma grande parcela de seu conteúdo, mas também seus novos serviços. A proposta que a empresa anunciou ao nascer há 14 anos era ajudar a humanidade a encontrar até agulhas perdidas no imenso palheiro da informação do mundo. Hoje, no entanto, ela diz simplesmente que seu propósito é organizar toda a informação do mundo.

O Google é muito mais do que um gigante de buscas de informações na internet, mas oferece um conjunto de serviços e ferramentas, entre os quais e-mail, a rede social, mapas, o Android (sistema operacional móvel) e está entrando também na área de hardware.

A grande ameaça que Scott Cleland denuncia é risco que o Google significa para a privacidade de milhões de pessoas, assim como à propriedade intelectual. Sua previsão do futuro dessa empresa é catastrófica: “Em cinco anos poderão ocorrer desastres na área de segurança e muitos problemas de soberania. Aliás, o Google não respeita a soberania dos países”.

Qual é a sua avaliação do Google?

Scott Cleland – Eu diria que ele é o perfeito lobo na pele de um cordeiro, da fábula popular. Na realidade, na capa de meu livro, a ilustração é de um Tiranossaurus rex (o T-Rex), com pele de cordeiro, até porque diante da sede do Google, na Califórnia, há um imenso esqueleto do T-Rex. O Google tem cara de bonzinho, mas é mau. Que mensagem você acha que os fundadores do Google estavam tentando transmitir aos funcionários da empresa e ao mundo ao escolher como seu mascote não-oficial o predador mais temido e destrutivo que já existiu na face da Terra?

Qual é a ética ou a declaração de princípios do Google?

S.C. – O Google vende sua própria imagem como uma empresa confiável, ao adotar o lema “Não seja mau” (Dont be evil), numa espécie de convite para conquistar a confiança das pessoas. É claro que ela é uma companhia incrível, que faz muitas coisas boas. Contudo, ela acha que o fato de fazer o bem lhe permite fazer coisas erradas. O “Não seja mau” é o padrão ético mais elementar já criado pela empresa. No entanto, na prática, ele permite que se faça qualquer coisa, mesmo que isso se aproxime do que é, indiscutivelmente, mau. Todos os padrões religiosos ou éticos promovem o respeito pelas pessoas, pela propriedade e pela honestidade. Mas o Google desrespeita as pessoas, a propriedade e a honestidade em série. A empresa atropela a regra dourada a do “não faça a outrem o que não quer que lhe façam”. Ela sempre trata as pessoas de uma forma como não desejaria ser tratada. Na realidade, o Google significa a maior ameaça à privacidade de seus usuários em todo o mundo e adota uma das piores políticas de proteção à propriedade intelectual do mundo.

Mais de 70% das pessoas que entrevistei, todas com escolaridade de nível universitário, disseram não considerar a privacidade um direito importante para os cidadãos, numa pesquisa que conduzi há quatro anos. Que acha disso?

S.C. – O fato de uma pessoa não ter consciência do valor de um direito fundamental não a isenta dos riscos que a violação desse direito poderá trazer. É bom lembrar que o Google compilou e coletou, sem permissão, mais informações sobre mais pessoas do que qualquer outra entidade na história. E não presta contas para quase ninguém. O princípio que o Google alega – do “não seja mau” – implica moralidade, mas a empresa não tem nenhuma consideração pelas pessoas, pela propriedade e pela verdade.

E quanto ao tamanho e ao poder do Google?

S.C. – O Google é um gigante. Ele centraliza a informação de um modo sem precedente. Combinada com a ausência de prestação de contas e com o desrespeito pela lei, essa concentração do poder das informações disponíveis em todo o mundo se transforma na mais completa receita para a tirania. Lembre-se de que informação é poder. Como disse Lorde Acton: “O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, ou seja, de forma absoluta”.

A Apple e sua nuvem (iCloud) também não são ameaças à privacidade?

S.C. – A computação em nuvem traz sempre alguma ameaça potencial. O problema com o Google é que ele diz que podemos confiar na sua segurança, mas ela é, na realidade, muito fraca. Ele não se previne de invasões, mas só toma providências se forem acionados, amigavelmente ou via tribunais. Em outras palavras: só consertam a porta depois que ela foi arrombada. Tudo em nome de uma suposta abertura. Para o Google, “ser aberto é o mais importante”. O caso da Apple é diferente. Quando alguém coloca um aplicativo na App Store, ela valida, porque quer ter certeza de que não é um malware, ou um aplicativo (app) ruim. O Google permite que todo mundo entre lá e só remove as coisas ruins se houver reclamações.

Mas com a importância que o Google adquiriu em nossa vida, como podemos viver sem ele?

S.C. – É muito difícil. São, realmente, duas faces. De um lado, o Google faz muitas coisas boas, tem ótimos produtos. De outro, ele esconde os problemas. O que nos cabe é abrir bem os olhos e não confiar cegamente. Você quer fazer uma pesquisa? Tudo bem, faça-a. Ela é muito boa. Mas quando falamos em política de privacidade, há alguns produtos que não deveriam ser utilizados. Não use o Gmail. O que é o Google+? Ele está fazendo o Google social e integrando tudo o que você tem em apenas um arquivo. O grande problema que falo em meu livro é a supercentralização. Nunca houve uma companhia tão ambiciosa, que quisesse coletar todas as informações do mundo. Eles dizem tudo mesmo, e isso inclui suas informações privadas também.

Que tipo de providências o mundo deve tomar?

S.C. – Primeira coisa a fazer: exigir que o Google nos trate como devemos ser tratados. Segunda: aplicar ao Google em escala mundial a força da lei que o impeça de fazer o que quer sem dar satisfação a ninguém. Na realidade, o Google age como se fosse uma bolha, sem qualquer obrigação de seguir as mesmas regras e éticas que as demais pessoas seguem.

Qual é a formação profissional dos dirigentes do Google?

S.C. – O primeiro escalão é formado só de engenheiros. Esse é o problema. A empresa reflete a visão do engenheiro. Os engenheiros do Google deformam o mundo online. Querem impor-nos uma espécie de igualitarismo, no qual não há propriedade, não há privacidade, e ninguém pode dizer não a ninguém.

Qual é a posição do Google diante da pirataria?

S.C. – O Google não faz pirataria, a rigor. Ele tem, sim, interesse político e financeiro em minar o conteúdo alheio. Paralelamente, valendo-se do monopólio de busca de fato que detém, o Google está tentando criar seu próprio conteúdo: Youtube, Maps, Google+. Com isso, eles querem ser os primeiros em todas as áreas, tanto em produtos quanto em conteúdo. E ninguém consegue competir com eles. Eles são donos do baralho, ficam com as boas cartas e distribuem as ruins para os outros jogadores. Isso é trapaça.

Um decálogo satírico das diretrizes do Google

Cleland já compilou até um código satírico das dez diretrizes que orientam a ação do Google. Quais são essas “diretrizes”?

1. A regra básica do Google: Quem controla as informações alheias governa.

2. A regra dourada do Google: Trate os outros da forma como o Google não quer ser tratado.

3. O relativismo moral do Google: Inferir que outros são maus faz o Google parecer ético.

4. A bússola moral do Google: “Mau é aquilo que Sergey (um dos fundadores do Google) diz que é mau” – Eric Schmidt, presidente ou chairman.

5. O código de ética do Google: “A política do Google com relação a muitas coisas é aproximar-se ao máximo dos limites do obscuro e não cruzá-los” – Eric Schmidt

6. O princípio básico do Google: Se a coisa não aumenta, ela não pode ser monopolizada.

7. A lei da liberdade da Google: “Nasce um idiota a cada minuto”.

8. A lei da privacidade da Google: A análise de perfis está no olho de quem vê.

9. A lei de propriedade da Google: Tudo que é bom vem para aqueles que se apoderam dele. Por outras palavras, apodere-se de algo para dele obter o melhor resultado.

10. A lei da inovação da Google: Se no princípio você não obteve êxito, compre aquilo que obteve.

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[Ethevaldo Siqueira é colunista do Estado de S.Paulo]