Informação e emoção são dois substantivos abstratos difíceis de combinar, a não ser nas transmissões esportivas da TV brasileira, sobretudo quando o assunto é futebol. A cobertura da final da Libertadores entre Corinthians e Boca Juniors, no Pacaembu, na quarta-feira (4/7), é um bom exemplo da preocupação dos profissionais em manifestar seu desejo de vitória, misturando os papeis de jornalista e torcedor.
Antes que os Gaviões da Fiel lancem suas garras sobre o signatário, esclareço de saída que as críticas nada têm a ver com a vitória do Corinthians, que jogou muito melhor que o time argentino e mereceu conquistar o título inédito.
A questão está no comportamento do locutor Cleber Machado, dos comentaristas Caio Ribeiro e Arnaldo Cesar Coelho e do repórter Mauro Naves, da TV Globo. Nos últimos 20 minutos do segundo tempo, quando o Corinthians já vencia a partida, intensificou-se a catimba de ambos os lados. Emerson abusou de provocações e da prática do antijogo. Em vez de condenar a atitude antidesportiva, Caio Ribeiro disse que o atacante estava sendo inteligente. Inteligente sob que ponto de vista? Do analista de um espetáculo de futebol ou do ponto de vista do torcedor?
O ex-juiz de futebol e comentarista de arbitragem Arnaldo Cezar Coelho deixou escapar: “Esses argentinos não sabem perder”. Nenhuma crítica ao antijogo de Emerson, que precisou ser escoltado pelo juiz para deixar o campo, cercado por jogadores argentinos, dois minutos antes do encerramento . O repórter Mauro Naves e o locutor Cleber Machado não registraram o fato de que, após o primeiro gol corintiano, os gandulas simplesmente desapareceram. Mas as imagens mostravam a ausência deles no gramado. Por que o silêncio?
Valores estratosféricos
O comportamento não é exclusivo desses profissionais, muito menos da TV Globo. Ele predomina em quase todas as transmissões de futebol que envolvem clubes de grande torcida e vem desde os tempos do rádio, inspirado na estratégia montada por Mário Filho (1908-1966) para popularizar o futebol. É bastante conhecida a anedota uruguaia segundo a qual um apaixonado locutor brasileiro de rádio teria narrado assim o resultado do “Maracanazo”, em 1950: “Uruguai, dois golzinhos, Brasil, um golaço”.
Uma das qualidades da televisão é permitir ao espectador exercer o papel de fiscal da cobertura. Num jogo transmitido com mais de 10 câmeras e sofisticados recursos de edição, as alternativas de imagem são tantas que o diretor de TV passe a ser uma figura-chave para garantir transparência à narrativa. Por isso, um comentarista de arbitragem esperto só se pronuncia diante de um lance polêmico depois de exibido o VT. E ainda assim erra.
Em qualquer outra área do jornalismo, a parcialidade na apuração e divulgação da notícia merece condenação. O leitor/espectador reage à parcialidade quando percebe a manipulação na cobertura de política, de economia ou de cidades. Imagine um repórter político afirmando no ar que o partido X não sabe perder a eleição ou que o deputado Y, acusado de suborno, teve uma atitude inteligente ao não comparecer a uma audiência na comissão de ética da Câmara.
Para entender essa lógica de cobertura, em que se toma partido de um dos lados, principalmente quando o oponente é de outro país – e se for argentino, pior ainda –, é essencial partir da ideia de que o infotainment – conceito em que o entretenimento predomina sobre a informação – deixa a objetividade jornalística em segundo plano. Em seu lugar entra o pitoresco, o engraçado.
No futebol brasileiro, o que mais substitui a objetividade jornalística é paixão aparente, que pretende levar o espectador a se identificar com o locutor ou comentarista. Trata-se de uma espécie de catarse, em que o espectador-torcedor sente-se gratificado quando o narrador expressa o sentimento dele, espectador. Essa atitude estabelece uma identificação e, consequentemente, uma fidelização.
O objetivo maior é garantir audiência, palavra-chave da televisão comercial. Naquela quarta-feira, ele foi alcançado. A medição instantânea do Ibope registrou 48 pontos na Região Metropolitana de São Paulo, com pico de 54 pontos e share de 75%. Isso significa de que cada quatro aparelhos de TV ligados, três estavam na Globo, ou seja, mais de 3 milhões de domicílios sintonizados no futebol, sem falar naqueles que assistiram ao jogo pela Fox, o canal de assinatura que detém os direitos da Copa Libertadores. Esses números ajudam a entender os altíssimos valores das cotas de anunciantes nas transmissões de futebol.
Saudade confessa
Se essa estratégia é bem sucedida, por que devemos criticá-la? Porque o produto vendido pela TV traz a rubrica jornalismo esportivo e o jornalismo deve obedecer a determinadas regras de objetividade, isenção e tratamento da informação que costumam ser desconsideras em nome dos interesses comerciais e políticos. Novamente vale dizer que essas distorções na narração esportiva começaram no rádio. Nos anos 1960, o Atlético Mineiro tinha um quarto-zagueiro chamado Grapete. Pois não é que o locutor da Rádio Continental do Rio passou o jogo inteiro chamando o rapaz de Guaraná, porque a transmissão era patrocinada pela Brahma?
A decisão do Supremo Tribunal Federal de extinguir a obrigatoriedade do diploma de nível superior para o exercício profissional acabou reforçando o poder das empresas de comunicação na formulação dos padrões éticos do jornalismo. Como não existe um Conselho Federal que regule o comportamento dos jornalistas, as regras ficam por conta de quem paga os salários. O problema principal não é a obrigatoriedade do diploma, mas a inexistência absoluta de um padrão de conduta que norteie a atividade jornalística. .
No meio desse imbróglio, vale destacar o comportamento do comentarista Walter Casagrande. Ídolo corintiano, ele teria motivos de sobra para embarcar na euforia dos companheiros de transmissão, mas se limitou a uma confissão bonita de que pela primeira vez sentia saudades de estar em campo. Pelo menos ele conseguiu combinar informação e emoção.
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[João Batista de Abreu é jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense]