Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Descompromisso com a verdade histórica

O ano começa com a revelação de duas quedas importantes: a de Boris Casoy e da audiência do Jornal Nacional. Sobre a saída do apresentador do Jornal da Record, as especulações de sempre. Entre elas, como virou moda na nossa mídia em relação a qualquer fato polêmico, atribui-se sua saída da emissora à interferência direta do Palácio do Planalto. Quanto à audiência do Jornal Nacional, o que chama a atenção é que mesmo no período mais agudo da crise política (segundo semestre de 2005), quando o JN dedicava praticamente todo o seu tempo às denúncias e aos escândalos, houve queda em relação à audiência média do mesmo período em 2004: 39 pontos versus 35, em média. Seria essa uma indicação de que o Hommer Simpson do William Bonner não é tão bobo quanto parece? [ver remissões abaixo]

Mas 2006 começa ainda com outra revelação (confirmação) que lava a alma de muitos de nós que por mais de duas décadas temos estudado o jornalismo oficial da Globo e, sobretudo, sua interferência na política brasileira. Refiro-me à entrevista de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho – o Boni – concedida a Roberto D’Avila e que foi ao ar no apagar das luzes de 2005, na quarta-feira, 28 de dezembro, pela TV Cultura. Nela, o ex-diretor da Rede Globo, em relação à cobertura do famoso Comício da Praça da Sé, de 25 de janeiro de 1984, afirma textualmente:

‘A campanha das diretas foi uma censura dupla: primeiro a censura da censura, depois a censura do doutor Roberto [Marinho]. Como a televisão é uma concessão do serviço público, eles [os militares] sempre mantinham uma pressão muito grande dentro da televisão. No momento das Diretas-Já eles ameaçaram claramente a Globo de perder a concessão ou de interferir mais duramente no entretenimento. Então, o doutor Roberto não queria que se falasse em Diretas-Já. Eu fui o emissário final do pessoal do jornalismo na conversa com doutor Roberto e ele permitiu que a gente transmitisse aquilo ali dizendo que havia um show pró-Diretas-Já, mas sem a participação de nenhum dos discursantes, quer dizer, a palavra e o que se dizia, estava censurado.’ [‘Caso Diretas-Já foi ‘censura dupla’, diz Boni‘]

Aí está. Vinte e dois anos depois (e por que só agora?), alguém que era parte da engrenagem – e, portanto, co-responsável – vem a público e confirma o que até então havia sido sistematicamente negado pela versão oficial da Globo: houve, sim, censura interna; houve, sim, boicote à campanha das Diretas Já.

‘Ele não proibiu nada’

Ainda em 1984, em artigo escrito com Murilo C. Ramos e publicado na Revista de Cultura Vozes (‘A televisão no Brasil: desinformação e democracia’, Ano 78, nº 9, págs. 33-48), afirmávamos que…

‘…do ponto de vista da televisão, o fato central foi a omissão de cobertura, por parte da Rede Globo, de qualquer evento relacionado com a campanha das Diretas-Já até duas semanas antes da votação da Emenda Dante de Oliveira. (…) Em seguida a Curitiba, o outro grande evento da campanha pelas Diretas-Já aconteceu na cidade de São Paulo, no dia 25 de janeiro. Naquele dia, feriado por ser aniversário da cidade, entre 250 a 300 mil pessoas foram à Praça da Sé para participar do comício. Impossibilitada de ignorar inteiramente o fato, pois a campanha a essa altura já estava sendo coberta por emissoras concorrentes, a Rede Globo registrou o comício no Jornal Nacional, mas o fez de maneira distorcida, apresentando-o como se fosse apenas mais um evento em comemoração ao aniversário da cidade, minimizando o ato político e maximizando a presença de consagrados artistas populares.’

Essa nunca foi, no entanto, a versão oficial da Rede Globo.

Em artigo que fez publicar em O Globo, em setembro de 2003, com o sugestivo título ‘A Globo não fez campanha; fez bom jornalismo‘ (rolar a página), o diretor-executivo de Jornalismo da Rede Globo reabriu o debate sobre o tema. Referindo-se às chamadas que haviam sido colocadas no ar em comemoração aos 34 anos do Jornal Nacional, ele afirmou que uma delas havia contribuído ‘para rechaçar de vez uma das mais graves acusações que o JN já sofreu: a de que não cobriu o comício das diretas, na Praça da Sé, em São Paulo’.

E cita nominalmente algumas das pessoas que fazem essa ‘grave acusação’: Eugênio Bucci, Mario Sérgio Conti, Luiz Felipe Miguel e ‘até mesmo’ o Dicionário Histórico Biográfico (sic) da Fundação Getúlio Vargas.

A mesma versão é reafirmada no livro do Projeto Memória Globo, Jornal Nacional – A notícia faz história, publicado por Jorge Zahar Editor em 2004. Lá está escrito que…

‘…com o passar dos anos, fatos misturaram-se a mitos até que uma versão falsa ganhasse as páginas de muitos livros sobre o assunto [a cobertura da Rede Globo à campanha das Diretas-Já]: a Globo teria omitido que o comício era uma manifestação pelas diretas; em vez disso, teria dito que se tratava apenas de uma festa em comemoração aos 430 anos da cidade de São Paulo’ (pág. 157).

Já na biografia de Roberto Marinho, escrita por Pedro Bial (Jorge Zahar Editor, 2005), está o depoimento de Roberto Irineu Marinho que diz:

‘Eu fui conversar com o papai, e ele não proibiu nada. Ele disse o seguinte: ‘Vocês tomem cuidado, porque isso está sendo uma coisa tremendamente sensível com os militares’'(pág. 286).

‘Bom jornalismo’

E agora José?

Agora – e mais uma vez – fica fartamente claro que a memória oficial da Globo nem sempre corresponde à verdade histórica.

O último exemplo: a série sobre o ex-presidente Juscelino Kubitschek – que está no ar – certamente não vai mostrar a posição da Globo e do doutor Roberto Marinho sobre JK. Inimigos mortais, a ele fizeram ferrenha oposição na década de 1950. Como no tempo de Getúlio Vargas, a posição da Globo era: ‘JK não pode ser candidato; se for, não pode ser eleito; se eleito, não pode assumir, se assumir não pode governar.’

Que não se tenha dúvida sobre as oscilações da Globo. O que hoje se considera ‘bom jornalismo’ pode não ter qualquer compromisso com a verdade histórica e ser apenas a defesa de seus próprios interesses. Agora e sempre.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)