Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“Regularização de rádios comunitárias é questão de vontade política”

Uma das vitórias da Cúpula dos Povos foi a união popular contra o fechamento da rádio Cúpula, no domingo, 17 de junho, dia em que a mobilização recebia seu maior público no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Presente ao episódio, o jornalista Arthur William, representante brasileiro da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc), foi um dos negociadores contra a interrupção das transmissões, que por fim explicitou quão rápido uma licença pode ser emitida.

Em entrevista à Carta Maior, ele relembra o episódio para denunciar como as rádios comunitárias são oficialmente discriminadas e o quanto é necessário a mudança legal para que elas contribuam com a realidade política, social, econômica e tecnológica da democracia brasileira nos anos 2010. “E também é preciso fiscalizar para que a concessão sirva à comunidade e não a interesses pessoais, econômicos e políticos”, acrescenta.

“Foi uma grande vitória do movimento”

Como foi o quase fechamento da rádio Cúpula dos Povos, durante a Rio+ 20?

Arthur William – A rádio reunia diversos participantes da cúpula justamente para transmitir o que estava acontecendo para todo mundo, através da internet. E também pelas ondas de rádio através de uma frequência de FM. O processo de legalização de uma rádio comunitária demora muito no Brasil, hoje está até melhorando, mas em geral demorava 10, 20 anos, então o coletivo da rádio optou por transmitir independentemente da licença, porque era uma baixa potência e os equipamentos eram homologados. E no domingo da Cúpula dos Povos (17/6), a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) chegou, sem nenhum documento, requerendo os equipamentos, para lacrar e levar os transmissores. Devido à mobilização de todos os participantes, com um abraço à rádio, a Anatel acabou se afastando do local e chamou a polícia militar para garantir a entrada deles na rádio. Aí passamos a argumentar, através de uma comissão de negociação da qual eu participei, que não era competência da polícia militar a questão de radiodifusão. E entramos em contato com o ministério das Comunicações para conseguir uma licença provisória.

O Ministério das Comunicações, entendendo a importância que a rádio tinha para o evento, conseguiu junto com a EBC (Empresa Brasil de Comunicações) uma licença experimental, temporária, para que a rádio pudesse continuar funcionando de forma legal durante a cúpula. E foi o que aconteceu, conseguimos uma licença experimental, que foi uma grande vitória do movimento, mostrando que na verdade quando há interesse político para que uma emissora funcione, ela pode funcionar. Então a questão da radiodifusão no Brasil, das rádios comunitárias, pode ser muito melhor do que está, basta vontade política.

“Elas precisam ser tratadas e reconhecidas com a importância devida”

Como avalia a atuação da Anatel no caso?

A.W. – Na reunião de negociação nós questionamos o papel da Anatel. Ela tem outras coisas muito mais importantes para fazer. O STF (Supremo Tribunal Federal) proibiu que a Anatel fizesse busca de equipamento de radiodifusão, e o entendimento da Defensoria Pública da União é de que não existe apreensão sem busca; o transmissor não apareceu lá no escritório da Anatel, ela foi fazer uma busca e conseguiu encontrar de onde a rádio estava sendo transmitida. Então, segundo entendimento da defensoria pública, essas ações da Anatel são ilegais. E o conselho da sociedade civil na Anatel, até o Marcelo Miranda, que é do instituto Telecom, se colocou à disposição para travar esse debate dentro da Anatel. A Anatel não vai na Oi, não vai na Vivo, na Tim, sendo que essas empresas são as que mais têm reclamações do consumidor. Agora, contra a rádio comunitária, que está cumprindo o papel essencial que é transmitir a cultura e informações locais de forma voluntária, porque não recebe dinheiro para isso, ela só trata com repressão, com criminalização.

Qual a situação da legislação sobre as rádios comunitárias?

A.W. – As rádios comunitárias têm uma lei de 1998 (Decreto 2615, para a Lei 9742/97) que é muito ultrapassada. Ela foi uma lei feita pelos empresários para que as rádios comunitárias não significassem uma concorrência. Ela é uma lei do pior momento do governo Fernando Henrique Cardoso, que foi o momento das privatizações, da entrega do patrimônio brasileiro para a iniciativa privada estrangeira, que foi ali entre 1997 e 1998. Essa lei reflete esse momento da democracia brasileira, que era diferente do que a gente tem hoje.

É preciso mudar essa lei. Ela traz uma série de amarras. Ela burocratiza a questão da legalização das rádios comunitárias, então hoje grande parte das rádios comunitárias está na ilegalidade por conta dessa lei. E algumas rádios comunitárias acabam sendo controladas por políticos, por grupos religiosos, porque eles têm o controle econômico e político de uma situação que requer contratação de advogados, de funcionários. E que uma comunidade sem dinheiro, sem poder captar através de publicidade, ou de outras fontes de recursos, como o Fundo Público, voltado para isso, ou o percentual de um imposto, como é o Fistel (fundo de Fiscalização das Telecomunicações), ou do Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações), para financiar rádio comunitária, fica impossibilitada e alguns grupos políticos ou religiosos acabam se aproveitando para controlar essa concessão de rádios comunitárias. E também é preciso fiscalizar para que a concessão sirva à comunidade e não a interesses pessoais, econômicos e políticos. A gente precisa avançar porque a rádio comunitária tem que ser vista como um ator importante na questão da comunicação pública, que hoje está se fortalecendo com a EBC, as rádios Nacional e MEC (Ministério da Educação e Cultura), as rádios públicas estaduais, a TV Brasil e a rede pública de televisão. E as rádios comunitárias fazem parte desse processo, então elas precisam ser tratadas e reconhecidas com a importância devida, e hoje não têm.

“Rádio comunitária é sinônimo de rádio pobre”

A portaria 1462, de 2011, não mudaria esse panorama?

A.W. – Não. A norma 462 na verdade regulamenta essa lei de 98. Então você regulamentar uma lei que é ruim, você só intensifica o grau de perseguição, o grau de burocracia, o grau de desimportância que o poder público está tendo com as rádios comunitárias. Ela trouxe uma maior transparência nos processos, que na verdade é uma condição que o estado deveria dar sempre, e que até hoje não tinha, por exemplo, na disputa por uma frequência. Mas por outro lado os pontos piores da lei foram aprofundados. Como a questão, que para a gente é a principal, de que quem transmite sem legalização fica automaticamente desclassificado de um processo de legalização. Ou seja, foi uma forma de impedir que as pessoas exerçam seu direito à comunicação independentemente da legislação burocrática que criminaliza os movimentos sociais, as rádios comunitárias.

Hoje, na própria lei, não há uma isonomia entre as rádios comunitárias e comerciais. Se uma rádio comercial interferir em uma rádio comunitária, nada acontece. Agora, se uma comunitária interferir em uma comercial, ela tem que desligar o seu transmissor. E a rádio privada, na verdade não é nem rádio comercial, é rádio privada, ela pode ter anúncio na sua programação, o que em grande parte é o que viabiliza sua sustentabilidade. E a rádio comunitária é proibida de fazer publicidade, ou seja, a rádio comunitária, no Brasil, é sinônimo de rádio pobre, por conta da lei.

“O que a gente precisa é mudar a lei”

Há como mudá-la?

A.W. – A norma 1462 foi um retrocesso. Os movimentos sociais reclamaram, tanto a Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária), como a Amarc fizeram mobilizações e agora o governo está com uma proposta de alteração da norma. Esse processo está na Casa Civil e toca em pontos que para o movimento são muito importantes. Um exemplo é a autorização de publicidade comercial, desde que essa publicidade seja do comércio local e desde que não sejam veiculados os preços e condições de pagamento. E a rádio comunitária é muito importante para incentivar o comércio local, porque o pequeno comerciante não consegue anunciar na grande rádio (NR: No Rio de Janeiro, por exemplo, média de R$ 700 por 30 segundos de veiculação). Então quem tem acesso aos meios de comunicação vai comprar nas grandes lojas, e o comércio local fica enfraquecido. A rádio comunitária é um espaço para fazer essa economia local girar.

Outra questão é o alcance do transmissor. A norma de 1998 colocava o alcance do transmissor em um quilômetro. Ou seja, além de 25 watt ser uma transmissão de muito baixa potência, a questão de 1 km de raio é até aonde a rádio pode pegar. E isso desconsidera a formatação territorial da comunidade. Pode haver uma rádio comunitária que atende a um município que tem muito mais do que 1 km de raio. Então a proposta de modificação da norma é que o alcance do transmissor seja equivalente ao território da comunidade atingida. Mas de qualquer forma essas pequenas melhorias não atendem ao que a gente precisa, que é mudar a lei.

“O governo tem que manter uma coerência”

Um novo marco regulatório?

A.W. – O marco regulatório brasileiro das telecomunicações está fazendo 50 anos. E não dá para continuar, ele é muito antigo, não contempla rádios comunitárias, sites e comunicação digital. Ele precisa ser atualizado do ponto de vista tecnológico e do ponto de vista da comunicação que hoje temos, porque não dá para 99% das rádios e 99% das televisões serem privadas comerciais. É preciso ter maior democracia nas comunicações e hoje isto não existe. O marco regulatório precisa tratar disso. O marco regulatório é a principal pauta do movimento de comunicação como um todo hoje. O FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação), do qual a Amarc faz parte, luta pela aprovação do marco regulatório. A partir das contribuições da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) o governo fez um esboço do que seria esse marco e está prometendo colocar em consulta pública o mais breve possível. Então o movimento social pressiona o governo para que isso aconteça e que esse processo também seja o mais democrático possível, com audiências públicas discutindo os pontos do marco e que ele seja aprovado o mais urgentemente.

É importante também que o debate sobre comunicação seja feito junto. Seja feito com uma certa coerência entre as leis. A Amarc verifica que o governo tem aprovado leis recentemente, a lei da EBC em 2008, a norma de rádio comunitária em 2011, a lei de TV por assinatura, o marco civil da internet, que também está quase sendo aprovado, ou a própria lei dos direitos autorais. Ou seja, é uma série de questões da comunicação que estão sendo aprovadas sem nenhuma ligação entre elas. É preciso que exista uma consolidação, uma coerência entre as normas. Não dá para ter um marco civil da internet que é bem avançado e uma norma de rádios comunitárias que é um retrocesso feitos pelo mesmo governo. O governo tem que manter uma coerência e tratar a questão da comunicação como algo único, essencial para a consolidação da democracia no Brasil.

“A definição do que é público é muito importante”

Fazendo um comparativo, qual a situação das rádios comunitárias em outros países?

A.W. – As rádios comunitárias, principalmente na América Latina, têm uma realidade bem parecida com a do Brasil. Só que em alguns países têm avançado, como por exemplo Equador, Uruguai e Argentina. Na Argentina, com a lei dos meios, todas as comunicações foram divididas entre estatais, ou seja, controladas pelo estado, independentemente se têm finalidades públicas, culturais, educativas; as emissoras privadas com fins lucrativos, que são o que a gente chama hoje de emissoras comerciais, e as emissoras privadas sem fins lucrativos. E nesse último segmento estão contempladas as rádios comunitárias, quilombolas e livres.

É um enquadramento bem mais amplo do que a gente tem no Brasil, que a constituição diz público, estatal e privado. Até a própria discussão entre o que é público e privado acaba complicando o enquadramento das rádios comunitárias. Por exemplo, rádios comunitárias são privadas, mas são públicas, elas têm caráter público. Já as emissoras, hoje as rádios e televisões que a gente chama de públicas, elas são controladas pelo estado, estatais, mas têm finalidade pública também. Então a definição do que é público é muito importante para isso. A gente luta, por exemplo, no marco regulatório, para que a definição do que é público, estatal ou privado esteja contemplada nisso. Até para que as rádios comunitárias que a gente entende que estão nesse campo público da comunicação tenham a relevância merecida na lei.

“A rádio comunitária cumpre um papel essencial”

E em outros lugares?

A.W. – Você tem uma realidade, por exemplo, de países que são muito pobres, onde a comunicação privada não existe, como no Haiti e em alguns países da África. Existe a comunicação pública, que também não tem muito investimento. E a comunicação comunitária é muito forte. Por quê? Porque ela recebe financiamento estrangeiro, de entidades, de outras organizações não governamentais. O Haiti é um exemplo disso, onde as rádios comunitárias têm mais audiência, mais importância, chegam ao país todo com um transmissor com alcance para o país inteiro. E cumprem um papel importante na conscientização da população.

Na própria questão dos desastres naturais, como é o caso do Haiti, elas cumpriram papel superimportante para conscientizar a população para encontrar desaparecidos durante o terremoto daquele país. O que aconteceu aqui também em Teresópolis e Nova Friburgo (RJ) com a Rádio Comunidade de Friburgo, onde foi a rádio comunitária que conseguiu encontrar os desaparecidos. Porque a rádio comercial não tem relações com a comunidade, não é feita pela própria comunidade, é feita por profissionais e tem a finalidade de lucro; e a rádio pública está muito distante da cidade, ela está transmitindo do Rio de Janeiro, então não tem laços tão firmes como uma rádio comunitária. Isso mostra a importância da rádio comunitária em países que não têm estrutura nenhuma. A rádio comunitária cumpre esse papel essencial, como no caso do Haiti e em países da África também.

“Nossa previsão é que existam mais de 10 mil rádios operando”

Quais os objetivos da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc)?

A.W. – O objetivo da Amarc mundialmente é a luta pela garantia do direito à comunicação como direito humano fundamental. O ser humano é comunicativo por natureza. Se expressa pelo olhar, pela fala, pelos gestos, mas também por um jornal, um site, um blog, uma rádio e uma televisão. É preciso que o poder público garanta isso através de políticas públicas. A Amarc atua com foco nas rádios comunitárias em parceria com os movimentos locais de cada país. Ela se junta aos movimentos comunitários locais para lutar para que políticas públicas sejam colocadas em prática, ou sejam criadas para garantir esse direito à comunicação.

Voltando ao Brasil, é possível fazer uma estimativa de quantas rádios comunitárias existem?

A.W. – Hoje no Brasil a gente tem mais de quatro mil rádios comunitárias legalizadas. Mas a nossa previsão é que existam, entre legalizadas e não legalizadas, mais de 10 mil rádios operando.

“É aberta à participação de todos”

Finalmente, para o cidadão que leu essa entrevista e gostou do tema. Como ele acessa as rádios comunitárias?

A.W. – As rádios comunitárias têm uma frequência apenas por município. Se você está em determinado lugar, você só pode ouvir uma rádio comunitária, porque a lei impõe isso, e elas têm uma separação de quatro quilômetros. Então se você está em casa, ou no trabalho, você só vai conseguir ouvir uma rádio comunitária. E em cada município ela tem uma frequência diferente. Aí tem que entrar no site da Anatel para verificar qual a frequência específica do seu município. Ou pode entrar no site da Amarc, www.amarcbrasil.org, ou no site da Abraço, www.abraconacional.org, para verificar qual a rádio comunitária mais próxima. E também participar, porque a rádio comunitária é aberta à participação de todos. Não apenas ouvir, mas também fazer locução, ajudar no que puder dentro da rádio comunitária.

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[Rodrigo Otávio, da Agência Carta Maior]