Na semana passada, quando avançamos uma avaliação sobre a minissérie JK, não faltou quem nos ponderasse que era cedo, que era precoce, para não dizer temerário, julgar uma obra que apenas começava. Prevista para 47 capítulos em três meses, seria injusta e precipitada uma avaliação apenas vistos 4 capítulos, em uma semana. Bem menos de 10% de JK haviam sido levados ao ar.
Fazia sentido a ressalva. Os prudentes aqui e ali, ou quase sempre, acertam pela inércia. Quem não faz, não erra, sabemos todos. Pero o mal dos prudentes é serem, eles próprios, um pouco acima de precipitados. Isto porque, metidos em sábios conselhos, aplicam a todo fenômeno a lei geral da previdência, o ‘espere, espere, agora é loucura’, quando o sensato deveria ser a observação do fenômeno, antes de qualquer aviso de ‘espere, espere’. Passados e vistos 8 capítulos, e ainda sob a espada de Dâmocles da precipitação, podemos dizer que a hora era mesmo a da semana passada. E por isso hoje um pouco mais nos arriscamos, sob a ponta do aço a nos roçar o cume da cabeça.
A menos que haja um deus ex-machina, um cataclismo fenomenal que arrase 99% das feições da minissérie, o Juscelino Kubitschek da TV Globo caminha para ser a Minie do Super JK. E aqui, acreditem, a previsão passa ao largo do exagero. Está no observado nesses 8 capítulos, até a sexta-feira (13/1).
‘Como pode’, poderiam os sensatos perguntar, ‘como pode a fração de 17,02% de capítulos responder pelo drama inteiro?’ Porém o mais grave aviso não vem da aritmética, que aplicada à vida sempre é burra. O mais grave chega dos criadores da dramaturgia: ‘Os caracteres mudam! Saiba que apesar de ver fantasma no início, Hamlet não representa um louco no primeiro ato. Como pode alguém se aventurar a dizer o que é um personagem de 47 capítulos, quando apenas viu 8?’.
Capítulo Zero – Como?!
De imediato poderíamos responder que a previsão é fácil, porque a minissérie é a vida de JK. Corrigindo, para menos mentir: a minissérie se refere à vida de JK Sim, e como tem essa vida por referência, os caracteres, de todos conhecidos, são previsíveis e certos. Mas a esta altura, sob aparências de verdade, mentiríamos duas vezes. Na primeira, quando dizemos que a minissérie se refere à vida de JK, quando mais próprio seria dizer à vida que interessa dizer de JK. A uma certa biografia, montada e escolhida para os objetivos da trama. Algo, se nos permitem as liberdades dos autores da trama, algo como um anúncio, um grito de escola de samba na avenida: ‘Olha o JK aí, gente!’. E as passistas, e as cuícas, e os tamborins, e os pandeiros, e o Palácio do Planalto no alto de um carro alegórico, com um boneco de faixa presidencial a saudar e a sorrir.
Na segunda mentira, dizemos minissérie que se refere à vida de JK como se os fatos, mesmo os que interessam (‘Não podemos mostrar tudo, isto é impossível’, dizem produção e roteiro), fossem os fatos, discriminados e com desvio de tempo e lugar (‘Isto é uma ficção!’, dizem), que importa, fatos arbitrários, mas fatos. De fato. Mesmo assim, o que se vê é de se botar os fatos, para fora.
Queremos dizer, como se mostram, a forma e a imagem dos fatos alteram a sua substância, o próprio acontecido. Então, já se vê, não é bem pelo roteiro do que viveu de fato o homem Juscelino que o desenrolar da série é previsível. Esse porvir anterior ocorre por um outro fado, por um outro destino: são as leis do folhetim, as leis da telenovela, as leis do espetáculo, da idiotização do drama, que se desenvolve rumo ao happy end mesmo nas mais trágicas circunstâncias.
Juscelino Kubitschek, é história, é histórico, faleceu em um acidente de carro, um ‘acidente’, porque, por todas as mais razoáveis hipóteses, ele foi assassinado em 1976 pela ditadura. Sua morte chegou a ser anunciada, porque 20 dias antes do óbito correu o boato nas redações dos periódicos de que ele houvera morrido. Em ‘acidente’, conforme o destino e fado da ditadura militar havia decretado. No entanto, vejam o que declara Maria Adelaide Amaral, a roteirista principal da minissérie, ao jornal Diário do Comércio de sábado (14/1),
‘Apesar dos indícios de que o acidente que vitimou o ex-presidente pode ter sido provocado, Maria Adelaide diz que não vai se aprofundar na questão. ‘Preferimos optar pelo funeral de JK, que foi um ato público, talvez o maior e mais importante da época do governo militar. A morte suspeita do ex-presidente, por si só, daria uma minissérie inteira’.’ [ver a íntegra aqui]
Ou seja, a busca do happy end terminará com o caixão do ex-presidente entre aplausos. Com direito a bandeira do Brasil, hino, passeata e apoteose. Olha o JK aí, gente!
Capítulo Um da segunda semana – Aos fatos
Na terça-feira (10/1), escrevia-se na sinopse disponível no site da Globo, abaixo do título ‘Felizes para sempre?’:
‘Sarah diz a Juscelino que quer marcar logo o casamento. Salomé fala para Joaquim que vai dar aulas de dança numa escola, pois não tem coragem de contar que vai dançar na casa de Olímpia. Leonardo deixa claro para Salomé que não vão se envolver. Guiomar conta para Maria que Licurgo a comprou, deixando-a indignada. Maria aconselha Zinque a ir embora com Antenor, mas Licurgo avisa que eles vão a lugar algum. Antenor não fala desde a morte da mãe…’.
Paremos a transcrição aqui. Com isso evitaremos que o leitor ponha para fora, de uma vez por todas, os fatos. Em um caderninho, à margem da sinopse, anotamos:
Por que nas cenas que se desejam eróticas, de amor, de sexo e paixão, há sempre o componente nada erótico de um forte resfolegar? O som nos chega como um sensível microfone a pesquisar interno o movimento do ar na traquéia. É uma ânsia à beira da tosse a ressoar em toda a sala, como se fosse a propaganda de um expectorante. Imaginamos que as cenas assim se processam: ‘Amor, sexo, gravando’, grita o diretor. Claquete: ‘Eu era assim’ – personagens num roçar sem rumo, numa agonia, o nariz e a coriza em close. ‘Fiquei assim’: casal a sorrir, depois que uma secreção verde se foi. Alguém precisa dizer ao diretor que o catarro não é uma conseqüência natural do erotismo.
Capítulo 2 – O herói e o vilão
Na sinopse do capítulo da quarta-feira (12/1). Segurem os fatos:
‘Juscelino mente para Sarah, dizendo que vai sair de casa para cuidar de Naná. Sarah decide ir com ele. Licurgo atira Salomé no chão. Leonardo defende Salomé. Licurgo acerta as costas de Leonardo, que cai… Juscelino deixa Sarah na casa de Naná e diz que vai passar na Santa Casa, mas, na realidade, parte com o primeiro batalhão. Sarah descobre que Juscelino foi para a frente de batalha. Licurgo fala para Joaquim que Salomé virou prostituta…’
Aqui começa a aparecer o herói, que é o nascedouro do super, que o mundo da história em quadrinhos acha, não sabemos o porquê, maior e mais digno que os heróis da mitologia grega. E, se faz sentido ou não, acompanhem: Juscelino Kubitschek vai para o campo de batalha de uma guerra civil, por dever de homem, de macho, de cidadão, de servidor das elites do seu estado, ou, quem sabe, talvez mais simplesmente porque é o herói da trama (‘mas isto é biográfico, é real’, dizem os roteiristas). O certo é que vai, e vai bem, porque lá chegando, e isto já não é mais biográfico, é das liberdades da ficção, rejeita, na guerra, quando o código de valores balança frágil diante dos antigos costumes, rejeita a beleza e o carinho de uma mulher que a ele se oferece.
Entendam e acompanhem, por favor: Juscelino, para ser mais completo o perfil, é um tipo acabado de garanhão, um jovem impetuoso, como é natural em todos os jovens, mas nesta cena e em outras com o senso ético de um homem maduro, sábio, sereno e filosófico, na paz. A paz e na paz, quando todas as normas e civilização vigoram mais que o vigor de um animal desesperado, daqueles da guerra, entre bombas, cadáveres e o risco da própria morte.
Segurem os fatos, não vomitem, porque Juscelino defende os fracos, os oprimidos dos saques dos soldados, e por ser médico, capitão-médico, faz milagres na sala de cirurgias, não sabemos se por fruto da patente ou da medicina.
Segurem os fatos, porque Juscelino faz milagres pela simpatia, eterno bom humor entre gemidos, gritos e sangue, sempre a resolver casos impossíveis (com exceção, talvez, talvez, dos corpos sem cabeça), e, fundamentalmente, pela mais rara e formidável qualidade da onipresença. Sozinho, entre tantos, Ele passeia entre os leitos dos enfermos como Deus passearia sobre as águas.
Segurem os fatos porque… essa minissérie realiza a proeza de ter em um só corpo dramático o super-herói e o vilão, mas sem uma alimentação mútua. Percebem? Assim como a morte não se sustenta sem a vida, assim como a polícia não existe sem o crime, assim como senhor não se sustenta sem o escravo, e assim como o homem não existe sem a sua correspondente animalidade, a minissérie JK não consegue crescer porque falta um contrário, ou contrários, ao personagem Juscelino Kubitschek. Os problemas com que ele se defronta são, todos, contornáveis, com um passo de dançarino na florida estrada rumo à presidência da República. Que belo. Que idiota.
Licurgo, esse supervilão, esse vilão quadrado, sem arestas, sem afeto e sem contradição, somente movido pela arma do sexo que a todo instante levanta, cruza a cena como um Antonio das Mortes sem Glauber Rocha. Um Antonio sem nada. Como um das Mortes à verossimilhança, porque, também ele, a ele nada se opõe. Daí que …
Capítulos 3, 4, 5… 47 – Basta!
Com exceção de JK e dos novelistas de televisão, ninguém é de ferro. É preciso, de fato, possuir uma natureza férrea, ou de um tipo especial de aço, um super-superaço, ou melhor, enfim, é preciso estar com uma vedação dos sentidos para suportar os abusos contra a inteligência, a sensibilidade, a história, de uma minissérie assim. Ela não resiste sequer a anotações ligeiras, de passagem. Por exemplo, num banquete, mineiros comemoram e brindam uma derrota infringida aos paulistas, e, pelo que se nota, não houve transgressão nessa derrota impingida aos paulistas.
Num salão, um personagem pede a uma dama a ‘honra da contradança’, e, por não haver propriamente uma evolução de pares de dançarinos no largo espaço, concluímos, pelos olhos, que ele gostaria de pedir a simples honra de uma dança. Reclama-se contra ‘proxenetas’, com som de ‘ch’, e as alcoviteiras, por não possuírem ‘x’ com som de ‘cs’, que se danem.
E as frases políticas – sim, existem frases assim, quando nada para darem o tom – e as frases políticas recitadas, com um ar empolado, grave, do gênero, ‘Juscelino, você está vivendo um momento histórico’. (Momento sublime de antevisão do papel que Juscelino Kubitschek teria). E a postura do ator do jovem Juscelino, postura sempre ‘histórica’, ereta, como se houvesse engolido um bastão da garganta à cintura, e por isso estivesse impedido nos movimentos. E aquele olhar para o infinito, ao fazer declarações heróicas, como ‘a minha consciência médica’, percebem?, o mesmo olhar que deve ter tido Sócrates ao rejeitar a cicuta, que coisa mais sublime. Aqui, nesta minissérie, é o lugar onde os atores deveriam carregar cartazes com legendas: frases políticas, frases de ética, frases heróicas…
Que falta imensa faz a cultura, a pesquisa, o talento! El dia que me quieras, o tango, é a música escolhida para todas, todas, todas, todas e todas as ações amorosas! Por Deus, isto é mais kitsch que camisola vermelha, camisón rojo en la noche de nupcias. É de se ficar possesso, para o resto da vida, ao se ouvir essa canção que os produtores e direção querem infringir como música-tema.
E a pose de Juscelino e esposa que se beijam em casa, na intimidade, a bailar com a coreografia de um tango….. El dia que me quieras, siempre. Ficamos a pensar se não seria preferível a volta das ânsias e da falta de ar à procura de um expectorante.
Y si es mio el amparo de tu risa leve, amigos e editores, afastem de nós esa rosa que engalana, para siempre, da minissérie JK.
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Jornalista e escritor