Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Reality show provoca calafrios no Vale do Silício

O Vale do Silício está finalmente recebendo o tratamento até agora reservado a donas de casa baderneiras e chefes de cozinha irritadiços: um reality show no canal Bravo. Mas o mundo da tecnologia não está preparado para ser alvo das câmeras. Quando detalhes sobre a série, que leva o título provisório de Silicon Valley, começaram a vazar, muita gente no setor se ofendeu, afirmando que o programa trivializaria o trabalho difícil e importante que o setor realiza. “Que nojo. Por favor, fiquem em Los Angeles”, comentou Kevin Rose, empresário e executivo de capital para empreendimentos, em mensagem ao seu mais de um milhão de seguidores no Twitter.

O vale pode ficar ainda mais incomodado quando descobrir como o programa captura bem a realidade ruidosa do setor de tecnologia em 2012. A série, que está em gravação e deve ser exibida no começo do ano que vem, mostra jovens festeiros batalhando para fundar companhias em um frenesi que lembra o boom do setor de internet em 2000. É um mundo no qual todos parecem pensar que uma boa ideia pode gerar sucesso instantâneo e riqueza infinita – porque, afinal, isso já aconteceu muitas vezes. É um lugar no qual você só se sente um fracasso caso apenas um investidor lhe ofereça capital, em lugar de existir uma verdadeira fila de interessados implorando para investir.

O programa Silicon Valley foi inspirado em parte por A Rede Social, filme de 2010 sobre a criação do Facebook. O Vale do Silício real não gostou do filme porque o roteiro passava a mensagem que Mark Zuckerberg teria criado o Facebook como uma maneira de impressionar garotas, e não como um esforço para mudar o mundo.

Artigos de luxo para mulheres

O fato de que Randi, a irmã de Zuckerberg, seja uma das produtoras executivas do programa causou irritação. Randi Zuckerberg, que era executiva do Facebook até o ano passado, não quis conceder entrevista, mas defendeu a série no Facebook. “Inspirar mais pessoas a buscar o sonho empresarial americano só pode ser bom”, escreveu. Nem todos concordam. Uma antiga colega de Randi Zuckerberg no Facebook recorreu ao Twitter para dizer que estava “apavorada” com a possibilidade de que o programa fizesse do setor “motivo de chacota”. “Pode acreditar: muita gente nesse ramo se torna causa de chacota por responsabilidade própria”, escreveu Randi Zuckerberg. “Estamos apenas capturando a realidade.”

Enquanto as câmeras rolavam, em gravação recente Ben e Hermione Way, dois irmãos ingleses fotogênicos que chegaram recentemente ao vale, discutiam os US$ 500 mil que tinham conseguido como investimento para desenvolver um aplicativo de condicionamento físico. “Quatro nãos e um sim”, exclamou Ben, tristonho. “Não estão fazendo fila para investir em nós.” Ele acrescentou que sua ideia para o aplicativo havia surgido quando estava bebendo em um bar.

Outra cena mostra um elegante escritório em um edifício onde aspirantes a empresário alugam espaço. Kim Taylor descreve sua empresa iniciante como provedora de conteúdo personalizado no mercado de artigos de luxo para mulheres. A ideia não parece muito bem definida – nem mesmo para Taylor, que se mudou de Chicago para Los Angeles dois anos atrás.

“Parece o ginásio”

Mas sua empresa surgiu há apenas alguns dias. “Isso é algo que estou tentando descobrir como fazer em tempo real”, ela disse ao seu mentor, explicando que não tinha experiência em software nem em desenvolvimento de produto, os percursos habituais para o sucesso no Vale do Silício.

A ideia inicial do programa surgiu no final do ano passado, com um post de um diretor de seleção de elenco no site Craisgslist. “Se você está vivendo em alta velocidade, queremos falar com você”, dizia a mensagem. Mas foi um trailer curto, divulgado pela Bravo TV em abril, que realmente atraiu o interesse das pessoas.

Uma frase de Taylor pareceu provocar especial irritação. “O Vale do Silício é como uma escola de segundo grau, mas só com os alunos inteligentes. E todo mundo tem dinheiro.” (Mais tarde, ela tentou explicar sua declaração no Twitter: “Peço desculpas por dizer que o Vale do Silício parece o segundo grau; na verdade, parece o ginásio.”)

Um aplicativo para perda de peso

As críticas não demoraram a surgir – no Twitter, Facebook e blogs. “Em nome dos empreendedores que arriscam tudo para construir alguma coisa, sinto-me ofendido”, escreveu Francisco Dao, fundador da 50 Kings, uma comunidade privada de tecnologia e inovação em mídia. Um blog assim definiu a série: “O horror dos reality shows chega ao Vale do Silício.” Frances Berwick, presidente da Bravo, disse que a despeito do título provisório, o objetivo do programa não é capturar o espírito de todo o Vale ou descrever os aspectos mais comezinhos da realidade. “No processo de edição, tentamos eliminar tudo que seja tedioso”, ela afirma.

O Vale do Silício sempre foi um território difícil para Hollywood, ao menos até A Rede Social. “Somos chochos demais”, diz Jamis MacNiven, cujo restaurante, Buck’s, é um ponto de encontro popular no Vale do Silício. “As pessoas passam seus finais de semana trocando a lâmpada supereficiente do ano passado pela lâmpada ainda mais eficiente deste ano. Ninguém gosta de se vestir bem, exceto no [festival de contracultura] Burning Man, durante o qual as pessoas tiram a roupa.”

Antes que Taylor fosse selecionada para o programa, ela trabalhava para uma companhia local de mídia que desenvolvia anúncios para o Facebook. Os demais membros do elenco incluem os irmãos Way; Dwight Crow, que criou o Carsabi, um site de venda de carros usados, trabalhando em um apartamento em Mountain View sujo a ponto de merecer classificação como zona de risco tóxico; e David Murray, que está desenvolvendo um aplicativo para perda de peso. (“Se eu tiver muito sucesso, conquistarei um milhão de membros ativos até o final do ano.”)

Oportunidades de um empresário não cessam

As barreiras para a criação de uma empresa na internet nunca foram tão baixas. A tecnologia é barata. Todas as funções, exceto as mais importantes, podem ser terceirizadas, o que permite economizar com custos como salários e aluguel. Só a ideia conta. Caso ela conquiste sucesso viral, a companhia atinge rapidamente um valor de centenas de milhões de dólares ou mais. O Yammer, um site de redes sociais para empresas criado no final de 2008, foi vendido no final do mês passado para a Microsoft por US$ 1,2 bilhão – e ninguém se surpreendeu com o valor.

“Se você é um empresário iniciante, o momento é fenomenal”, disse Zaw Thet, um empresário de sucesso que está assessorando Taylor. Os irmãos Way são experientes no uso da mídia e já estavam contemplando um reality show quando surgiu a oportunidade da Bravo. Sabem o que é necessário. Quem assiste a Ben Taylor se exercitando diante das câmeras com um treinador percebe como ele sabe manipular as ferramentas de um reality show.

“O bom do Vale do Silício é que ele perdoa o fracasso – mas nem sempre.”

“Mal dá para acreditar quantos empresários se suicidam.”

“Ontem à noite, apareceram umas quatro ex-namoradas em minha casa – e eu só moro aqui há um ano.”

A casa dos Way é uma modesta residência com aluguel mensal de US$ 17 mil (R$ 34 mil) e uma piscina descoberta – algo incomum na fria San Francisco. Seus três pavimentos oferecem vista excelente. O aluguel não parece tão caro, diz Way, dividido entre cinco inquilinos.

Para cobrir as despesas, a irmã dele vendeu ingressos para sua festa de aniversário por US$ 50. Também obteve patrocínio de um fabricante de batatas fritas e de um distribuidor de água de coco, para a casa. Os moradores têm um canal próprio no Twitter, usado para promover os salgadinhos. No Vale do Silício, as oportunidades de um empresário não cessam (tradução de Paulo Migliacci).

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[David Streitfeld, do New York Times]