Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Clóvis Rossi


‘O que surpreende na Cúpula América do Sul-Países Árabes é a surpresa de alguns com o fato de que ela assumiu um tom político. Cúpulas, com o perdão da obviedade galopante, são sempre reuniões políticas. Por definição. Mesmo quando tratam de outros temas, o fazem politicamente. Os detalhes técnicos ficam para os ministros.


Cúpulas também não são o lugar para vender mercadorias. É outra atividade delegada ao segundo escalão ou aos meios empresariais, até porque, quase sempre, cada cúpula é acompanhada nos últimos muitos anos de reuniões de empresários das partes envolvidas.


Claro que a cúpula pode ser um ponto de venda. Hoje, aliás, diplomatas são mascates, em alguma medida (ou muita medida). Mas a cúpula funciona apenas como uma espécie de outdoor para os negócios. Business, mesmo, é com outra gente.


Mais surpresas vêm do fato de que alguém se surpreenda com as críticas aos Estados Unidos e a Israel durante reunião em que estejam líderes árabes. Ora, como bem disseram duas das jovens que cobriram o evento para esta Folha (Cláudia Dianni e Eliane Cantanhêde, das que mais conhecem os meandros diplomáticos na mídia brasileira), os discursos foram os ‘de sempre’ quando falam líderes árabes ou palestinos. Só pode se surpreender quem acha que a história do mundo começa quando líderes árabes desembarcam em Brasília e começam a falar o que sempre falam.


É improvável, portanto, que os ‘marines’ desembarquem no lago Paranoá para impedir a proliferação de declarações usuais.


Nessa matéria, inusual foi a declaração do então presidente Fernando Henrique Cardoso, equiparando o unilateralismo norte-americano ao terrorismo.


Não chegou a haver deslocamento de ‘marines’, mas queimou definitivamente a relação George W. Bush/ FHC. A cúpula nem de longe pode ter efeito parecido.’



Janio de Freitas


‘Um passo para a frente ‘, copyright Folha de S. Paulo, 12/05/05


‘Dava para desconfiar, embora não desse para escrever, que a proclamada finalidade comercial da Cúpula América do Sul-Países Árabes era uma fachada para algo além. Negócios entre países se incentivam melhor por conversações bilaterais, e não em plenários amplos, adequados à criação de normas internacionais e julgamento de contraposições. E, talvez mais que tudo, a projetos de blocos, do tipo, por exemplo, do extinto e saudoso Bloco dos Países Não-Alinhados, Liga dos Estados Árabes, a frustrada União Pan-Africana e mesmo a fantasiosa União Pan-Americana, instrumento ineficaz da propaganda pró-EUA na Guerra Fria.


Caso o futuro efetive negócios a partir de conversações possibilitadas pela cúpula em Brasília, será muito bom. Mas a tentação é dizer, sem trocadilho, que esses negócios serão subprodutos da reunião. As discussões para definir o teor e os termos do comunicado final, e o próprio comunicado, definem-se como questões, idéias e posturas de sentido essencialmente político, por mais que, em alguns casos, houvesse o esforço de deixá-lo no máximo subjacente.


As perspectivas dessa primeira cúpula, cujo anúncio de repetição no Marrocos também indica movimentos mais do que apenas comerciais, não devem mostrar-se já em futuro próximo. Mesmo as perspectivas preliminares são de difícil previsão, carência que se debita em grande parte à aversão do jornalismo brasileiro à substância, sempre atraído pelo sabor das fofocas. Esse jornalismo ocupou-se mais de Néstor Kirchner que dos assuntos que preencheram a cúpula, procurados de raspão e tratados em resumo. A propósito, o presidente Ricardo Lagos deixou a conferência no mesmo dia de Kirchner, mas sua retirada não mereceu atenção alguma. E, no entanto, o Chile tão alinhado economicamente aos Estados Unidos teve razões bem mais fortes que a Argentina de Kirchner, para desagradar-se com o desenrolar da reunião.


O que não se sabe nem se prevê não diminui a expressão da Cúpula América do Sul-Países Árabes. Original como iniciativa diplomática, pode criar uma presença nova, e necessária, na desbalanceada relação entre os ramais da política e da economia internacionais.


Para o Brasil patrocinador e para outros países sul-americanos foi uma afirmação de soberania, sabendo-se que variedade de implicações tem uma iniciativa -a rigor, uma tomada de posição- que fugiu ao admitido no círculo de influência dos Estados Unidos, sobretudo os Estados Unidos de Bush.


O governo Lula marcou um ponto valioso.’



Eliane Cantanhêde


‘Golaço’, copyright Folha de S. Paulo, 12/05/05


‘Apesar das críticas, dos temores, de alguns desacertos, a Cúpula América do Sul-Países Árabes atingiu o seu objetivo: trouxe para o ‘quintal’ dos Estados Unidos a discussão sobre a ocupação da Palestina por Israel e uma mostra de que há resistências a um mundo unipolar.


O Brasil apostou e ganhou o direito de articular e de ser anfitrião de um encontro desse porte, antes reservado aos próprios EUA, à França, à Alemanha e ao Reino Unido. Lula teve um dia de estadista ontem, mesmo recorrendo a metáforas.


Ganham também a Argentina, que incluiu na ‘Declaração de Brasília’ uma defesa à sua soberania sobre as Malvinas, e o Uruguai, que fez o Brasil engolir em seco e passar a defender a sua candidatura à direção geral da OMC. Lembre-se que foi justamente por rejeitá-la que o Itamaraty se meteu a lançar candidato próprio e amargou uma derrota vexaminosa.


E ganham, principalmente, os próprios árabes. Atravessaram o mundo, resistiram a 30 horas de vôo e conseguiram um palanque para a defesa de suas causas bem debaixo das barbas americanas. Muitos deles, é verdade, são amigos de Washington. Mas os ataques contra a ocupação da Palestina e o tom contra a invasão do Iraque não deixaram dúvidas sobre os vilões da história.


A política externa ‘ativa e pró-ativa’ de Lula está rendendo resultados no plano político e no comercial (os negócios do Brasil com o Oriente Médio, com a África e com a própria América do Sul têm se multiplicado).


O que parecia excesso de pretensão, raiando o ridículo, começa a fazer sentido. Os países ‘em desenvolvimento’ na Ásia, na África e nas Américas, apesar dos pesares, da pobreza, dos regimes instáveis, já conseguem ter pautas e interesses comuns.


A globalização era um por todos e contra todos e não parece mais tão simples e tão linear assim. A Cúpula de Brasília não muda o mundo, mas serve de aviso para quem quer mandar sozinho no mundo.’



Merval Pereira


‘Alto risco político’, copyright O Globo, 12/05/05


‘O que parecia inevitável realmente aconteceu: o Brasil conseguiu, com a Cúpula América do Sul-Países Árabes, desagradar a gregos, troianos e argentinos. Uma política externa agressiva como nunca havia sido tentada antes pelo Itamaraty nos coloca em evidência também nunca experimentada, mas provoca atritos diplomáticos e acessos de ciúmes do mercurial presidente da Argentina.


Ao tentar se aproximar dos países árabes sem causar danos nas relações com o chamado ‘mundo ocidental’, especialmente Estados Unidos e Israel, o governo brasileiro perdeu o controle da situação e deixou que a Cúpula fosse um palco aberto para ataques de todos os tipos.


Mesmo na Carta de Brasília, onde tentou controlar a abordagem de temas mais delicados como terrorismo e democracia, não conseguiu agradar a todos, como era previsível. Para o professor de História Contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira,’não se pode exagerar, nem para menos nem para mais’ a importância da Cúpula, uma iniciativa que considera ‘ultrapositiva, numa região que tem disponibilidade de capitais para investimento, e uma necessidade imensa de serviços, setor onde nós somos bons e temos tradição de construir estradas, hidrelétricas, usinas, obras urbanas’.


Não há dúvidas, porém, de que passamos a um novo estágio de nossa política externa, que vinha sendo camuflado por explicações tortuosas. Se nunca tivemos uma ‘relação carnal’ com os Estados Unidos, sempre estivemos próximos da superpotência. Hoje, passamos, se não a uma contestação aberta, a pelo menos um distanciamento crítico. Francisco Carlos Teixeira diz que chegou a hora de ‘termos uma noção muito clara de que parceria nós queremos com os Estados Unidos’.


Uma parceria de tipo novo como a atual, ‘com grandes interesses comerciais e ao mesmo tempo com um distanciamento político importante’, funciona, segundo ele, ‘enquanto existir um Chávez (Hugo Chávez, presidente da Venezuela) descontrolado e um Kirchner (Néstor Kirchner, presidente da Argentina) dando calote. No momento em que isso deixar de existir, nossa situação vai ficar insustentável’. O professor da UFRJ diz que é preciso não se enganar: ‘Somos a opção americana nesse momento por exclusão de todas as demais’.


Para ele, é importante que seja definida logo uma parceria estratégica com os Estados Unidos, possivelmente no âmbito da negociação da Alca que vai ser retomada, pois os Estados Unidos ‘são a potência do século 21, essa história de Estados Unidos em decadência não é verdadeira. Podem estar atolados no Iraque, mas já estiveram atolados no Vietnã e se recuperaram, esta é uma situação circunstancial, um acidente de percurso para uma grande potência’.


Teixeira diz também que, no Oriente Médio, ‘não adianta tentar ter relações com o mundo árabe alienando inteiramente Israel’. No momento em que for resolvida a questão palestina, Teixeira acha que ‘a relação do mundo árabe preferencial vai ser com Israel, que vai se transformar em uma imensa plataforma: de serviços financeiros, de infra-estrutura, de intermediação comercial, em larga escala’.


Já o cientista político Clóvis Brigagão, diretor do Centro de Estudos das Américas da Universidade Candido Mendes, classifica nossa política externa atual de ‘ambição de alto risco’. Ele concorda que, para um país grande como nosso, ‘é preferível até jogar com os grandes e perder do que ganhar entre os pequenos’. Mas adverte: todo cuidado é pouco. Segundo ele, há um consenso entre os diplomatas de que ‘é preciso haver uma certa temperança, nossa diplomacia está pegando muito fogo, assumindo um ar ambicioso, de bravata, de que vai ganhar tudo, de que o mundo estava esperando o Brasil assumir sua liderança e se curvar a ela’.


‘O Itamaraty tem uma tradição de fazer uma diplomacia de mediação, de profissionalismo reconhecido’, ressalta Brigagão, para quem muito do que acontece hoje é conseqüência de o governo Lula ter três condutores da política externa: o próprio Lula, através do Marco Aurélio Garcia (assessor internacional), o ministro José Dirceu, e o chanceler Celso Amorim, ‘que assume essa nova modalidade de risco Brasil’. Brigagão diz que como essa nova postura brasileira ‘vai incomodar, é preciso adotá-la com muita inteligência, com muita racionalidade, com pé no chão’.


Ele acha que ‘devemos abrir frentes em todas as regiões para desenvolver nossos mercados, independentemente de este ou aquele país não gostar. Mas precisamos ter uma condução mais homogênea’. O professor Clóvis Brigagão lembra a necessidade de a política do Itamaraty estar afinada com a sociedade brasileira, ‘que precisa participar mais, assim como o Congresso. À medida que o Brasil sai de seu berço esplêndido para ganhar o mundo – e parece que com ou sem Lula nós vamos ganhar o mundo – precisamos andar de pés no chão e fortalecidos com maior unanimidade’, adverte.


***


O ministro Luiz Gushiken, da Secretaria de Comunicação e Estratégia de Governo, pede para esclarecer um ponto da coluna de ontem, quando ele fala dos ‘antagonismos complementares’ e cita o binômio democracia/ autoridade. Para ele, ‘os limites da autoridade são os limites democráticos’.


***


A dissertação, e não tese, de Rodrigo de Almeida Ribeiro, intitulada ‘Ao Brasil sem medo – a idéia petista de nação feliz’, sobre a qual falei nas colunas do fim de semana, foi apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para a obtenção do grau de mestre em ciência política. No Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), ele está preparando sua tese de doutorado.’



Tereza Cruvinel


‘Saldos da cúpula’, copyright O Globo, 12/05/05


‘Os árabes e os vizinhos partiram deixando em Brasília um governo exultante com a realização da cúpula América do Sul-Países Árabes. Um êxito, avalia o governo, que teve sua percepção interna turvada pelo foco na questão argentina, e pela ênfase da imprensa nos pontos políticos polêmicos da Carta de Brasília: as referências ao Iraque, ao Oriente Médio e ao terrorismo.


Os eventuais custos políticos serão, a médio prazo, comparados com os lucros comerciais decorrentes do contato propiciado a 1.250 empresários das duas regiões. No jantar de anteontem no Itamaraty, em conversa informal, o presidente Lula temperava o júbilo dos discursos com mais realismo.


– Estou muito satisfeito mesmo, inclusive porque você não tem idéia do quanto foi difícil organizar este encontro, reunindo pessoas de culturas tão diferentes, apesar dos interesses convergentes. Foram meses de delicadas negociações. Mas sou realista. Abrimos uma porta larga e isso pode incomodar os grandes, que pensam a globalização a partir dos interesses deles. Daqui a uns três anos vamos saber se por ela passou e vai passar tudo que esperamos – disse à colunista, enquanto levava os convidados para a apresentação de danças típicas – carimbó, siriá, lundu e frevo.


O ministro Celso Amorim, não menos exultante, minimizava o sentido da saída de Kirchner antes do término da cúpula.


Quem dá uma boa idéia das dificuldades enfrentadas ao longo dos oito meses de preparação é a embaixadora Vera Pedrosa, subsecretária Política do Itamaraty, que participou de dezenas de reuniões com os sul-americanos e destes com os árabes. De novo, na Carta, entrou apenas a referência às Ilhas Malvinas, uma vez que só há duas semanas soube-se que foram incluídas na esfera territorial regida pela Constituição da União Européia. De modo que nada foi imposto de última hora pelos árabes e todos estavam preparados para as repercussões. Os argentinos, segundo a embaixadora, foram dos mais ativos na fase preparatória. Negociar com os árabes exigiu dos sul-americanos muito jogo de cintura. Eles se melindram à toa diante de uma restrição. Têm uma lógica de negociação diferente, saltando de um tema para outro, exigindo que se cobre, com delicadeza, concentração no tema em discussão. O problema da língua também pegou. Volta e meia surgiam divergências sobre a tradução para o árabe. Por fim, combinou-se que tudo seria redigido em inglês e a Liga Árabe se encarregaria da versão. Mas se empenharam muito, sobretudo na última reunião, há cerca de um mês em Marrakesh, para a produção do consenso básico.


Marco Aurélio Garcia, assessor internacional de Lula, menciona as pressões imensas que precederam a realização da cúpula. Embora evite explicitá-las, sabe-se que houve até jogo de espionagem e contra-informação. O Departamento de Estado americano, por exemplo, teve acesso à primeira versão, elaborada pelos árabes, mas ainda não examinada pelos sul-americanos, sobre as referências ao terrorismo e à questão palestina. A primeira versão do texto produzido em Marrakesh (e não a definitiva) chegou aos jornais europeus e americanos dois dias após a reunião, alimentando especulações.


É previsível o desgosto americano com a condenação à ocupação do Iraque. Mas a participação do presidente Jalal Talabani como legítimo governante foi um endosso à ação política dos Estados Unidos, que promoveram a eleição. A contrariedade de Israel tem menos razão de ser. O tema já foi objeto de 229 resoluções da Assembléia Geral da ONU entre 1974 e 2004 e de 51 do Conselho de Segurança desde 1995.


Chega hoje ao Congresso o projeto que cria a subvenção de remédios, começando pelos que atendem aos 11,5 milhões de diabéticos e hipertensos. O custo, garante o ministro Humberto Costa, pode cair até 50%.


FH: sobre o comando do atraso


Transcrevo correspondência do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a propósito de nota de ontem, afirmando que suas articulações com Severino Cavalcanti confirmam seu diagnóstico de que PT e PSDB disputam o comando do atraso. Dizia também que o PT faz o mesmo quando aceita acabar com a verticalização das coligações para atender aos partidos aliados. Diz Fernando Henrique:


‘Vamos aos fatos. Eu não tive qualquer encontro com o presidente da Câmara, nem fiz qualquer contato telefônico com ele. Estivemos juntos apenas em duas ocasiões: na viagem a Roma (com o presidente Lula a nosso lado) e anteontem em um jantar comemorativo dos 20 de democracia, quando apenas nos cumprimentamos. Já desmenti boatos sobre minhas ‘articulações’ com Severino para atrapalhar o governo Lula na Câmara. Até porque ninguém precisa combinar para fazer o que o governo faz tão bem sozinho. Aproveito para esclarecer a frase de minha entrevista com o senador Cristovam sobre o ‘comando do atraso’. De fato, é o que penso, mas com um complemento. O PSDB e o PT, até agora, têm sido os únicos partidos capazes de formar uma aliança (a mesma…) que permite governabilidade. Nessa aliança, as forças tradicionais e clientelistas entram numerosamente. Entretanto, e este é o complemento, se os partidos polares não forem capazes de dar o rumo, o marasmo e sabe lá Deus o que mais, tomam conta da política e ela se reduz à manutenção do poder pelo poder. É esse o risco que se corre’.


OUTRO esclarecimento tucano. O presidente do partido, senador Eduardo Azeredo, e não apenas os líderes pefelistas, como registrado, compareceu à abertura da cúpula árabe.’



O Estado de S. Paulo


‘O balanço final da Cúpula ‘, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 12/05/05


‘O balanço final da Cúpula América do Sul e Países Árabes, encerrada ontem em Brasília, pode ser resumido em poucas palavras: a América do Sul, em geral, não ganhou nada, os países árabes obtiveram o que queriam – usar a conferência como um palco novo para atacar Israel e os Estados Unidos – e o Brasil só teve prejuízos.


Em primeiro lugar, o clima de mala sangre com a Argentina se acentuou, em vez de se abrandar – como supunha o wishful thinking do Itamaraty -, por obra e graça do presidente Néstor Kirchner, cuja partida antecipada foi apenas a culminação de uma seqüência de má-criações, se não até ofensas, ao chefe do governo anfitrião, que presidia o encontro.


Em segundo lugar, a projeção internacional que a conferência deveria dar ao País foi de fato alcançada, mas por motivos que não se pode imaginar que fossem aqueles que o Planalto desejaria – porque, se fossem, atestariam a definitiva perversão da diplomacia brasileira, em nome de um aventureirismo escancaradamente adverso ao interesse nacional.


A cúpula destinava-se, como se sabe, a ser um marco de primeira grandeza na construção da liderança brasileira no mundo pela redefinição das relações de poder entre os países ricos e os demais – ‘a nova geografia política e comercial’ que o presidente não perde vez de proclamar.


Esta página crê ter evidenciado à exaustão a futilidade desse anacrônico projeto terceiro-mundista, sem falar no seu efeito bumerangue: os vizinhos, a começar da Argentina, só poderiam reagir com desagrado, menos ou mais contundente – ou educado -, a tão impertinente exercício de autopromoção, cristalizado na busca a todo custo de uma vaga no Conselho de Segurança.


Mas o encontro árabe-sul-americano não só não agregou qualquer coisa de valioso ao patrimônio diplomático brasileiro, como ainda exibiu aos interlocutores estrangeiros que de fato contam na ordem das coisas o constrangedor papel de ‘mula’ dos interesses árabes que o País acabou desempenhando.


Às vésperas da conferência, o chanceler Celso Amorim garantia que ficara acertado que o magno acontecimento não se prestaria à exploração política dos conflitos do Oriente Médio. A política que a sua própria realização encarnaria e que se condensaria na declaração conjunta dos 34 governos participantes diria respeito às questões da ordem global.


Custa a crer que o Itamaraty ignorasse um dado imutável da conduta árabe nos foros internacionais. Os tabus proíbem que se façam certas coisas. O oposto é a obrigação absoluta de fazer algo, sempre. Para os árabes, esse algo é a defesa da causa palestina, a denúncia dos atos de Israel e a inculpação dos Estados Unidos pelo estado de coisas na região.


Em qualquer evento, as delegações muçulmanas abordarão o assunto com aspereza e insistirão para que as suas teses constem do documento final.


O Brasil, como a quase totalidade das nações, é favorável a um Estado palestino viável, ao lado de Israel. O problema, portanto, não é esse. É o Itamaraty não ter previsto o óbvio: os duros discursos à margem do contexto da cúpula e a legitimação implícita, a que teria de aderir na declaração conjunta, das ações armadas palestinas contra alvos israelenses.


A extensão de documentos diplomáticos tende a ser inversamente proporcional à sua importância. A declaração de Brasília passa de 3.400 palavras. Isso diz tudo do seu provável impacto mundial, descontado, com o contraproducente envolvimento brasileiro, o efeito desejado de pisar nos calos israelenses e de épater les américains. A nossa praia, como se diz, é outra.


De resto, não há como levar a sério o altissonante fraseado do cartapácio que deplora a pobreza no mundo, a distância entre os países ricos e os outros, além de enaltecer os direitos humanos – quando não poucos de seus signatários são potentados com imensas fortunas pessoais, em sociedades miseráveis onde as provações da população feminina patenteiam o respeito desses autocráticos governantes pelos direitos humanos. Até ontem à noite, discutia-se a inclusão no texto de referência à democracia – palavra vetada por algumas lideranças árabes.


Esse o imenso passivo da cúpula. Há um pequeno ativo, traduzido no esboço de acordo de cooperação assinado pelo Mercosul e pelo Conselho de Cooperação do Golfo.’



Folha de S. Paulo


‘Cúpula Das Arábias ‘, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 12/05/05


‘A Cúpula América do Sul-Países Árabes arquitetada e patrocinada pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva transcorreu como previsto: foi uma bravata diplomática que nada acrescentou à política externa brasileira. Abriram-se, como esperado, poucas perspectivas para negócios e registrou-se caudalosa retórica geopolítica -do tipo, infelizmente, que pouco ajuda o relacionamento do país com as nações que mais importam.


Não parece exagero descrever a cúpula -à qual faltou boa parte dos dirigentes árabes- como um grande palco no qual o Brasil, proferindo as palavras que o público queria ouvir, fez mais um comício em favor de sua candidatura a uma vaga permanente no Conselho de Segurança (CS) da ONU. Fica a sensação de que, novamente, o obstinado desejo de conquistar esse status deformou posições que deveriam ser orientadas por políticas de Estado. Ainda que o objetivo do governo seja defensável, é um grave erro subordinar a ele a atuação externa do país, sacrificando princípios e relações tradicionais.


Nesse contexto, não é a abrupta partida do presidente Néstor Kirchner que causa surpresa, mas sim o fato de ele ter prestigiado um evento que serve principalmente para promover uma reivindicação brasileira à qual a Argentina se opõe.


É claro que o Brasil não deve atuar como uma sucursal dos interesses norte-americanos ou europeus. É louvável que o país busque uma posição de independência. Também é importante que tenhamos as melhores relações possíveis com o Oriente Médio. Soa, contudo, inverossímil pensar numa aliança estratégica entre a América do Sul e as nações árabes, quando não se vislumbram os grandes objetivos comuns a unir essas duas regiões do planeta.


A cúpula, ao fim, serviu a uma convergência de interesses circunstanciais. O Brasil patrocinou mais um ‘happening’ em sua campanha, e os convidados ultramarinos ganharam um novo alto-falante para fazer o que sempre fizeram em suas reuniões da Liga Árabe: falar mal de Israel.


É aqui que as concessões brasileiras preocupam. O Brasil pode e deve defender um Estado palestino. Pode também reconhecer o direito de populações sob ocupação estrangeira pegarem em armas para reconquistar a soberania. O que não é aceitável é um documento final tão extenso e detalhista -que chega a reclamar da ‘inclusão das ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul no anexo II relativo ao Título IV da Parte III do Tratado Constitucional da União Européia’- não fazer referência explícita às vítimas civis israelenses de atentados terroristas e ao direito daquele país de se defender. Trata-se do mesmo tipo de partidarismo que tantas queixas árabes provoca quando se manifesta em favor de Israel.


Infelizmente, essa não é a primeira vez que o Brasil abre mão de posições justas e equilibradas para servir às suas pretensões na ONU. Recentemente, o país já concedeu aos chineses vantagens comerciais sem exigir contrapartidas e ajudou a bloquear, na Comissão de Direitos Humanos, resoluções contra a China e a Rússia. Também se absteve na votação para exigir que os responsáveis pelo genocídio de Darfur (Sudão) fossem julgados pelo Tribunal Penal Internacional. Além disso, azedou sua relação com a Argentina.


É defensável que o Brasil amplie o leque de parceiros e estreite relações com o maior número possível de países, mas é inadmissível que a atual agenda externa ponha a perder a política de Estado e a imagem que o país levou décadas para construir.’