Cheguei à sala de meu amigo André Mello triste por ver o Rio sitiado novamente e um pouco temeroso com minha volta pra casa. Não puxei uma cadeira, explicando que precisava encontrar minha irmã para irmos logo. Sem levantar, ele me pergunta:
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Por causa dos boatos?Digo que sim, que a estação do metrô da Saens Peña estava fechada e que eu estava meio nervoso com tudo aquilo. Ele me fala que, quanto às causas dos ataques criminosos à cidade, tudo parece ser reduzido a questões pontuais, como um descontentamento com o fim das regalias nas prisões, ou um alerta ao novo governo do estado.
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Nós sabemos que há algo maior por trás disso. É um discurso do medo construído na mídia que deixa as pessoas nesse estado de pânico.–
Calma aí, André. De ontem para hoje aconteceram ataques simultâneos em todas as partes da cidade.–
Eu andei por toda a cidade hoje e estou aqui.–
Eu também! Concordo que muitas vezes o discurso midiático insufla ‘ondas de terror’ na população, mas agora são fatos: um ônibus foi incendiado na Avenida Brasil, pessoas morreram carbonizadas. Fora o que já te disse, ocorrências em toda a cidade, em vários pontos.A banalização da violência
André não altera a entonação da voz e nem se levanta da cadeira. Mas não possui um ar cínico ou indiferente para com a situação, ou com meu relato. Jornalista, antropólogo e pastor presbiteriano, sabe que não pode jogar palavras vazias a seus interlocutores.
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Existem algumas coisas a serem consideradas no contexto do momento. Primeiro, há um vácuo de notícias, é uma semana tradicionalmente fraca para isso. Depois, estamos no ‘limbo’ entre governos estaduais: o comandante da polícia de agora não continua na segunda-feira e o que vai assumir ainda não manda nada.–
É verdade. Ainda assim, os episódios de violência aconteceram.–
Sim, mas o que precisamos perceber é que a maioria das ocorrências não é inédita. A não ser o ônibus interestadual incendiado. É algo diferente, um ato de terror. Ainda assim, já houve um incêndio antes, só que o ônibus era intermunicipal [ele se refere ao ônibus 350, incendiado em Brás de Pina, em 2005; e outros foram incendiados sem vítimas, em alguns pontos da cidade e da Baixada Fluminense]. Os tiros, assaltos, granadas, todos já ocorreram outras vezes na cidade do Rio de Janeiro. Se você pegar o jornal O Povo de manhã verá o que ocorre nas madrugadas toda semana, são episódios como esses.–
Mas a gente não pode banalizar os acontecimentos assim…–
Não é banalizar, não. Mas ninguém fala do pior: que a violência está imiscuída na nossa sociedade e tão corriqueira que, aí sim, banalizamos ao não destacarmos esse aspecto. Por que surgem essas ‘ondas de terror’ em todos os telejornais, de repente? Olha só…Você já leu esse livro aqui?Políticas públicas na hora do pânico
André pega de sua estante Cultura do Medo, de Barry Glassner, que fez uma ponta no documentário Tiros em Columbine, de Michael Moore. Na contracapa, as aspas do autor: ‘A TV não inventa o que mostra, mas escolhe o que mostrar’. Na orelha do livro, outra frase: ‘A poluição é algo bem mais preocupante e perigoso que todas as outras coisas das quais a mídia insiste que tenhamos medo.’ É por aí que vai o pensamento de André. Em nenhum momento ele demonstra insensibilidade para com as pessoas que sofreram com os episódios de violência de ontem, pelo contrário: solidariza-se com aqueles que já sofreram antes mas que não ofereciam o Ibope que convinha – como numa última semana do ano, raquítica em notícias.
Imediatamente me lembrei que, em época de Copa do Mundo ou na semana do Carnaval, o Rio de Janeiro é a cidade mais pacífica do planeta. Nenhuma ocorrência violenta é noticiada.
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Precisamos nos preocupar com a situação dos presídios, por exemplo. Quem acha que a solução é lotar as penitenciárias ou reduzir a maioridade penal nunca esteve num presídio. A situação é tão caótica que daqui a um tempo as rebeliões e fugas em massa generalizadas não serão contidas. Aí, sim, teremos um terror incontrolável nas ruas. Como no exemplo da poluição, estamos muito pouco preocupados com o que realmente importa e pode causar transtornos da ordem social. As políticas públicas que atendem mais aos sintomas da hora do pânico, em vez de agir na origem do problema: raramente sou ‘torpedeado’ por notícias sobre isso.A hora passa e eu realmente preciso ir. Levo emprestado o livro e saio da sala de André mais calmo. Não menos preocupado com a violência urbana da metrópole, mas bem mais imune às ‘ondas de terror’ de fermento midiático. Resolvo desligar a TV até 2007.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ; www.lessa27.blogspot.com