Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carlos Heitor Cony

‘Mais uma vez, comissão de artistas vai ao governo pedir providências contra a falta de atenção e incentivos à cultura, prometidos durante as campanhas eleitorais, quase que de porta em porta, e esquecidos ou simplesmente negados durante o mandato de cada grupo que chega ao poder.


Os problemas são os mesmos, mesmas as queixas, mesmas as pessoas que fazem parte das pias delegações, só mudando a autoridade da vez. Semana passada, a autoridade foi José Dirceu, que não tem nada contra a cultura, mas alega que também nada tem com o dinheiro, que a situação está ruim, que ‘o Estado brasileiro estava se desmilingüindo’ etc. Como se vê, mesmas as explicações.


Já comentei, em crônica antiga, o espanto de Fernanda Montenegro: ela fez toda a sua carreira trabalhando no regime da livre iniciativa, casou, criou os filhos, comprou apartamento -tudo com o dinheiro do seu suor e da bilheteria. Hoje, sem ajuda do governo direta ou indiretamente, sem os patrocínios disso ou daquilo, nenhum teatro se abre, nenhum filme começa a rodar.


A menos que os produtores enfrentem o mercado internacional, indo à luta lá fora -e, verdade seja dita, são bem-sucedidos. Cineastas de outros países estão fazendo o mesmo.


Outro dia, recebi um grupo de universitários que, entre outras coisas, desejam fazer cinema e acreditam que tudo depende do financiamento governamental. Por acaso, um produtor me visitava naquele momento, elogiou o entusiasmo dos jovens, mas explicou que não basta rodar e terminar um filme. Há que enfrentar o distribuidor e o exibidor. Finalmente o público.


Segundo o produtor, tudo termina em latas de goiabada, grandes, com que os cineastas vão de um lado para outro tentando entrar numa programação. O que há de latas de goiabada esperando a vez não é mole. Concorrência do exterior, poucas salas, alto custo da publicidade -um filme pode ser financiado ou patrocinado, mas a estrada é longa, e a vida, breve.’




Lilia Moritz Schwarcz


‘Quem tem medo do politicamente incorreto?’, copyright Folha de S. Paulo, 15/05/05


‘Há algum tempo uma polêmica inusitada surgiu nas páginas da imprensa norte-americana. O debate girava em torno do nome da tradicional história infantil, ‘A Branca de Neve e os Sete Anões’. Tomados pela voga do politicamente correto, alguns críticos reclamaram da nomenclatura ‘sete anões’ e acabaram por propor uma saída à altura: ‘Branca de Neve e os sete verticalmente comprometidos’, esquecendo que a própria Branca de Neve também poderia ser entendida como uma ofensa a todos aqueles que não fossem brancos, como a neve.


Folclore ou não, essa história está de volta, agora no Brasil, com a publicação, pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos. Distribuído pela primeira vez em 2004, na Conferência Nacional de Direitos Humanos, o material voltou à cena no começo do mês de maio, em novo seminário sobre o tema.


O destino desse pequeno manual, composto por 96 expressões e com uma tiragem de 5 mil exemplares, seria igualmente conturbado: o documento foi retirado de circulação, enquanto aguarda nova avaliação.


Mais do que julgar a idéia ou mesmo avaliar a pertinência desse tipo de iniciativa, importa refletir acerca do material e dessa voga do politicamente correto, importada dos EUA.


É possível dizer que a atitude politicamente correta consiste em alterar nomes e termos para que não seja preciso mudar a própria estrutura social. Trata-se de algo à moda de Lampedusa, que em seu livro ‘O Leopardo’ afirmou ser preciso mudar alguma coisa para que tudo ficasse exatamente como estava.


Mas nada como recorrer à própria cartilha e tomar alguns de seus verbetes. Comecemos com uma coincidência: o verbete ‘Anão’. Na definição da cartilha ficamos sabendo que ‘as pessoas afetadas por nanismo são vítimas de um preconceito particular: o de sempre serem consideradas engraçadas. Não há nada de especialmente engraçado em ter baixa estatura, fato que não torna ninguém inválido nem diminui sua dignidade’. Ou seja, toma-se a forma pelo conteúdo e chegamos a uma espécie de beco sem saída. Qual seria a conclusão: trocar anão por nanismo ou por ‘verticalmente comprometido’?


Outro exemplo: é desaconselhável empregar o termo ‘africano’, uma vez que ‘sua utilização genérica muitas vezes serve para negar a diversidade de países e povos daquele continente ou para discriminá-los […]’. Nesse caso, a cartilha não dá nenhum conselho de como substituir o termo e ficamos, nós, sem solução. Mas a confusão é ainda maior, uma vez que, em março de 2004, o próprio governo aprovou a disciplina ‘História e Cultura Afro-brasileira e Africana’.


O mesmo ocorre com termos que carregam duplo sentido. ‘Bárbaro’, por exemplo, deve ser condenado, pois é sinônimo de cruel, grosseiro, incorreto, malvado, rude e violento… É fato que o etnólogo Claude Lévi Strauss teria uma vez dito que ‘bárbaro é aquele que acredita na barbárie’, mas e o uso oposto? Como incluir na cartilha uma opção para o outro contexto lingüístico, quando bárbaro é aquele que pratica atos, digamos assim, geniais?


E mais, ficamos sabendo que chamar alguém de ‘barbeiro’ é ofensivo, não porque acusa o motorista inábil, mas porque agride o profissional especializado em cortar cabelos. Ainda nessa linha, em nome do ‘respeito e cuidados médicos que os alcoólicos merecem’ -e, sim, merecem-, deve ser evitado o termo ‘bêbado’. A realidade é a mesma, os nomes é que são diferentes.


O termo ‘cigano’ também é considerado pejorativo e em seu lugar somos instados a usar designações étnicas como Rom, Sinti e Calon. Numa versão nacional, o termo ‘caipira’, cuja cultura foi recuperada por Antonio Candido em seu clássico ‘Parceiros do Rio Bonito’, na cartilha surge como sinônimo de rústico e rude. Isso sem esquecer do conceito ‘peões’, recentemente retomado no documentário sensível de Eduardo Coutinho, e que aqui aparece mais uma vez como termo pejorativo.


Termos que denotam conflito político e social, como ‘classe baixa’ ou ‘pobre’, também devem ser evitados, pois justificariam discriminação ou processo de inferiorização. Nesse caso, a representação parece ser mais forte que a realidade. Continuamos a ter uma classe baixa e uma população pobre, mas é melhor não nomeá-los, ao menos dessa maneira.


Mais estranho ainda é o verbete dedicado ao ‘funcionário público’. Deveríamos chamá-los de servidores públicos, para mostrar que sabemos que servem ao público mais do que ao Estado. Por sinal, há também um verbete dedicado ao ‘político’, que traz um alerta: a cartilha lembra que nem ‘todo político é corrupto’, assim como não é verdade que ‘todos os políticos são farinhas do mesmo saco’. Todas essas expressões seriam, apenas, ‘preconceitos de gente mal informada’.


Revelador dessa troca alargada de termos é o item consagrado ao ‘homossexualismo’. A indicação é para que se passe a usar ‘homossexualidade’, uma vez que este termo descreve a condição de forma neutra, enquanto que o primeiro teria uma carga pejorativa e associaria o homossexual a uma doença.


Não parece ficar bem usar o termo ‘latino-americanos’, já que essa nomenclatura geopolítica não indicaria nossa origem comum e majoritariamente ibérica. Nesse sentido, nada como a recomendação de aplicar com cuidado o conceito de ‘comunista’. Nessa lógica politicamente correta, ele perde a história para ganhar apenas a tirania do senso comum e o suposto de que se trata de instrumento de acusação.


Até o termo ‘minoria’ parece estar em questão, mesmo porque pode confundir quando é utilizado sem que se leve em conta o peso demográfico do grupo referido. Afinal, mulheres e negros, segundo a cartilha, não são mais minorias entre nós.


‘Aleijado’ é também um termo considerado ofensivo e, nesse caso, a saída é referir-se a tais pessoas como ‘portadoras de deficiência’ ou, simplesmente, ‘pessoas com deficiência’. Ora, de que maneira essa nova expressão altera, de fato, a situação de uma pessoa que possui dificuldades físicas e anula a carga de preconceito voltada contra ela em sua rotina? Não seria melhor adotar medidas que visassem facilitar o cotidiano dessa população, com uma política de instalação de rampas em vez de escadas e de entradas especiais em transportes públicos?


Da mesma maneira, não é correto usar o termo ‘surdo-mudo’, uma vez que, acertadamente, nem todo surdo é mudo. Mas a pergunta é ainda a mesma: em vez de refinar o léxico, não seria importante tomar medidas públicas que realmente beneficiassem os prejudicados?


Por fim, o termo ‘velho’ é recusado, assim como ‘melhor idade’. É fato que temos um problema com a temporalidade e que nossa sociedade, cada vez mais neófita, encontra pouco espaço para os idosos. Mas, por que não pensar mais seriamente na questão aviltante da aposentadoria e em mais recursos sociais? A saída, ao contrário, é apostar na ‘terceira idade’ e no poder milagroso dos nomes. De todos os nomes.


Os exemplos são muitos e a cartilha recorre inclusive aos já clássicos: ‘denegrir’, ‘está russo’, ‘a coisa ficou preta’, ‘farinha do mesmo saco’. Não me parece o caso de cansar o leitor com mais nomes e classificações. O problema é que talvez estejamos trocando seis por meia dúzia e supondo que a representação é maior do que a realidade. Pois é, mudam-se os nomes e a situação permanece a mesma.


Esse parece ser antes um recurso de maquiagem social, que alivia tensões imediatas sem investir nos problemas reais. Como dizia o historiador Sérgio Buarque de Holanda: ‘Muito lastro e pouca vela’. E não podemos esquecer que nomes são relações e carregam diferentes sentidos em contextos também diversos.


Não estou sugerindo que não exista preconceito entre nós; justamente o contrário, e muito menos que esses temas não devam ser debatidos. Penso apenas que medidas profiláticas como essas trazem um lustro civilizacional, sem enfrentar a questão em si: a exclusão numa sociedade cada vez mais desigual. O resultado é uma espécie de trava-língua que nos deixa tomados por um medo discursivo: entre dizer e dizer mal, parece melhor omitir. Se a intenção da cartilha não é cercear, mas fazer refletir, seria preciso inserir esses termos em contextos e mostrar como adquirem sempre muitos sentidos. Definitivamente não é hora de nos fiarmos em nomes…


A filosofia da cartilha lembra uma passagem de Lewis Carrol, em ‘Alice no País das Maravilhas’. Alice precisa beber do líquido de uma garrafa para ficar pequena e passar por uma porta ainda mais diminuta. No entanto, em vez de uma garrafa, Alice encontra duas, com um mesmo rótulo que diz ‘beba-me’. Mas o pior é que Alice descobre que seus efeitos serão opostos: enquanto o líquido de uma garrafa a fará crescer, e muito (impossibilitando assim sua passagem), o outro a deixará pequena e com direito a ganhar o passaporte de entrada para seu novo mundo. E é exatamente nesse momento que se trava o seguinte debate:


‘Como posso saber qual das garrafas escolher se os rótulos são iguais?’, pergunta Alice. Ao que Humpty-Dumpty responde: ‘Aquele que acredita em rótulos, no mais das vezes se engana’.


Não estamos para entrar no País das Maravilhas, mas andamos de certa maneira fisgados pelos rótulos e seu poder de encantar. (Lilia Moritz Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP, é autora de, entre outros livros, ‘Racismo no Brasil’ (Publifolha) e ‘As Barbas do Imperador’ (Companhia das Letras))’




Artur Xexéo


‘Ainda sobre a cartilha’, copyright O Globo, 15/05/05


‘OUTRO DIA, ASSISTI NA TV A CABO, pela enésima vez, ao ótimo ‘Hatari’, de Howard Hawks. ‘Hatari’ é um dos filmes da minha infância. Dia sim, dia não, ia ao Cine Caruso assistir às aventuras de John Wayne na África. Tinha também um LP com a trilha sonora e, durante um verão inteiro, o principal programa da minha turma – depois de assistir a ‘Hatari’ mais uma vez, é claro – era ouvir ‘O passo do elefantinho’, ‘Just for tonight’, ‘As penas do papai avestruz’… Henry Mancini na veia.


O filme é de 1962. E, nesta revisão proporcionada pela TV a cabo, deu para ver como o mundo mudou nos últimos 30 anos. Dá para imaginar um filme de hoje em que o mocinho caça animais na África, com requintes de crueldade, para depois vendê-los para jardins zoológicos de todo o planeta? Pois o mocinho era assim e a gente torcia por ele. Hoje, certamente, a meninada torceria para que John Wayne quebrasse a perna na primeira caçada. ‘Estamos precisando de uma zebra e de dois rinocerontes’, ‘mate este filhote de elefante porque não há como amamentá-lo’. Diálogos deste tipo recheiam todo o filme. O cinema nem pensa mais que eles são politicamente incorretos. O cinema, simplesmente, não produz mais filmes assim. E se John Wayne, por um milagre divino, voltasse à Terra para filmar ‘Hatari’ outra vez, certamente o caçador seria o vilão da história.


No mesmo ‘Hatari’ há outro comportamento que, hoje, chama a atenção. Todos os personagens – mas todos mesmo – fumam. Fumam desbragadamente. Elza Martinelli, a heroína da fita, acende um cigarro na ponta do outro. Em determinada cena, ela consome três cigarros com este estilo. Há quanto tempo você não vê um filme em que todos, mas todos mesmo, os personagens fumam? O cinema nem pensa que fumar na tela seja um comportamento politicamente incorreto. O cinema, simplesmente, não produz mais filmes assim. E se Elza Martinelli largasse a aposentadoria para refilmar ‘Hatari’ como tabagista, só teria papel de bandida.


Não me lembro de ter ouvido grandes gritarias contra o cinema quando os personagens dos filmes pararam de caçar animais ou deixaram de fumar. É por isso que, mais cedo ou mais tarde, a cartilha do governo sugerindo o banimento de algumas expressões do nosso vocabulário não vai ser tão criticada assim. Quer dizer, é realmente um despautério o governo gastar tempo e dinheiro com isso. Certamente não é papel dele vigiar – por lei ou por cartilhas – o nosso vocabulário. Mas a gente não deve perder a chance de discutir a utilização de expressões preconceituosas e discriminatórias. A maioria das palavras que hoje são chamadas de politicamente incorretas está destinada a sucumbir de morte natural. Mas é melhor que sucumba logo. Não adianta dizer que ‘negão’ ou ‘bicha louca’ podem ser utilizados de forma carinhosa. Quem determina o que é preconceito é quem o sofre e não quem o pratica.


No tempo em que assistia a ‘Hatari’ no Caruso, também costumava chamar as pessoas com síndrome de Down de mongolóides. Pior: qualquer pessoa com o raciocínio mais lento era apelidada, jocosamente, de mongolóide. Não se falava ainda em politicamente correto, mas houve uma campanha que fez com que pegasse mal o uso da expressão discriminatória. Síndrome de Down faz parte, hoje, de qualquer vocabulário civilizado. Mongolóide caiu em desuso. Que bom que não foi preciso nenhuma cartilha para isso.’