Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Apontamentos sobre o ‘jornalismo diferente’

Olá Franco, sinto a intimidade, mas vou tratar-lhe como és conhecido aqui de outros tempos e em outros jornais em que trabalhastes. De todo modo, não nos somos estranhos – você está assumindo como novo editor em meu lugar, conforme esclarecimentos que recebi na manhã de terça-feira (2/1). Ficou claro também, agora definitivamente, que minha visão de jornalismo não se ajusta à visão do povo daqui, conforme explicação dada, com um certo ar de inevitabilidade, pela psicóloga-executiva da empresa, que anunciou meu desligamento da Rede Amorim, empresa em que assumes agora.

Entendo, assim, Franco, que estás disposto e preparado para assumir o suposto ‘jornalismo diferente’ que se julga predominar aqui no Extremo Sul de Santa Catarina. Esse termo é utilizado, nada menos do que pelo gerente comercial desta empresa, para qualificar a imprensa que tem vez por aqui, de modo que vou me apropriar dele para nomear um modelo ao qual não me adaptei ainda, embora acreditem por aqui que eu ‘tenha capacidade’. De qualquer forma, já entendi como a imprensa dessas bandas funciona, e quero abrir a você algumas dicas para otimizar o proveito em seu futuro posto – ainda que te julgue muito experiente nesse estilo de praticar imprensa, não é por acaso que estás retornando a esta publicação, após a passagem por experiências em veículos de cultura semelhante.

Vou me orientar, para tanto, por três eixos, que julgo sintetizar o quadro microrregional que gera, alimenta e perpetua, em um círculo vicioso, esse ‘jornalismo diferente’ (vou usar, a partir daqui JD). De resto, o que há são conseqüências. Independente de sua postura, é sempre bom conhecer onde se pisa. Vamos ao cenário, então.

Notícia é negócio

O primeiro desses fatores é o hábito do empresário da comunicação de enxergar o seu produto, a notícia, como outro qualquer. Do ponto de vista comercial, isso pode parecer um bom negócio. Tenho minhas dúvidas. Disseram-me que você sabe atender bem o que os prefeitos desta Região gostam e esperam de um jornal, de modo que deve entender disso melhor que eu.

Traduzindo para a imprensa, se ainda não sacastes, funciona assim: quem paga decide o que se publica ou não. Publicidade? Não, por favor, não ouse usar essa palavra (é malvista, quando se fala em JD). Nesse ponto, o JD se submete a todo o glamour e a terminologia do jornalismo. Nesse aspecto, a regra é: destaque nomes acima de tudo. Sim, o JD exige isso. As fotos são um bom instrumento. Se tiveres problemas, peça ao Comercial, o pessoal é bom nisso. Aliás, nem vai precisar pedir, vais ver o gerente comercial na Redação com mais freqüência e influência do que imaginas.

O importante é entender a imprensa como um produto que precisa vender muito, atendendo o público conforme este está ‘acostumado’. Se agir assim, meu caro, rezarás a cartilha, está tudo bem. Logo, jamais pense o jornal como um canal para expor contradições e transformar a sociedade, oferecendo a ela novos olhares sobre sua realidade. Perigoso! No JD, o Negócio é o fim, e pronto.

Essa história de ‘social’, porém, não é dispensável nesse tipo de imprensa. Eu seria omisso senão observasse isso. Você se habituará, com o tempo, a acompanhar as mais diversas campanhas – inclusive, na sua própria empresa – em que o ‘social’ é palavra-chave. Mas não confunda.

Responsabilidade Social, no JD, é aquilo que divulga e agrega valor, através do atendimento de uma necessidade material imediata. Nada a ver com o Interesse Social, que às vezes se aprende nas faculdades de jornalismo; aquele que se relaciona ao esclarecimento das origens e responsabilidades sobre uma questão, através da informação, visando tornar um público consciente e agente de seu destino. Por favor, separe a água do vinho. Vai facilitar sua ascensão por aqui.

Esqueça, portanto, essa mania de jornalista de retratar os mais desvalidos em seus enfoques. Nada disso. Tal orientação até serve no discurso, mas na prática vai contra a cartilha e pode, em última análise, prejudicar os lucros, norte central do JD. Como? Simples: ao estabelecer relações entre atos, organizações e autoridades, você arrisca comprometer a imagem de anunciantes ou colaboradores indiretos de outros empreendimentos da sua empresa. Logo, lembre sempre, há nomes sagrados no JD, que devem ser preservados. A justiça, nesse caso, fica para os que podem pagar. Quanto a lei, não se preocupe, sempre será possível interpretá-la conforme os desejos dominantes. E para o JD, fica fácil, basta seguir a onda.

Então, fica entendido: jornal é lucro, e ponto. Sangue, diversão e muito drama também ajudam a vender edições. Mas é bom que saibas: no JD o leitor principal é, em última análise, o anunciante. Você pode até disfarçar, como a maioria faz, se dizendo comprometido com o leitor. Mas, por favor, mire no que interessa a quem veicula. Indo assim, está contemplada a filosofia do JD, cuja orientação tem, em sua base, um segundo fator constitutivo.

Os patrões editam

Também relacionado à questão lucro, abordo em separado um outro aspecto do JD, que precisa ser compreendido, particularmente na imprensa de pequeno porte. Trata-se da dependência financeira com relação aos governos e empresas. Parece óbvia, mas não é tão simples assim.

A primeira coisa que é preciso ter claro é que, no JD, em se tratando de eventos e denúncias, espaços e enquadramentos são proporcionais ao peso do elemento enfocado na verba publicitária. Logo, em caso de uma denúncia política, jamais se indisponha com figuras que podem direta ou indiretamente integrar o rol de anunciantes do jornal.

A propósito, em um encontro da Associação dos Diários do Interior (ADI), realizado em Florianópolis no início de 2006, é curioso que uma das representantes de nossa empresa no evento (ironicamente, a psicóloga que me demitiu) tenha voltado de lá relatando que na ocasião foi dito, com a presença de muitos políticos do partido do governo, que ‘é preciso que os associados evitem brigar com políticos’.

Achei bem sintomático isso, em se tratando de JD. Outra pérola adequada a esse modelo, também exposta pela participante sobre as orientações no evento: ‘Textos curtos’. Curiosamente, uma agência de notícias – ou sei lá o quê – que funcionava então em prédio adjunto à essa ADI, despeja diariamente longos textos, além de uma coluna diária, em todos os diários associados à entidade. Coluna essa com o nome sugestivo de ‘Pelo Estado’.

Então, colega, aproveito isso para explicar a você como proceder para se dar bem no JD. Seja prudente com os políticos. Porém, não se surpreenda se, freqüentemente for ‘sugerido’ a você que pode ‘moer’ fulano ou cicrano. Isso é mera conveniência do JD, que se faz necessário para o bom funcionamento da empresa. Lembre: o anunciante, em última análise, é seu patrão. A ele deves respeito, obediência e dedicação.

O leitor? Bem, o leitor é um elemento importante, mas apenas como pretexto para ampliar os lucros através de outros agentes, efetivamente visados. E os ‘jornalistas-diferentes’ são bons nisso. Aliás, em rádios do interior, já percebi, é cada vez mais difícil distinguir informação jornalística da publicitária. E isso você também sabe melhor que eu, pois há tempos andas também nesse meio.

Nos impressos, ainda não entendi bem por que, há um pouco mais de cuidado, colocando ao menos nome de um jornalista no expediente. É claro que sempre há os profissionais ‘diferentes’ que se prestam a ceder seu nome, em troca de alguns trocados, sem sequer ter conhecimento do que se publica. Mas isso diz mais respeito ao tópico seguinte. Antes, destaco mais um aspecto importante na competência editorial dos pagantes, agora no setor empresarial privado.

Não se surpreenda, amigo, com o assédio constante de comerciantes e socialites por destaque – não seja bruto com essa gente, viu? Pode contar: se estão lhe assediando, é porque pagam, ou podem ajudar a pagar o seu salário. (É bem provável que despejem isso em sua cara, oportunamente e com alguma freqüência.) Portanto, na lógica do JD, capriche no destaque. Lembre-se que vender imagens e organizações é um dos pontos fortes do JD. Como já disse, é comum encontrar no interior vendedores assumindo, escancaradamente, o papel de jornalistas, negociando veiculações de entrevistas, reportagens e tudo que for possível pelo bem do JD. Residi em três cidades, entre Paraná e Santa Catarina, onde vi e vivi isso a olho nu.

Ah, e se tiveres que derrubar alguma pauta de interesse da periferia, por favor não vacile. O que importa é o grupo central da sociedade em que te inseres. Eles é que fazem as regras do jogo. Em geral, não terás dificuldade de identificá-los, visto que, particularmente em cidades pequenas, integram uma dúzia de sobrenomes, participam de entidades pró alguma coisa e, invariavelmente, são ligados à política, ainda que esteja na moda separar ‘sociedade local’ de ‘elite política local’. No fundo, é a mesma coisa. Só não caia na besteira de interpretar esse grupo como gente de bairro de menor poder aquisitivo. Não cabe no JD.

Prosseguindo na enumeração dos fatores centrais que sustentam o JD, me encaminho para o último, mas não menos importante, fator desse paradigma comunicativo que impera aqui e em muitas imprensas – a baixa qualificação da atividade profissional, suponho eu, por falha dialógica, crítica e política na relação entre Academia, Mercado e Sociedade Civil.

‘Esqueça tudo que aprendeu’

A expressão acima deve ser-lhe bem familiar, visto que é mais um dos princípios do (pseudo) jornalismo que campeia por aqui. Leia-se nisso toda a parafernália ética, bem como o espírito independente investigativo para a denúncia, possivelmente acumulado em experiências anteriores em imprensas mais sérias. Tudo morre no JD. Paradoxalmente, o jornalismo permanece no discurso e na estética. Vais notar, por exemplo, que há um contumaz distanciamento entre os diretores e editores nessas empresas que praticam mais usualmente o JD. A proximidade, nesse caso, fica por conta de um intermediário, não por acaso ligado ao setor comercial, ou de extrema ligação com as dependências e conformidades do JD que se pratica.

Mas o central aqui, na realidade, é a conversão, por vezes progressiva, outras vezes instantânea, do jornalista diplomado em qualquer coisa estranha, que serve ao JD, que na falta de outro nome vou chamar de ‘vendedor editorial’. Sim, parece estranho, mas esse elemento existe às toneladas nas redações dos pequenos jornais e, infelizmente, em muitos casos, se (de)forma nesse meio.

Assim, a idéia de independência, trabalhada em sala de aula por quatro anos, vai para a fossa no JD, na medida em que o foca se depara com um mundo onde quem dá as regras é o lucro. E só. Alguns milhares de possíveis bons jornalistas devem ter tido o seu talento e potencial para o interesse público sepultados por essas condições. O processo, como disse, pode ser lento. Progressivamente, pressões, sugestões, cortes e censuras – tudo ‘para o bem da empresa’ – agem para moldar o texto, a mente e o coração de repórteres, conforme as conveniências do JD, não raro transformando os jornalistas em formação em serviçais relações públicas, ou elogiadores de elites locais.

Mas isso são apenas devaneios meus. Saliento que dispensarás essas reflexões para praticar o JD. Todavia, que se um dia tiveres vontade de perceber melhor essa realidade, posso te dar algumas dicas, já que tive o privilégio de passar por uma dessas fábricas de estorvos – ou não raro facilitadores – do JD, denominadas faculdades. Primeiramente, para clarear, terás que relacionar diferentes instâncias – universidade, sindicato e jornal. Tudo começa em um diálogo obstruído entre a formação universitária e o mundo das redações, não raro apresentados como Paraíso.

As grandes empresas de comunicação adoram organizar a casa para receberem regularmente grupos de futuros jornalistas, que se encantam com as máquinas e outras estruturas, alimentando a capciosa idéia de que o grande e o suntuoso é sinônimo de qualidade na imprensa. É o primeiro passo para a construção de uma visão distorcida do jornalismo, que na realidade, ao contrário do JD, deveria ter no humano e no social o seu foco central e não material.

Na carona, como referência no pior, o JD do interior absorve dessa grande imprensa tudo o que é abjeto no jornalismo. O fenômeno do ‘Dossiê da Mídia’, recentemente denunciado pela revista CartaCapital, e que envolveu as maiores empresas de comunicação do país, traduz bem a noção de que tamanho e estrutura, no jornalismo, pode feder tanto quanto um grande vaso sanitário bem perfumado por fora, ainda que entupido por aquilo que nem o esgoto aceita.

O JD se constrói a partir das próprias instituições de ensino, é bom que se saiba. A dispersão e desmoralização da categoria, que está em voga com a mistura indiscriminada entre o ofício de assessor de imprensa e jornalista – alimentado, inclusive, por sindicatos – é outra contribuição bem significativa a esse enfraquecimento contínuo de uma responsabilidade ética nos jornais do interior. Já é comum, por exemplo, proprietários de jornais negarem qualquer necessidade de manter jornalista responsável em seus quadros. Em conformidade com o JD, aliás, essa microrregião também goza de uma imprensa em que editores não precisam ter diploma. A propósito, você não tem canudo, não é? Se fores praticar o JD, não se preocupe: é dispensável.

Sinceramente, não estou entre os que acham que a exigência do diploma é crucial para qualificar o ofício. Jornalistas bons são bons, e ponto. No entanto, em se tratando de realidades em que negociadores da imprensa aliciam ou policiam os jornalistas – bem ao sabor do que quer o status quo – tendo a crer que o diploma é uma necessidade. Pelo menos para impor algum tipo de critério. Penso que urge, de qualquer forma, um diálogo mais incisivo, presente e permanente entre faculdades, redações e sindicatos, a menos que o tal JD seja satisfatório. Eu, no entanto, ainda estranho a esse modelo, só vejo satisfação por ele entre os proprietários de empresas e os vendedores.

Alerta permanente

Mas é bom que saibas que o jornal em que atuava até então, no cargo que agora você me substitui, como os demais desta região, vivencia esses três desvios acima expostos, de modo que falo a partir de uma experiência diária e concreta.

Se um dia, por acaso, esse negócio de JD se tornar enfadonho para ti, terás problemas, previno. Isso porque a superação do que considero mazelas do ofício (JD) requer coragem, ação e, sobretudo, organização – quesitos, que, infelizmente, andam escassos entre a classe.

De qualquer modo, tendo convivido há quinze anos – entre militância, pesquisa, trabalho e docência – nesse universo chamado ‘pequena imprensa’ (que é muito maior do que se possa supor pelo nome), sinto-me à vontade e, mais do que isso, na obrigação moral de apresentar esses modestos pontos de vista sobre a imprensa.

E se o acima exposto não lhe servir para nada, para mim já foi útil como desabafo. Quanto ao ‘D’ junto ao ‘J’, você pode mantê-lo, se quiser, como uma bússola. Não para tentar fazer supor que exista um jornalismo diferente, visto que (penso) o jornalismo, por si, já representa – ou deveria representar – o compromisso com a diferença. Serve essa letra, porém, como um alerta permanente aos incautos sobre o quanto esse ofício tem a ver com a Democracia.

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Jornalista, ex-editor do Destaque Catarinense, Sombrio, SC