Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Música, o pecado original

Num recente podcast do blog Search Engine, o apresentador Jesse Brown ponderou sobre o papel central que a música continua a desempenhar no debate envolvendo o compartilhamento de arquivos e a liberdade. Afinal, a indústria musical praticamente abandonou os processos contra fãs, e serviços como a Last.fm e a loja de MP3 da Amazon oferecem alternativas legítimas para desfrutar e adquirir música.

Então, por que a indústria musical continua a ser vista como o bicho-papão das disputas políticas da internet? Brown chamou o ato de baixar músicas de “o pecado original da internet”, imaginando que continuaremos a falar de música por bastante tempo.

Acho que ele está certo. A música existe num ponto especial de intersecção entre o comércio e a cultura, entre o esforço individual e o coletivo, entre a identidade e a indústria, e entre o digital e o analógico. Ela é a forma de arte perfeita para criar uma controvérsia infinita na internet.

A começar pela idade. A música é primordial. Os livros podem ser mais antigos do que o comércio, mas a música é mais antiga do que a linguagem. Nossa relação cultural com ela é mais importante do que meras leis ou atividades econômicas.

A ideia de que a música é algo que ouvimos e cantamos pode até ser inerente à nossa biologia. Quando ouço uma melodia grudenta, me flagro cantando ou murmurando a mesma sequência de notas e é muito difícil parar. Não importa o que a lei diz sobre a minha “autorização” para “interpretar” uma canção. Uma vez que ela está na minha cabeça, começo a cantá-la e também canto com amigos. Mas se meus amigos e eu cantamos em um vídeo no YouTube… Bem, será realmente difícil nos convencer de que há algo de errado com isso.

Valor

A música é também uma eventualidade. A parte de uma canção que é considerada “musical” muda de sociedade para sociedade e de época para época. A tradição europeia enfatizou a melodia. Mas as tradições afro-caribenhas enfatizam o ritmo, especialmente os polirritmos complexos.

A lei da música – escrita pelos europeus – reconhece os direitos de autoria do compositor da melodia, mas não do seu percussionista. Convenientemente (para as empresas administradas principalmente por europeus), isto significa que a parte da música valorizada por eles não poderia ser legalmente reutilizada sem permissão, mas a parte que caracteriza músicas afro-caribenhas poderia ser tratada como mera estrutura.

Para ser mais direito: os Beatles podem tomar emprestado o rock’n’roll da música negra americana sem pedir permissão, mas o DJ Danger Mouse não pode usar as melodias do Álbum Branco dos Beatles para criar The Grey Album, seu clássico ilegal do hip hop.

A realidade é que toda a música se inspira em todas as outras músicas. A primeira sinfonia de Brahms foi chamada de “Décima Sinfonia de Beethoven” por razões que são imediatamente aparentes para qualquer pessoa que conheça ambos os compositores. A diferença entre o que é considerado “inspiração” ou “violação dos direitos” ou “plágio” é totalmente arbitrária.

Ao mesmo tempo, a indústria musical sempre teve a merecida reputação de ser corrupta e de dar aos artistas um péssimo tratamento. Dos recorrentes escândalos envolvendo jabá para as rádios até a interminável repetição de histórias sobre músicos que recebem péssimas propostas, as gravadoras nunca tiveram credibilidade para afirmar que pagar por um álbum enriqueceria os próprios artistas. Nenhum fã se importa muito com o destino comercial das gravadoras – se eles se importam com alguém, é com músicos.

Quando ficamos sabendo que, para citar só um exemplo, foi apenas recentemente que as gravadoras pararam de produzir cópias clandestinas de CDs na calada da noite – CDs que não constavam no balanço contábil e eram vendidos sem gerar royalties para os artistas –, é difícil levar a sério a ideia de que consumir música sem pagar por ela seja prejudicial para os artistas. Por sinal, o que pôs fim à produção de cópias clandestinas não foi um impulso ético nem um movimento pelos direitos dos artistas – e sim uma lei que atribuía aos executivos a responsabilidade criminal individual por fraudes no balanço.

Creio que a própria indústria fonográfica reconhece que apelar ao senso de culpa para a sua sobrevivência e lucro é uma estratégia fadada ao fracasso. Esta é a única explicação que encontro para suas campanhas na década passada que alertavam para o risco moral que o compartilhamento de arquivos representaria para o caráter dos jovens. É claro que a argumentação é fraca: quando a indústria passa metade de um século dizendo que seu dever não é proteger os valores morais dos jovens ouvintes, parece cômico vê-la anunciar que só está processando e ameaçando jovens para salvá-los de uma vida pecaminosa.

Difusão

A produção musical também ocupa um ponto especial entre os filmes e os livros em se tratando de avanços tecnológicos. Existe uma crença amplamente difundida de que quase tudo que uma gravadora faz pode ser feito pelos próprios músicos, usando o mesmo equipamento que você e eu usamos para jogar Campo Minado e assistir ao YouTube. A realidade é que há muitos músicos capazes de compor ou tocar uma canção, mas poucos sabem fazer arranjos, editar, mixar, cuidar do marketing e até da contabilidade, mas ainda assim é bastante fácil imaginar um mundo no qual todas as gravadoras atuais morrem, enquanto a música gravada continua a prosperar.

Lá no início da guerra do compartilhamento de arquivos, durante os 18 meses delirantes que o Napster passou de zero a 52 milhões de usuários, muito se falou da nova possibilidade de obter músicas de graça – mas também se falou muito na nova possibilidade de ter acesso àquelas músicas.

Antes do Napster, mais de 80% da música gravada não era encontrada à venda (a não ser em LPs fora de catálogo). A indústria sempre se aproveitou da possibilidade de evitar despesas com o estoque de produtos físicos ao mesmo tempo que aumentava o lucro limitando a oferta. O Napster, que deu origem ao mercado da cauda longa, mostrou que o público ansiava pela fartura de escolhas.

Doze anos mais tarde, a abundância se tornou a característica marcante de toda a mídia. Curadoria será a palavra do momento deste século: algum jeito para terceirizar o processo de ordenar todo este material para diferentes comunidades, algoritmos ou indivíduos. Mas, independentemente disso, ainda assim acabaremos sobrecarregados. Todos temos a sensação de que há mais conteúdo do que podemos absorver, seja no Twitter, no Facebook, no nosso blog favorito ou num podcast.

Não basta escolher com cuidado: é necessário saber filtrar. É relativamente simples bater os olhos nos posts dos blogs e nos vídeos no YouTube para decidir se são interessantes ou não. Mas é muito mais difícil de filtrar romances e filmes.

Para descobrir se gostamos de um romance, é preciso investir muito mais tempo e atenção. Para decidir se assistiremos a um longa-metragem, é a mesma coisa. Boa parte da música se revela com clareza e rapidez. Basta ouvir alguns compassos para saber se você vai escutar a música até o fim.

Além disso, a música é bastante adequada ao estilo de vida multitarefa, atividade de sobrevivência característica do século 21. Não é fácil ler um romance e fazer outra coisa ao mesmo tempo, e os filmes também exigem que paremos tudo para vê-los. A música é muito menos ciumenta em relação à nossa atenção. Ela se sente perfeitamente à vontade em ficar em segundo plano. É natural que a música que “parece livre” se encaixe perfeitamente em nossas vidas.

Também é comum fazer referências a músicas. É claro que estamos acostumados a citar diálogos de filmes, e todos conhecem algumas citações literárias, mas a música é citada com frequência muito maior no nosso cotidiano e também dentro da própria música, que é repleta de trechos inspirados por outras músicas.

No aprendizado da música, a reutilização, a cópia e a reprodução são centrais: aprendemos a tocar música ao tocar as composições de outras pessoas, ponto final. Os aspirantes a cineastas podem tentar recriar suas cenas favoritas ou se inspirar nos seus antecessores; jovens escritores podem copiar um trecho favorito para ver como a coisa funciona. Mas, na a música, é normal e central reproduzir as criações dos outros durante anos para ganhar experiência.

Todos estes fatores – a compatibilidade entre a música e um mundo de abundância, a onipresença da música na nossa cultura, o peso que ela tem na nossa história, e a manchada reputação da indústria fonográfica – significam que a internet e a indústria musical vão continuar colidindo no futuro. Não parece haver fim para esta controvérsia.

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[Cory Doctorow é escritor, ativista, editor e fundador do blog Boing Boing]