Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo político exclui o grande público

As numerosas reações favoráveis que recebi de colegas por telefone, por e-mail e pessoalmente ao artigo ‘Quem agüenta tanto noticiário político?’, publicado na edição anterior deste Observatório (nº 319, de 8/3/2005, veja remissão abaixo) – no qual se questiona a desproporção existente entre a importância conferida pela mídia a esse tipo de cobertura e o interesse do público por ela – reforçou antiga convicção, baseada em longos anos de experiência, de que uma grande parcela dos jornalistas pensa de maneira semelhante.

Curiosamente, o exagero do peso que o noticiário político merece em todos os veículos – da TV aos jornais, da internet às emissoras de rádio – é reconhecido pelos próprios jornalistas responsáveis por eles. Dificilmente se encontra um colega em posto de mando nas editorias políticas ou em cargo de direção em publicações, emissoras e portais na internet que se declare satisfeito com o tipo de informação política que seu veículo está entregando para o consumidor de informação. Muitos já tentaram, sem êxito, mudar esse curso, vários continuam tentando. Quase todos diagnosticam, com razão, o problema como sendo ‘cultural’: algo que vem de longe e que, por várias razões, continua por inércia. Mas o jornalismo político estaria em ótimas condições se seu problema fosse só esse.

Não nos basta perguntar ‘quem lê tanta notícia?’, como na canção Alegria, alegria, de Caetano Veloso. Precisamos discutir aspectos adicionais do jornalismo político praticado no Brasil. Começando por um básico, essencial: a linguagem que nele utilizamos. Apesar dos visíveis e louváveis esforços feitos por alguns editores, repórteres e comentaristas para tornar acessíveis ao cidadão comum os acontecimentos do mundo político, ainda se recorre de forma generalizada ao ‘politiquês’ para relatá-los.

A praga do ‘politiquês’

O politiquês guarda parentesco próximo com o igualmente degenerado ‘economês’ – linguagem cifrada, freqüentemente impenetrável, que passou a assolar o jornalismo pátrio quando o surto de crescimento deflagrado no Brasil pelo regime militar a partir do final dos anos 1960 obrigou a imprensa a investir no antes incipiente jornalismo econômico.

De início, foram jornalistas que apelidaram de economês a linguagem empolada e arrogante com que os economistas do regime descreviam cenários e fenômenos macroeconômicos. Os próprios jornalistas que criticavam essa linguagem, porém, fizeram-na migrar para suas matérias. Primeiro, como declarações entre aspas e muitas vezes desacompanhadas de maiores explicações. Depois, como parte integrante do próprio texto dos jornalistas.

A mesma coisa ocorreu com o politiquês, embora não seja fácil redigir-lhe a certidão de nascimento: essa praga parece ter existido no jornalismo político brasileiro desde sempre, e continua ativa, firme e forte. Pode-se qualificar o politiquês como um dialeto híbrido, uma misturalhada de termos, conceitos, expressões e ditados oriundos dos mecanismos da Constituição, da legislação eleitoral e sobre partidos políticos, dos regimentos internos das casas legislativas, da atividade partidária, das campanhas eleitorais e do folclore pessoal de governantes, parlamentares e dirigentes de partidos.

Ser didático é que é nobre

É certo que, além do politiquês e do economês, existem vários outros dialetos a perturbar a vida do leitor: o mais genérico cientifiquês, o mais específico mediquês, o militarês (em geral, mas não apenas, nas matérias sobre guerras), o futebolês, o automobilês… Talvez o jornalista esteja freudianamente atrás de reconhecimento quando utiliza em larga escala e sem tradução o jargão da atividade que cobre – utilizar palavrório idêntico ao das fontes representaria, assim, uma forma de também ser ‘um deles’, de ter a suposta relevância social ‘deles’.

O fato é que, para não poucos jornalistas, lançar mão do jargão acaba sendo uma espécie de passaporte para uma suposta seriedade, um atestado de ‘estar por dentro’.

O uso do linguajar cifrado, tal qual ocorre com as dimensões exageradas do noticiário político, também terminou sendo uma questão cultural. Ao longo de quatro décadas de carreira, em boa parte chefiando equipes, pude constatar a dificuldade de incontáveis colegas em compreender o papel de facilitadores que temos como jornalistas. Grande parte já chegava às redações, mal saídos das faculdades, tendo como dogma de fé que a simplicidade, num texto, era um defeito – quando, pelo contrário, ela talvez seja a suprema meta a alcançar.

Era (e é) como se a atitude de se afastar dos jargões, debulhar e decodificar as informações os diminuísse como jornalistas, constituísse uma atividade menos nobre, quase subalterna. Passei a vida dizendo precisamente o contrário: a existência da nossa profissão só tem sentido, só se justifica se tivermos a capacidade de buscar as informações e passá-las ao leitor/telespectador/ouvinte/internauta não apenas de uma maneira atraente, mas da forma mais didática possível. Aí reside boa parte da nobreza do que fazemos.

Escrevemos para as fontes

O jornalismo político está longe, muito longe disso. Somos muitas vezes pretensiosos e arrogantes.

Como é possível que não só colunistas de jornais – com leitorado menor, mais concentrado nos chamados formadores de opinião –, mas até mesmo repórteres tarimbados de televisão, ao falar para milhões de consumidores de informação – que incluem a dona de casa da favela da Rocinha, no Rio, o produtor rural de Jacarezinho (PR), o balconista de Taquaritinga (SP), o motoqueiro de Garanhuns (PE) ou o barnabé de Brasília –, consigam usar, sem explicar, termos e expressões como ‘relator’, ‘comissão mista’, ‘substitutivo’, ‘colégio de líderes’, ‘votação simbólica’, ‘destaque para votação em separado’ ou ‘pauta do Congresso travada por excesso de MPs’?

Na verdade, grande parte dos jornalistas políticos – como, de resto, do pessoal que cobre economia e negócios e outros setores – não parecem produzir suas matérias pensando, de fato, no grande público. Acabam, de forma automática, escrevendo sobretudo para suas fontes – e para os colegas.

Pela mão contrária, incidem exatamente no erro dos políticos que, ao darem entrevistas, empregam uma chorumela perfeitamente adequada a seus colegas, a funcionários da Câmara, do Senado ou de assembléias legislativas, mas que soa incompreensível e chatíssima para seus eleitores. Por quê? Porque se esquecem de se dirigir a eles, não falam para eles, mas sim para o jornalista entrevistador, no idioma comum que os une e que é sânscrito para o público.

O dever de explicar as instituições

E, no entanto, ser didático não se trata somente de uma obrigação técnica – elaborar corretamente a matéria consoante os cânones do melhor jornalismo. Ela constitui, ademais, um dever ético do jornalista. Tem a ver com os fundamentos da nossa profissão, com seu papel no mundo, com sua função social.

No Brasil, esse dever ético – no jornalismo político – vem acrescido de um peso especial: ser didático, no Florão da América, significa não apenas informar os fatos, explicá-los e, conforme a espécie de veículo, tentar interpretá-los, mas também procurar ajudar o público a entender como funcionam as instituições. Especialmente instituições confusas, mal estruturadas e em permanente mutação como as nossas (não custa lembrar que, com meros 17 anos de vigência, nossa Constituição já sofreu meia centena de emendas).

Pouca gente, no Brasil, até entre as elites, tem idéia de o que são, como são e como funcionam as instituições. Com exceção de alguns cursos superiores, especialmente o de Direito, esse assunto merece pouca ou nenhuma atenção dos currículos escolares. Ao jornalismo não cabe, logicamente, o papel de substituir a educação nesse aspecto, mas ele poderia e deveria ajudar, uma vez que o desconhecimento sobre as instituições é um permanente fator de diminuição de cidadania para as pessoas.

O jornalismo político, porém, não se ressente unicamente dos problemas expostos nos parágrafos anteriores – a cobertura de dimensões desmesuradas, o uso do jargão impenetrável, a despreocupação com o didatismo, a negligência para com o dever de informar sobre como atuam as engrenagens do Estado. Há ainda temas como a relação promíscua entre certos profissionais e suas fontes, os conflitos de interesses que se dão com jornalistas que acumulam funções em veículos com a atividade de consultoria, a excessiva proximidade de certos repórteres com o governo, ou com a oposição, em detrimento da necessária (tentativa de) isenção – e outros na mesma área ética.

Picuinhas x grandes questões

Como, porém, felizmente são detectáveis numa parcela dos profissionais, cabe voltar ao aspecto técnico e comentar pelo menos mais um tópico mal resolvido no jornalismo político praticado no Brasil: a ênfase dada à forma, em prejuízo do conteúdo.

Adoramos cobrir as manobras de bastidores, mesmo as desimportantes, as desavenças internas dos partidos, as picuinhas, o diz-que-diz-que palaciano, o quem-ganhou-quem-perdeu no episódio tal ou na crise qual, as intrigas entre adversários, as alfinetadas entre aliados.

Deixamos muitas vezes de lado o que os anglo-saxões chamam de issues – as questões, nem sempre grandes, mas importantes, que provocaram toda essa movimentação. Ou seja, as decisões, programas e leis que surgem da atividade do Executivo e do Congresso, suas causas, sua real importância e o que, enfim, resultará delas para o cidadão comum.

Esse nosso vício como jornalista atingiu seu paroxismo, provavelmente, durante os trabalhos da Assembléia Constituinte (1987-1988). Para quem não se lembra, ou não tem idade suficiente para haver testemunhado ou participado, a mídia se fartou na época de relatar os embates entre a aliança conservadora reunida em torno do chamado ‘Centrão’ e a esquerda nacionalista, bem como a rivalidade entre o presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães (PMDB-SP), e o à época presidente da República, José Sarney.

Dedicou-se, igualmente, um esforço enorme para relatar as manobras de Sarney para que seu mandato em curso fosse fixado, nas Disposições Transitórias da Carta, em cinco anos, em vez dos quatros com que se havia comprometido com a nação o presidente que morreu antes de tomar posse, Tancredo Neves.

Toda essa atividade política teve sem dúvida sua importância, tanto quanto foi útil e revelador o intenso noticiário sobre o que fez Sarney para enfim conseguir os 5 anos – a política fisiológica que a partir de então se tornou conhecida como ‘é dando que se recebe’.

Mas nós, jornalistas, não demos primazia, num momento crucial da história contemporânea, a um dever maior para com o leitor: o de decifrar que tipo de Constituição, enfim, se estava forjando no Congresso e em que e como ela poderia mudar a vida do país e dos cidadãos.

Seria injustiça negar que melhoramos de lá para cá. Seria injustiça negar que se observa um esforço, embora inconstante, por parte dos grandes veículos para explicitar melhor o conteúdo do que as decisões políticas encerram – e um bom exemplo recente foi a rica cobertura propiciada pela discussão do projeto que resultou na Lei da Biossegurança, abarcando itens tão fundamentais como os alimentos transgênicos e a utilização de células-tronco embrionária na pesquisa para a cura de doenças graves.

Tanto nessa questão, porém, como nas demais comentadas neste artigo – e em outras mais, que poderiam ser abordadas –, há muito a caminhar. O vasto noticiário político que produzimos ainda exclui o grande público.

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Jornalista