Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A morte de uma revista

Tenho nas mãos um cadáver. Colorido, feito de papel brilhante. Ainda assim, um cadáver. É a edição de julho da revista inglesa Word, especializada em música, cinema e livros. A Word acabou. Durou nove anos. Era, disparada, minha publicação favorita, em qualquer língua ou plataforma. Perdi a conta das coisas interessantes que descobri por ela e repassei aos leitores -neste mesmo espaço e quando ainda escrevia no “Folhateen”. O romance One Day, de David Nicholls. As bandas Arcade Fire e XX. As séries de TV The Killing e The Hour. As cantoras Joan as Police Woman e Keren Ann (enquanto escrevo, ouço, desta última, “All the Beautiful Girls”, e acho que você deveria fazer o mesmo).

O cuidado no acabamento, a elegância do projeto gráfico e a alta qualidade dos textos não deixavam transparecer – mas a Word era uma publicação modesta, editada por uma equipe minúscula em um escritório detonado no norte de Londres. À frente, duas feras do jornalismo musical, os coroas Mark Ellen e David Hepworth. Dupla que comandou, nos anos 1980, a Smash Hits, revista que parecia só pop, mas era cheia de ousadias e transgressões. A Word atendia tão perfeitamente a meus interesses e expectativas, que, graças a ela, descobri, para além de qualquer dúvida, fazer parte de um nicho.

Passei pela primeira experiência do tipo quando morei no Rio, no final dos anos 1990. Em terras cariocas, tive contato com dezenas de pessoas que ouviam MPB, discutiam cinema brasileiro, liam o Jornal do Brasil. Até então, eu não conhecia ninguém com esses hábitos que, na época, considerava tão exóticos.

Ao morrer, vendia 25 mil exemplares

Uma situação marcou muito. Andava pela rua Vinicius de Moraes, em Ipanema, acompanhado de um amigo e uma de suas inúmeras namoradas. Ao passarmos por uma loja especializada em bossa nova, a jovem não se conteve. Declarou toda sua emoção por caminhar numa rua com o nome do poetinha, pisar no mesmo chão que ele pisou, poder entrar numa loja cheia de livros e CDs do homem. Por convicção, traço geracional ou pura ignorância, não sei direito, poucas coisas me interessavam menos do que a obra de Vinicius. Não entendi aquela pessoa tão novinha fascinada por um autor que, para mim, representava um Brasil do passado, contemplativo e largadão.

Em um primeiro momento, fiquei apavorado. Suspeitei que os velhos Electra que faziam a ponte aérea fossem, na verdade, máquinas do tempo disfarçadas, e que, ao pousar no Santos Dumont, eu tivesse sido teletransportado diretamente aos anos 1970. Com o tempo, vi que não era nada disso. Em minha nova cidade, tão linda e onde fui tão bem acolhido, o estranho era eu. Entendi que o universo de onde eu vinha não era exatamente um universo – era um nicho. Por sinal, dos menores. O Rio me apresentou ao mundo real.

Muitos anos depois, ao conhecer a Word, lá pelo número 4 ou 5 (ela durou 114), lembrei muito dessa temporada carioca. Lendo a revista pela primeira vez, meu primeiro impulso foi dizer: “É a melhor do mundo!” Mas aí eu já tinha mais experiência. Entendi que a Word era, de fato, a melhor revista do mundo… mas só para mim e infelizes como eu. Ao morrer, tinha circulação de 25 mil exemplares. Número que seria modesto até no Brasil, que dirá no ainda gigantesco mercado editorial inglês.

A gente tem de ser safo

Triste saber que, no mundo todo, tão poucas pessoas se dispunham a pagar por uma publicação que conseguia acompanhar muito de perto as novidades – mas sem cair na doença infantil da imprensa musical, especialmente britânica, de buscar o novo pelo novo. E que sabia revisitar o passado sem nostalgia ou choramingos do tipo “bom mesmo era naquele tempo”.

No exemplar que folheio agora, Ray Davies, dos Kinks, está na capa. Lá dentro, entrevistas com Bob Mould, Tracey Thorn e loucaço Lawrence, do Felt.

Desculpe, não vou explicar quem são. Por isso deixei para citá-los só agora, no final. Não pretendia assustar você lá no começo, queria que chegasse até aqui. Nessa vida, a gente tem de ser safo. Mais uma que aprendi no Rio.

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[Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo]