Nada mais ilustrativo para as profundas contradições desses tempos modernos (ou nem tão modernos assim) do que haver acompanhado os momentos finais de mais um ano, em meio a noticiário de enforcamento, foguetórios, ‘apagão’ aéreo, espírito de festa, vítimas carbonizadas pela barbárie do crime (des)organizado. Nessas horas, percebe-se o fio da navalha sobre a qual desliza a elaboração diária de jornais.
Os periódicos, de um modo geral, tiveram de driblar a feição antitética dos acontecimentos, no melhor estilo de Garrincha, para não se entortarem com os dribles aplicados pela realidade objetiva. Nessa mescla de conteúdos díspares, apenas superável pelo roteiro caótico que a TV Globo insiste em imprimir a suas tradicionais ‘retrospectivas’, fica patente quanto a civilização tem de aprender para alcançar um nível satisfatório de convivência harmoniosa.
O teatro do absurdo
Diante da rede de narrativas tão assimétricas, seja em âmbito nacional, seja em escala internacional, o jornalismo brasileiro deu lições de comedimento e pleno domínio acerca dos fundamentos que regem a teoria funcionalista, ao tentar informar quadro de horrores, temperando com receitas à base de especiarias e frugalidades dos festejos. Uma vez mais, evidenciou-se que a mídia nacional, até onde é capaz, procura não fomentar atmosfera alarmista.
O confinamento de passageiros num vôo da Gol, ao longo de quatro horas, sem que mínima explicação convincente fosse dada, é algo próximo da irracionalidade. O episódio no qual parlamentares suplentes, por inócuos 22 dias, receberão ganhos perto de 50 mil reais representa, a despeito do amparo legal, uma afronta ao cidadão comum. A anterior trama de parte do Congresso para a majoração escandalosa dos próprios salários mais pareceu uma das noitadas romanas que Calígula proporcionava, alternando intenso prazer com atos da mais refinada crueldade. A tudo se soma o noticiário sobre dezenas de vítimas que, a cada janeiro, perdem suas vidas em desabamentos e flagelos de toda ordem.
A sensação que se tem, perpassando as páginas diárias, é a de que se vive num país no qual pessoas vivem e morrem por acaso, seja a efusividade derivada das festas, seja a tragicidade oriunda das mazelas sociais. Ao jornalista, oferece-se a imperiosa obrigação de registrar, sem saber ao certo, se o que recolhe é efetivamente substância da vida concreta e real ou se tudo não passa de uma imensa atmosfera onírica na qual, sob o movimento de um pêndulo, ora vem à luz o devaneio, ora surge das trevas o pesadelo.
A melhor maneira de um futuro jornalista preparar-se para o ofício, quem sabe, seja, na sua graduação, esmerar-se na leitura das narrativas de Kafka, além de algumas peças de Pirandello, Beckett, Ionesco e Ibsen. A propósito, seria aconselhável também incluir algo de Shakespeare e Nelson Rodrigues. O leitor não deve reconhecer nesse escrito nenhum tom irônico. A sugestão é absolutamente honesta. É o preço a se pagar por Descartes não haver passado pelo Brasil.
Seis horas
Parte do perfil de nossa imprensa provém da percepção de como os acontecimentos se dão entre nós. A preconizada imparcialidade do jornalista que, a rigor, a sabemos inviável, talvez provenha da intuição de que o Brasil é um conceito abstrato de imenso território no qual pessoas transitam e, bem ou mal, estruturam suas vidas. A neutralidade – outra palavra complicada para o jornalismo – pode supor a idéia de não-pertencimento. E, assim, os noticiários se vão compondo.
O país é cravado por tamanha descontinuidade que nem os padrões distintivos entre riqueza e miséria podem, no Brasil, ser diferenciados com a devida clareza. Em muitos segmentos nos quais se identifica a fartura da riqueza material, ali igualmente se encontra a miserabilidade humana. Em outros segmentos em que se constata a carência de quase tudo, ali se descobre uma energia imensa e pronta para dar o salto qualitativo, à espera, apenas, de mínimo incentivo. Quando se migra para a cena política, de imediato descobre-se que o que alguma autoridade diz não é o que depois (ou logo em seguida) será feito. E fica por isso mesmo. A solução estará em sair do lugar. Mas, para onde? E como?
Quem pode pagar passagem aérea oferece-se ao martírio. Quem se consola com passagem de ônibus expõe-se ao alto risco de perder a vida. Quem se aventura em viajar em seu veículo está sujeito, afora abordagens do mal, às armadilhas das próprias estradas cujas condições são deploráveis. É nesse emaranhado de insolvências que o padrão médio da vida brasileira produz (e reproduz) a modelagem jornalística: extrai o riso do horror e usa a estética do humor para as desventuras. Na média, assim são os leitores. Na mídia, assim se comportam os profissionais. Há um certo regime de solidariedade entre as duas esferas.
A cobertura que jornais cariocas conferiram ao assalto de turistas croatas e alguns austríacos teve, mais ou menos, esse condimento indiferenciado entre a indignação e a leveza. Não bastassem 12 horas de vôo, ao serem liberados no aeroporto, entraram em ônibus de turismo e, minutos após, em local onde já haviam ocorrido episódios de violência, sem nenhuma força policial próxima, foram saqueados em todos os seus pertences por bandidos que saíram do interior de dois carros. Como ‘prêmio’, os turistas lesados foram levados para a delegacia na qual, durante intermináveis seis horas, permaneceram detidos para depoimento.
É crível? No Brasil, sim. Como ler tal relato sem, ao final, esboçar envergonhado riso? Sigamos a vida, afiando a navalha…
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)