Quem não se lembra do nosso país antes dos anos 1990, do ‘Brasil burguês’? Tudo na vida urbana brasileira era padronizado: ruas, pessoas, rituais, sorrisos e lágrimas, tudo parecia programado por uma máquina social norte-americana e européia.
No entanto, alguma coisa estava fora da ordem: os negros, os marginalizados e os depositados em ‘aldeias’ (não como as dos índios, as quais, pelo menos, um dia foram organizadas e estruturadas) na periferia das cidades. Nas ruas, o que se via era o ‘Brasil norte-americano e europeu’ embrutecer as vistas, torcer o nariz e esconder as bolsas dos negros que passavam de cabeça baixa, com rosto torcido de humilhação, em um sentimento de ódio sufocado e inútil. Estes amontoavam-se na parte baixa das cidades ou nas pirambeiras dos morros, onde os esgotos fediam, onde tudo de ruim acontecia. A maioria desses ‘favelados’ estava desempregada em decorrência do neoliberalismo, que cada vez mais excluía a mão-de-obra das atividades industriais do país.
A injustiça não espantava os veículos de comunicação. A ausência total de compaixão era suplantada pelas belas paisagens. Não se via, nas telas da TV, gente excluída e moldada pelo sofrimento e desesperança, mas, sim, o favelado infrator.
O interesse dos formadores de opinião
Anos depois, na época da ‘igualdade racial e da integração globalizada’, tudo continua como antigamente, ou até pior. O roubo, o assassinato, o tráfico, o estupro, a gente porca, preguiçosa e prostituta, o artista marginal da novela, todas essas personagens continuam sendo associados a pessoas negras e/ou periféricas. Frases e termos como ‘o morro desce e aterroriza o asfalto…’; ‘jovens de classe média estão sendo induzidos por traficantes e indo morar nas favelas…’; ‘traficantes, vagabundos, marginais, assassinos etc.’… são disseminados na mídia televisiva, freqüentemente sem qualquer escrúpulo ou investigação empírica do que está sendo abordado. Associa-se o mal e o inferior à cor da pele e à classe social, constituindo e moldando uma sociedade com padrões perigosos e discriminatórios. Bezerra da Silva, por exemplo, não era cantor nem compositor – era ‘malandro do morro’.
Nesse contexto, pouco se exibe sobre os criminosos engravatados, sobre a violência das elites massacrando os oprimidos e sobre o policiamento vergonhoso e opressor nas favelas. Paira, no mundo midiático, um clima de intolerância que informa através de uma disfunção narcotizante. Os meios de comunicação estão sobrecarregando os indivíduos com informações e essa sobrecarga tem um efeito perverso. A existência de amplas massas da população socialmente apáticas e impotentes é de interesse dos formadores de opinião. Tal conformismo se constitui em um mecanismo útil para que estudiosos reiterem a concepção de um receptor passivo, inconsciente, viciado, sem domínio sobre si próprio.
O ‘protesto do morro’
Para agravar ainda mais a situação de exclusão, os meios de comunicação de massa disseminam padrões de conforto e bem-estar que não são acessíveis à maioria da população, mas apenas ao seu segmento privilegiado. Os programadores dos conteúdos divulgados para as grandes massas, estrategicamente, dissimulam o alcance do seu usufruto, estimulando a busca incessante por uma realidade ilusória e provocando frustrações. Em 1963, Lerner já advertia sobre a rapidez com que a revolução das expectativas crescentes, desencadeada pela popularização dos canais de mediação simbólica, poderia conduzir à revolução das frustrações crescentes se à expansão das redes nacionais de comunicação de massa não correspondessem alterações estruturais na sociedade que equalizassem as oportunidades de acesso dos cidadãos aos benefícios da modernidade.
Freqüentemente, a TV aplica doses de medo e sensacionalismo, manipulando e regulando o sistema. Um exemplo recente foi o que nós chamaríamos de ‘o protesto do morro’, decorrente da insatisfação das massas que permanecem à margem do progresso econômico e social da cidade de São Paulo, com o intuito de chamar a atenção da ‘sociedade do asfalto’, dos ‘civis narcotizados’. O que se viu nos noticiários foi que integrantes de facções criminosas foram localizados pondo fogo em ônibus, matando pessoas, aterrorizando o comércio, gerando um indescritível pânico na cidade. Em minutos, a metrópole parecia um campo de refugiados, de perdedores, com cabeças inchadas, humilhados pelos ‘marginais’ invasores. Os jornais (principalmente o Jornal Nacional, da Rede Globo) tinham como plano de fundo o caos.
Os ‘dois lados da moeda’
Nos morros, o povo ria e comemorava o sucesso, por demonstrar que ali existem cidadãos que possuem voz e vez. Não estavam nem um pouco preocupados com o reflexo da uma imagem cruel, assassina e inconstitucional, massificada pela mídia. Para as elites detentoras das redes televisivas – os famosos ‘formadores de opinião’ –, o protesto, isto é, a voz da periferia marginalizada, soou como terrorismo e tornava-se nas telas uma arma violenta e assassina propulsora de um cenário caótico e baderneiro.
É preciso que se tome consciência de que essa segregação urbana (morro vs. asfalto) brasileira, que está sendo fomentada pela TV e por outros veículos de comunicação de massa, não resolve a questão da violência no país; muito pelo contrário, com toda certeza agrava ainda mais o problema. O caminho da integração social e a criação de vínculos de solidariedade com as diferentes comunidades mostram-se uma estratégia viável para estimular os governantes a buscarem mecanismos de aceleração das transformações indispensáveis a um desenvolvimento que potencialize as riquezas regionais e as converta em fatores de satisfação das necessidades básicas de suas populações. A grande força das comunicações do Brasil, concentrada para os interesses de algumas classes, precisa ser democratizada. Em resumo, é necessário ouvir e abordar ‘os dois lados da moeda’, respeitando as diferenças culturais e os interesses reivindicatórios de cada classe.
******
Estudante de Jornalismo em Multimeios na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Juazeiro, BA