Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Michael Massing

‘Alguns dias atrás, recebi um e-mail de um amigo perguntando se eu estaria disposto a incluir o meu nome numa lista de escritores e artistas em apoio a um dos dois principais candidatos à Presidência dos Estados Unidos.

Fiquei bastante tentado. Como muitas outras pessoas, para mim esta é uma eleição absolutamente crítica, que coloca uma escolha muito clara. E eu estaria disposto a me abster de sexo por um ano para ver o meu candidato vencer – aquele mesmo que me pediram que endossasse. Ao mesmo tempo, sou jornalista e, tradicionalmente, jornalistas neste país não tomam partido abertamente, sob a alegação de que fazê-lo poria em risco a sua ‘objetividade’.

Estará essa tradição obsoleta? Se tenho convicções firmes, por que não declará-las? Seria isso menos honesto do que não fazê-lo? Além do mais, minhas preferências não desaparecem só porque as oculto dos meus leitores.

Essas perguntas se tornaram mais prementes porque o debate político nacional fica cada vez mais partidário.

Procurando achar uma resposta, tentei pensar em algum escritor ou escritora que admiro e imaginar o que ele ou ela faria nessa situação. George Orwell logo me veio à cabeça. Será que ele teria aprovado o uso de seu nome? Santo Deus, pensei, ele foi até a Espanha para lutar contra o fascismo! Comparada com isso, a recusa a endossar um candidato parece totalmente inaceitável.

Refletindo melhor, no entanto, lembrei-me de como Orwell ficou desiludido com seu próprio lado na Guerra Civil Espanhola e como mais tarde, apesar de jamais ter hesitado em seu compromisso com a justiça e a igualdade, ele se foi tornando cada vez mais livre-pensador e iconoclasta, zelosamente cuidando de manter sua liberdade para escrever sobre hipocrisias e incoerências em qualquer âmbito do espectro político que achasse melhor.

Pensei um pouco mais sobre alguns jornalistas de hoje e na polêmica levantada por seu envolvimento político. O nome de Dan Rather foi o primeiro que saltou à minha frente. Visto como um demônio pelos conservadores, para quem ele é um liberal de carteirinha, Rather confirmou essas suspeitas quando, em 2001, falou com um tesoureiro de campanha democrata em Austin, no Texas. Durante o recente fiasco sobre o uso de documentos falsos pela CBS, a direita tratou logo de usar essa divulgação para prosseguir nos ataques contra ele.

Por outro lado, George Will foi rotundamente criticado depois que veio a público a informação de que ele ajudara a preparar o então candidato a presidente Ronald Reagan para seus debates com Jimmy Carter, em 1980.

Articulista assíduo nas páginas de opinião dos jornais nacionais, não há dúvidas sobre onde Will se situa politicamente, é claro, mas, mesmo assim, seu envolvimento direto com um candidato – sobre o qual simultaneamente escrevia – o deixou marcado e um tanto menos confiável.

No que diz respeito ao noticiário do dia-a-dia, o potencial de problemas parece maior ainda. Tomemos, por exemplo, uma questão como o aborto. Digamos que você estivesse lendo uma reportagem sobre esse assunto num jornal e descobrisse que o repórter fizera contribuições em dinheiro para a National Abortion Rights Action League. Se você é contra o direito ao aborto, imediatamente ficaria de pé atrás, qualquer que fosse o conteúdo do texto. E certamente sentiria o mesmo se fosse a favor do direito de escolha.

Por isso, embora eu tenha, sim, posição firmada, prefiro que os leitores julguem meus artigos exclusivamente pelo conteúdo, sem que nenhuma eventual atividade política minha interfira no seu julgamento. Anos atrás, quando trabalhei na Columbia Journalism Review, a posição da redação era a de que, como críticos da imprensa, devíamos ser como a mulher de César: acima de qualquer suspeita. Não é uma regra ruim para todos os jornalistas. Talvez eu venha a ser acusado de hipócrita. Talvez seja verdade que a melhor maneira de neutralizar a parcialidade, que todos temos, é ser absolutamente transparente – e que, quanto mais os leitores souberem a nosso respeito, melhor podem julgar nosso trabalho. Mas o que eu levanto é uma questão prática. Quanto mais descomprometido eu for, mais eficiente posso ser. E, ao fazer o meu trabalho, tentarei ser, como qualquer bom jornalista, se não exatamente objetivo (afinal, todo mundo tem um ponto de vista), tão preciso e correto quanto possível.

Isso não significa que eu concorde com Leonard Downie Jr., editor-executivo do jornal The Washington Post, quando ele argumenta que jornalistas, no interesse da objetividade total, deveriam até abster-se de votar. Eu vejo o ato do voto como um direito cívico básico – na verdade, um dever – que todos os americanos (até mesmo ex-condenados) deveriam ser estimulados a exercer.

Mas não vou revelar em quem votei. E certamente não vou dizer que candidato me pediram que endossasse. (Michael Massing, jornalista e escritor, é autor de Now They Tell Us: The American Press and Iraq, recém-publicado pela New York Review Books)’



David Thompson

‘Desrespeito bem-vindo’, copyright O Estado de S. Paulo, 8/10/04

‘Nas análises que se seguiram ao primeiro debate presidencial, muitos comentaristas se referiram ao efeito da tela dividida, quando as câmeras mostraram a reação de um candidato enquanto o outro falava. Foi quando o presidente Bush, agastado, piscando e carrancudo em reação às respostas de John Kerry, pareceu mais petulante. No debate entre os candidatos à vice-presidência, terça-feira, ambos os debatedores pareceram ter aprendido com os trejeitos de Bush e, no geral, olharam um para o outro como se estivessem fazendo um teste para emprego de guarda-costas.

Mas é vital para os telespectadores ver como os candidatos reagem aos comentários do outro, e as redes acertaram em ignorar as regras impostas pelos partidos que restringiam o que podia ser mostrado durante o debate.

Ainda assim, as redes usaram técnicas diferentes para quebrar as regras. Uma tela verdadeiramente dividida foi empregada somente por algumas delas como a ABC e C-Span, ao passo que as outras, como a PBS, respeitaram o que pode ser chamado de relação espacial entre os dois debatedores.

Uma tela dividida é composta de duas ou mais imagens reunidas em uma única imagem ou numa única tela. Assim foi uma tela dividida na ABC, quando imagens semelhantes de Bush e Kerry foram postas lado a lado com uma nítida linha divisória entre elas. Mas na PBS, a divisão foi o que realmente é chamado de duas tomadas: uma única imagem na qual vemos duas pessoas ao mesmo tempo, com um espaço entre elas. Tal tomada talvez não contenha as figuras de corpo inteiro, porém, como revelou o primeiro debate, um diretor engenhoso com um bom ângulo de câmera poderá mostrar uma pessoa falando com a outra (no fundo ou ao lado) ouvindo, reagindo e geralmente se comportando como um idiota nato.

Em estudos cinematográficos, e em determinada época na realização de filmes, a tomada dupla foi uma obrigatoriedade. A tomada de duas ou mais pessoas não totalmente de corpo inteiro, mas conversando e interagindo, muitas vezes foi chamada de ‘tomada americana’ nos comentários cinematográficos franceses.

Isso porque costumava ser obrigatoriedade na boa filmagem americana. Pode ser encontrada nos filmes de Howard Hawks, por exemplo, um diretor cuja obra inclui Bringing Up (Levada da Breca), His Girl Friday (Jejum de Amor), To Have or Have Not (Uma Aventura na Martinica), e The Big Sleep (À Beira do Abismo), entre outros. Eu poderia elogiá-lo durante um longo tempo. Mas aqui deixe-me dizer apenas que ele é ‘audacioso’ e ‘elegante’ por causa de sua habilidade com a tomada de grupo.

Compreendo que vivemos numa época em que muitos da mídia noticiosa, para não falar na audiência, tomam como certo que o cinema e a televisão não requerem nada a não ser close-ups. E não quero criticar o close-up. é uma coisa esplêndida e adorável, mesmo quando mostra um jogador de futebol cuspindo alguns dentes.

Mas a tomada dupla e a tomada de grupo nos ensinam outra lição – que existe relações espaciais na vida. Quando estão conversando, as pessoas olham uma para as outras, ouvem ou tentam não ouvir. A variedade na linguagem corporal e na postura é enorme e bela, e uma vez houve uma forma de fazer cinema que vicejava nesses elos. Se você quiser verificar isso, eu recomendaria quase tudo de Jean Renoir, Kenji Mizoguchi, Max Ophüls, Otto Preminger, Orson Welles, Yasujiro Ozu.

Vou avançar mais um passo, se me permite. Houve uma vez um conjunto de teorias sobre direção cinematográfica, ou mise-en-scène, que provava a estética e a ética de usar relações espaciais no cinema. Você pode encontrar isso registrado lindamente na obra de André Bazin.

Simplificarei a questão aqui, mas Bazin (e outros) acreditavam que o cinema (e por que não a televisão?) tinha (ou tem?) uma afinidade natural para mostrar pessoas juntas e pessoas em lugares de forma que as entendamos melhor. O close- up (vital como é para a narração) tende a enfatizar o glamour, o drama (ou melodrama?) das pessoas solitárias; tem a semente da ditadura nele. Durante décadas, o cinema foi baseado no conceito de que todas as pessoas são iguais, parecidas, embora diferentes, e encontrou sua magnificência nas tomadas de grupo.

Algumas vezes já ouvi as eleições serem descritas da mesma forma. E vale a pena ressaltar que a tentativa de restringir a forma de mostrar os debatedores antes do debate foi uma intrusão grosseira num tipo de expressão livre que é parte integrante do cinema e da sociedade que o usa. Parabenizo as redes de televisão por terem ignorado isso e por terem usado algumas vezes a tomada dupla no qual o elo espacial estremeceu com animosidade e os dois homens envolvidos se comportaram naturalmente, isto é, permitiram que víssemos quanto se detestam, e nos deram a oportunidade de olhar dentro de sua natureza íntima.

Hoje à noite é o grande teste, no famoso ‘cenário da sede da prefeitura’ – uma verdadeira arena espacial, com espectadores e entrevistadores compartilhando o espaço dos debatedores. Observe para ver se George Bush não é tão insinuante e variável quando Gene Kelly. Mas reze pelos diretores que conhecem seu cinema e podem enxergar a sede da prefeitura com o relance abrangente de um Jean Renoir.’



Amir Labaki

‘Retratos partidos nas eleições’, copyright Valor Econômico, 8/10/04

‘A batalha pelos corações e mentes que decidirão o futuro da Presidência dos EUA prossegue nesta sexta na TV com o segundo debate entre George W. Bush e John Kerry. No sábado, também – pois nunca antes uma eleição americana mobilizou tantos documentários. ‘Fahrenheit 11 de Setembro’, de Michael Moore, é apenas o pico da pirâmide. Mas há também sucessos pró-Bush.

O mais positivo retrato foi rodado na campanha de 2000, por Alexandra Pelosi, filha de uma deputada democrata. Pelosi cobriu Bush Jr. por 18 meses para a NBC e editou os bastidores em ‘Journeys with George’, que valeu à HBO um Emmy no ano passado. Definido por ela mesma como ‘home movie’, o documentário apresenta um candidato carismático e bem-humorado, muito menos arrogante, no papel de 43º presidente americano.

A mesma HBO lança nos EUA, na próxima semana, ‘Diary of a Political Tourist’, outro documentário de Pelosi, desta vez focalizando, claro, John Kerry. O Festival Internacional de Toronto, no mês passado, saiu na frente, com o privilégio da estréia de ‘Going Upriver: The Long War of John Kerry’, de George T. Butler. Os infames ataques ao currículo militar do democrata encontraram aqui sua mais argumentada resposta. Butler reconstitui a participação de Kerry na Guerra do Vietnã e destaca sua corajosa campanha antibelicista ao voltar para casa, ferido e condecorado.

Nenhum documentarista tem trabalhado mais contra a reeleição de George W. Bush do que Robert Greenwald. Os filmes que produziu ou dirigiu não conquistaram tantos prêmios, nem arrecadaram tanto quanto os de Michael Moore, mas sua voz tem se feito ouvir com igual força e veemência. Comentei aqui há alguns meses a primeira parte de sua tetralogia anti-Bush, ‘Unprecedented: The 2000 Presidential Election’ , produzido por Greenwald e dirigido por Richard Pérez e Joan Sekler, que o MIS-SP exibiu no mês passado. Logo seguiram- se ‘Uncovered’, sobre as verdades e mentiras por trás da corrente guerra no Iraque , e ‘Unconstitutional’, a respeito dos atentados às liberdades democráticas mobilizados pela ‘Guerra ao Terror’.

O quarto documentário da série, ‘Outfoxed’, também alveja a atual hegemonia conservadora nos EUA, mas o centro do palco não é ocupado por Bush Jr, e sim pelo canal de notícias Fox News. O crítico Roger Ebert resumiu com precisão a tese central de Greenwald: ‘Fox é uma máquina de propaganda republicana.’

Com o subtítulo ‘A Guerra ao Jornalismo de Rupert Murdoch’, ‘Outfoxed’ metralha a cruzada reacionária travestida em informação apresentada ao público 24 horas por dia pela Fox. Quando procura ampliar o alvo e atingir o conjunto das corporações de entretenimento, o recado de Greenwald perde eficácia. Concentrada na Fox, sua argumentação é certeira.

Claro que sempre se pode afirmar que Greenwald defende tão radicalmente seu lado, o chamado campo dos ‘liberais’ nos EUA, quanto Murdoch e a Fox o deles, o dos ‘conservadores’. A diferença essencial é que Greenwald joga muito mais limpo. Como diz numa entrevista Jeff Cohen, ex-colaborador da Fox, ‘a crítica não é por ser (a Fox) conservadora, mas sim por se anunciar como justa e equilibrada’ (‘fair and balanced’).

‘Outfoxed’ pulveriza os dois ‘slogans’ tradicionais da emissora de Murdoch, ‘Fair and Balanced’ e ‘We Report. You Decide’ (Nós Reportamos. Você Decide). O primeiro ‘motto’ sucumbe a uma simples pesquisa feita por uma ONG de crítica de mídia, a FAIR. Acompanhando por 25 semanas, no final do ano passado, a sucessão de entrevistados do principal programa do gênero da Fox, o ‘Special Report with Brit Hume’, o levantamento comprovou que 83% dos convidados eram republicanos, contra 17% de democratas.

O eficiente trabalho de edição de material da própria emissora, estruturado a partir dos comentários de uma série de especialistas em mídia, de ex-funcionários da Fox e de personalidades como Walter Cronkite e Al Franken, cuida de destruir o segundo lema publicitário. Como frisa James Wolcott, da ‘Vanity Fair’, ‘comentários e notícias estão sempre combinados’.

Duas seqüências liquidam aqui a fatura. Numa, sucedem-se âncoras, repórteres e comentaristas da Fox abrindo suas falas com um genérico ‘some people say’ (algo como ‘dizem por ai’), para camuflar suas opiniões como notícias. Na seguinte, a contagem regressiva dos dias que faltam para a eleição é acompanhada por frases de apoio a Bush: ‘Duzentos e treze dias para a reeleição de George W. Bush’. É descarado assim. Como no anterior, e mais cinematográfico, ‘Unprecedented’, ‘Outfoxed’ extrai sua força de citar fontes, dar nome aos bois e exemplificar exaustivamente cada ponto.

Não faltam, assim, flagrantes de brucutu protagonizados pela estrela maior da Fox, Bill O’Reilly, memorandos internos indecorosos no direcionamento de pautas pró-Bush e anti-Kerry, casos de afastamento e demissão de profissionais que desafiam a cartilha de Murdoch e, claro, histórias concretas de serviços prestados a Bush. Não apenas era seu primo John Ellis quem pilotava a cobertura da Fox na noite eleitoral de 2000, como o repórter responsável pela cobertura da campanha de Bush era casado com uma militante de sua candidatura. Tudo somado, compreende-se o desabafo cívico de Cronkite, a maior lenda viva do jornalismo norte-americano: ‘Nunca vi nada parecido’.’



Marcelo Coelho

‘O PDP e o PFP’, copyright Folha de S. Paulo, 6/10/04

‘Meu inglês não é dos melhores, mas mesmo assim deu para acompanhar um pouco do debate entre Bush e Kerry, na quinta-feira passada. Querendo ou não, já estamos familiarizados com o vocabulário das discussões: weapons, terrorism, Iraq, war, defense, destruction…

Descrito assim, parece uma chatice. Nada disso. A fala final de Kerry foi clara, firme e empolgante, apesar da constante expressão de cachorro molhado que ele tem. É verdade que eu estava torcendo a favor de Kerry. Mas não pensei que fosse torcer tanto assim. Na verdade, o desempenho do candidato democrata é que me animou a ver o programa até o final.

Seja como for, não tive nenhuma sensação de perda de tempo. Tudo corria com fluência. Não havia bate-boca nem enrolação. Em seu artigo de segunda-feira, João Sayad observou que ‘o jornalista Jim Lehre controlou sozinho o espetáculo: fez todas as perguntas para os candidatos, manteve a platéia em silêncio absoluto e decidiu sobre o direito de resposta de cada um’.

Difícil evitar a comparação com o caso brasileiro. Aqui, há muitas razões para os debates entre candidatos se tornarem cada vez mais insuportáveis. Uma delas é o engessamento das regras: pensa-se menos na conveniência do eleitor do que na dos candidatos. E há uma desconfiança básica com relação à burla e à malandragem. Para evitar injustiças e manobras escusas, tenta-se prever tudo, regulamentar tudo, assegurar por escrito os direitos de todos.

No caso americano, é provável que ocorra o inverso. O mediador do debate tem mais liberdade de agir, e não se temem tantos abusos, porque o controle sobre suas ações não depende de normas, leis, regulamentos, e sim do veredicto da opinião pública. A autonomia individual é maior, porque o julgamento coletivo se exerce mais de perto.

Aqui, as preocupações com uma lei mais justa tendem a resultar em burocracia, da qual os malandros sabem se aproveitar. Por essa e por outras razões, o debate americano se torna ao mesmo tempo mais franco e mais próximo do entretenimento televisivo; aliás, parece que tudo nos Estados Unidos -de um culto religioso a um bombardeio- tem de obedecer à lógica do entretenimento. No Brasil, a começar pelo voto, tudo é dever; e, como sempre queremos escapar do dever, tudo se burocratiza -até o entretenimento. Se há regras até para o desfile das escolas de samba, por que não para os debates?

Não é novidade dizer que no Brasil o Estado se sobrepõe à sociedade e que, em países de tradição liberal, como os Estados Unidos e a Inglaterra, predomina a autonomia individual e a auto-regulamentação. Mas pensei mais uma vez nisso ao ouvir alguns comentários a respeito das últimas eleições.

Afirma-se, por exemplo, que dois partidos saíram fortalecidos das últimas eleições municipais: o PT e o PSDB. Do ponto de vista factual não é incorreto. Mas acho mais verdadeiro dizer que, como sempre no Brasil, só existem dois partidos. O Partido Dentro do Poder e o Partido Fora do Poder.

O PT, que em política sempre foi adepto das coisas que vinham ‘de baixo para cima’, sendo até acusado de ‘basista’, é hoje apenas o Partido Dentro do Poder. A cúpula, em Brasília, arruma alianças com Sarney, ACM, Maluf ou quem quer que seja, e é uma exceção simpática o caso de Fortaleza, em que a candidata do PT passou para o segundo turno à revelia dos interesses do Planalto.

A ‘fala do poder’, o discurso do ‘mereço mandar porque estou mandando’, ocupa, entretanto, um espaço que, no PT, antes era dedicado à iniciativa popular e às organizações de base. A gente nem percebe, mas deveria ser motivo de choque ver a candidata Marta Suplicy dizendo que fará mais por São Paulo porque Lula está no poder em Brasília. Os recursos vieram. E não vinham quando Fernando Henrique era presidente. Implícita, a ameaça mandonista: se o outro candidato for eleito, não nos responsabilizamos pelo que possa acontecer. Melhor ser amigo dos caras lá em cima.

Militância, organizações de base? Ah, sim, Marta não se esqueceu do tema. Em outra linha espantosa de pronunciamentos, desculpou os capangas que tumultuaram o passeio de Serra pela zona sul da cidade. Não só a prefeita ‘não se responsabiliza pela militância’ como também disse, na CBN, que havia um componente de provocação por parte de seu adversário.

Talvez Marta Suplicy até ganhasse mais votos se condenasse, como prefeita de uma cidade democrática, qualquer grupo que pretendesse cercear a campanha de seu adversário. Preferiu lavar as mãos; quem está no poder sempre tem sabonete de sobra à disposição.

Esqueçam-se ideologias, compromissos e percurso político. Cabos eleitorais pagos e leões-de-chácara de praça pública, nas bases; verba federal, acordos com a oligarquia e marquetagem de alto luxo, na cúpula: eis o que sustenta o Partido do Poder.

Quanto ao PSDB, tenta sobreviver junto com fatias do PFL no papel de Partido Fora do Poder. É difícil, porque nunca se propôs a representar os excluídos, os sem-terra, os esquecidos pelo poder ou coisa que o valha. O discurso de Serra se torna incrivelmente vazio: fala apenas em ‘planejamento’ e ‘prioridades’. Menos do que dar voz a qualquer grupo organizado da sociedade, toma a palavra em nome de si mesmo. Ou seja, uma espécie de porta-voz da Razão Administrativa sem cargos, nem lobbies, nem setores da sociedade a que prestar contas.

Mas nisso se resume a comédia da política brasileira: supondo-se que tudo é amorfo, menos o Estado… para quem prestar contas, afinal?’




Nelson de Sá


‘Dos blogs ao ‘NYT’, um rumor’, copyright Folha de S. Paulo, 12/10/04


‘Começou na web. Sites diversos, sobretudo ‘liberais’, especulavam durante a semana passada em torno de fotos que mostravam um volume sob o terno de George W. Bush, no primeiro debate.


Logo apareceu um site, isbush wired.com, supostamente voltado a descobrir se ele tinha um radiotransmissor a apoiá-lo no programa -com o assessor Karl Rove do outro lado. Na sexta-feira, a revista on line Salon trouxe reportagem sobre o ‘rumor’, o que deu legitimidade à história.


Na seqüência, no fim de semana, tanto o ‘New York Times’ como o ‘Washington Post’ deram longas reportagens sobre o ‘mistério do volume’, com as negativas dos porta-vozes de Bush para a especulação.


Ontem, num bate-papo no site do ‘WP’, um editor do jornal dizia não haver ‘absolutamente nenhuma evidência’ de radiotransmissor, mas que a ‘aparente evidência visual’ o levava a manter a apuração do caso.


Ontem também foi a vez de a ‘polêmica’, como descreveu a Globo, chegar ao Brasil, não apenas na emissora, mas até no rádio, caso da Jovem Pan.


A Globo chegou a sublinhar que ‘hoje há fones de ouvido quase invisíveis, sem fio, que funcionam com receptores assim’.


E não é só no Brasil. Pelo mundo, em publicações como a alemã ‘Der Spiegel’, corria ontem uma novo foto, já do segundo debate, feita pela agência Associated Press, em que o paletó de Bush parece esconder um fio.


Enquanto a Globo dizia que ‘resta ver se no próximo debate [amanhã] o volume vai aparecer de novo’, nos EUA os blogs e porta-vozes republicanos ridicularizavam o ‘rumor’.


O Instapundit.com anunciou, como piada, ter descoberto ‘toda a verdade’. Fala de um ‘cientista forense’, para quem ‘é a coluna’, o que mostra que Bush tem uma. Já de John Kerry não se acharam ‘imagens similares’, o que indica que ele ‘não tem’.




Dorrit Harazim


‘Por baixo dos panos’, copyright O Globo, 12/10/04


‘Sobrou para o alfaiate da Casa Branca Georges de Paris, responsável pelo guarda-roupa de todos os presidentes americanos desde Lyndon Johnson. Das duas uma: ou ele realmente confeccionou um paletó de quinta, usado por George W. Bush no primeiro debate com John Kerry, ou ele deverá continuar a sustentar essa aberração para salvar as costas do candidato republicano. Para quem conhece o perfeccionismo absurdo desse artesão diminuto e roliço, qualquer uma das hipóteses representa para ele uma desonra capital.


Georges de Paris freqüenta a Casa Branca há quatro décadas e por isso nunca se meteu em política. Segundo a repórter Larissa MacFarquhar, autora de um fino perfil publicado na revista ‘The New Yorker’, o alfaiate prefere os republicanos aos democratas apenas por serem mais elegantes — pelo menos os que passaram pelas suas tesouras. Evoca com saudade Ronald Reagan, que sabia vestir um terno como ninguém, e evita mencionar a era Jimmy Carter no quesito fashion.


Pois é no ateliê de Georges, situado a três quarteirões da Casa Branca, em Washington, e de onde saem ternos feitos a mão para Tony Blair, Kofi Annan e o vice Dick Cheney, que foi parar o nó da misteriosa excrescência flagrada entre as omoplatas de George W. Bush durante o primeiro debate. Segundo a teoria ciber-especulativa que há dias se alastra pela internet, a saliência nas costas do paletó escondia um radiotransmissor, permitindo ao presidente receber instruções teleguiadas de como responder a perguntas indigestas.


Mas dado que Georges de Paris está acostumado a confeccionar ternos impecáveis para clientes com ‘necessidades especiais’ — Larissa McFarquhar cita bolsos imperceptíveis para grandes somas de dinheiro, bolsos com zíper para acomodar diamantes, espaço sob medida para guardar uma arma — ninguém entende por que ele não seria capaz de fabricar uma peça que camuflasse uma saliência nas costas do tamanho de um radinho de pilha. A menos que ninguém lhe tivesse confiado que o presidente usaria algo sólido por baixo dos panos, responderão os amantes de uma boa trama.


A Casa Branca, que num primeiro tempo tachou as suspeitas baseadas numa foto da Associated Press de miragem da oposição, acabou passando o nó para Georges desatar. Coube, assim, ao alfaiate presidencial a indigesta tarefa de sugerir que o erro pode ter sido seu. Uma prega malfeita teria se formado na costura das costas no momento do debate em que o presidente cruzou os braços e se debruçou sobre o minipódio. ‘Nem mesmo a costura de um terno de supermercado forma uma saliência dessas’, comentou secamente o inglês William Hunt, dono de uma das clássicas alfaiatarias londrinas de Seville Row.


Não sendo radiotransmissor nem excrescência de alfaiate amador, o que seria então a estranha saliência? Algumas hipóteses levantadas pela imprensa: colete à prova de balas (a Casa Branca nega); um crachá de segurança; um colete ortopédico; um aparelho para rastreamento por satélite; um aparelho de monitoramento convencional; uma caixa de chiclete para depois do debate.


Amanhã, dia do último e decisivo debate entre Bush e Kerry, estarão em vigor as mesmas regras estabelecidas para o primeiro, entre elas a proibição de fotografar os candidatos de costas. A misteriosa saliência nas costas de Bush só pôde ser observada porque as emissoras de televisão e fotógrafos desrespeitaram as regras estabelecidas pelos dois partidos. É de se prever que repitam a desobediência.


Georges de Paris, de cujo guarda-roupa pessoal constam 40 ternos com colete, 80 camisas, 68 pares de sapato — mas nem uma única calça jeans ou par de tênis — também estará atento. Alheio às hipóteses sobre o que andou escondido embaixo do tecido Super 100 de George W. Bush, ele prefere dar um conselho básico a qualquer homem: terno marrom só com camisa azul, jamais branca. E paletó com quatro botões, só para incineração.’