“O povo sabe o que quer. Mas o povo também quer o que não sabe”, assinala Gilberto Gil em “Rep” (1998). A letra da música ajuda a explicar o enorme sucesso das novelas globais Avenida Brasil (com picos de 45 pontos e 70% do “share” neste mês) e Cheias de Charme (com picos de 38 pontos e 64% de share no mesmo período), mas de forma ambígua. Como em ambas as produções personagens mais populares desempenham papéis centrais, não são poucos a apontar a chamada “ascensão da classe C” como a única responsável pelo bom ibope – pela primeira vez o espírito suburbano estaria sendo representados na TV.
No entanto, especialistas e roteiristas discordam sobre a tese. A classe C, dizem, já ocupa amplo espaço na teledramaturgia há anos. O que tem mudado, e conquistado a audiência de forma geral, são novos métodos de trabalho, enfoque diferente – a classe C agora é representada em matizes mais amplos e próximos das complexidades da vida real – e estética em sintonia com o que é feito no exterior. A sofisticação das séries americanas, por exemplo, serve como referência.
“Havia um senso comum de que pobre não gosta de se ver na TV. Na maioria das telenovelas, as empregadas domésticas sequer tinham falas. Eram tratadas de uma maneira secundária e pejorativa ou eram amantes do patrão”, diz Nilson Xavier, autor do Almanaque da Telenovela Brasileira (Panda Books) sobre a trama de Cheias de Charme, no ar às 19 horas.
Protagonizada pelas Empreguetes, um grupo musical formado por domésticas, a novela traz como antagonista a ex-patroa Chayenne (Claudia Abreu), uma espécie de rainha do tecnobrega inspirada na cantora paraense Gaby Amarantos. Os patrões são deslocados ao posto de coadjuvantes na história. “Novelas como Mulheres Apaixonadas [2004], de Manoel Carlos, sequer tinham um núcleo popular”, diz.
Ponto de partida
Roteiristas globais dispõem de certos trunfos para representar perfis sociais, compor tipos, trejeitos, enriquecer a trama. Para Felipe Miguez e Izabel de Oliveira, autores de Cheias de Charme, o grande laboratório, atualmente, está nas ruas e nas situações cotidianas. “A gente ficou mais ligado no que acontecia nos bastidores da música pop. Temos uma grande pesquisadora, a Leusa Araújo, que nos abasteceu com um material muito rico. Não participamos de grupos de opinião. Falamos de uma realidade que está acontecendo agora. É só prestar atenção”, diz Izabel.
Em Avenida Brasil, de João Emanuel Carneiro, a personagem Rita (Débora Falabella) troca de identidade (vira Nina) para infiltrar-se como cozinheira na família de um ex-jogador de futebol do subúrbio do Rio. Ela planeja vingança contra Carminha (Adriana Esteves), a madrasta que a abandonara em um lixão, anos antes. Uma das marcas do autor está em subverter os papéis de mocinho e bandido com a construção de personagens ambíguos e dissimulados.
Cenas com “periguetes” e os jantares barulhentos à mesa do subúrbio contrastam com a ausência dos clichês da zona sul carioca. Elementos vindos do cinema, como o uso de planos fechados, câmeras em travelling, montagem detalhista e diálogos realistas também estão presentes. Trechos de composições de Bernard Herrmann – autor de trilhas de filmes como Psicose, de Alfred Hitchcock – têm sido utilizados.
No entanto, para Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia brasileira e latino-americana pela Universidade de São Paulo e membro da Academia de Artes e Ciências da Televisão de Nova York, as inovações de linguagem e a representação estética da classe C não são tão significativas quanto parecem.
“Avenida Brasil faz uma retomada das grandes premissas da clássica telenovela de Janete Clair, Ivani Ribeiro e Walter Negrão: personagens caracterizados com fortes tintas, trama convergente e valorização dos ganchos dos capítulos como dinâmica da narrativa, com imediata aprovação popular”, afirma.
Para ele, há um limite tênue entre o que as novelas oferecem e o que o público quer, mas retratar o povo de maneira popularesca e com tramas simplistas não é a saída. “Os Ossos do Barão [1973] e O Espigão [1974] foram novelas ao mesmo tempo sofisticadas e com tramas muito populares, conquistaram todas as classes”, diz.
Na série Tapas & Beijos, no ar na Rede Globo desde o ano passado, Fátima (Fernanda Torres) e Sueli (Andréa Beltrão), moradoras do Méier, subúrbio carioca, trabalham numa loja para noivas em Copacabana. A linguagem e o retrato de uma classe média-baixa que vai levando a vida apesar das dificuldades se aproxima do cotidiano de A Grande Família, remake da produção dos anos 1970, no ar desde 2001.
Segundo Alencar, a década de 1970 coincide não somente com a modernização e a industrialização das telenovelas, mas também como ponto de partida para explorar as classes sociais. “Dias Gomes também foi pioneiro ao ambientar a novela Bandeira 2 no bairro de Ramos, periferia na zona norte do Rio, em 1971”, afirma Alencar.
Filho do preconceito
Autor de A Grande Família, Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, foi também o fundador do CPC (Centro Popular de Cultura), que buscava a conscientização da população por meio de um projeto de cultura nacional, popular e democrática, na década de 1960.
“No seriado original havia um respeito com aquela classe média, sua situação e seus anseios. Na versão atual, o filho Junior [Osmar Prado], estudante de medicina preocupado com a situação do país, simplesmente desaparece. Mas muitas vezes, ao ser representado, sobretudo nas telenovelas, esse público acaba infantilizado e reduzido à função de consumidor”, diz Mônica Brincalepe Campo, doutora em história cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A busca da elite cultural pela representação do outro, das culturas populares, também é percebida nas produções de Guel Arraes, Jorge Furtado e Fernando Meirelles para a televisão”, afirma.
Desde os anos 1990, o núcleo de Guel Arraes tem sido o principal balão de ensaio de novas estéticas e representações das massas na TV. A maioria das produções é criada em parceria com o antropólogo Hermano Viana e a atriz Regina Casé.
“Quando começamos a fazer o Programa Legal, em 1991, alguns amigos chegaram a duvidar que seria exibido na Globo. Foi a primeira vez em que mostramos o funk carioca. Eu costumava brincar que a gente estava sempre na cozinha, naquele lugar da casa onde ninguém está, onde ninguém queria ir”, diz Regina.
Desde então, ela percorreu periferias do Brasil e da África com o Central da Periferia (2006), dialogando com artistas locais e trazendo à tona personagens como a própria Gaby Amarantos. Depois, participou de roteiros da série Cidade dos Homens (2002/2005), criada por Fernando Meirelles e Kátia Lund na esteira do filme Cidade de Deus (2002).
Inicialmente convidada para o papel de Monalisa (Heloisa Perissé) em Avenida Brasil, Regina está atualmente à frente do Esquenta, programa de auditório que apresenta uma fusão das noções de alta e baixa cultura, entrevistas inusitadas com artistas do funk, sertanejo e pagode. No palco do programa, em pausa até dezembro, Maria Bethânia chegou a cantar um pagode junto ao grupo Revelação.
“Nunca fiz peça infantil justamente porque não acredito em coisas restritas a um público só. Toda segmentação é gueto, e o gueto é um filho do preconceito. A gente quer tirar as pessoas do gueto, e não criar um gueto novo só de classe C”, afirma. Para ela, os veículos de comunicação ainda estão de costas para a verdadeira cultura das massas. “Gostando ou não, ignorar o que é realmente popular é uma doença social.”
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[Renata D’Elia, para o Valor Econômico]