Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

É com desa­grado e alguma frus­tra­ção que regresso ao tema dos erros de escrita que des­fi­gu­ram com lamen­tá­vel frequên­cia tex­tos publi­ca­dos neste jor­nal. Nunca vi grande uti­li­dade em fazer desta página um mos­truá­rio de dis­la­tes orto­grá­fi­cos e gra­ma­ti­cais e das falhas que estes põem a nu nos domí­nios da escrita, da revi­são e da edi­ção. Pouco espaço me sobra­ria, se o fizesse, para abor­dar outras ques­tões mais rele­van­tes, pró­prias do tra­ba­lho jor­na­lís­tico e da sua ética.

Não posso, no entanto, igno­rar as cons­tan­tes e jus­ti­fi­ca­das quei­xas de mui­tos lei­to­res, que pro­tes­tam con­tra os aten­ta­dos à lín­gua por­tu­guesa nes­tas pági­nas (em papel ou na Inter­net), reve­lando no tom mui­tas vezes irri­tado das men­sa­gens que me enviam um grau de exi­gên­cia sobre os requi­si­tos míni­mos de uma infor­ma­ção de qua­li­dade que infe­liz­mente parece não ser par­ti­lhado por todos os que escre­vem ou edi­tam o PÚBLICO.

Há mais de um ano, dedi­quei tex­tos suces­si­vos, neste espaço, a pro­cu­rar enten­der, em diá­logo com os lei­to­res e os res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais, as cau­sas deste pro­blema, e a deba­ter solu­ções para o enfren­tar. É que se trata, con­vém sublinhá-lo, de uma ques­tão per­fei­ta­mente reso­lú­vel. Se um jor­nal com­ple­ta­mente livre de gra­lhas é algo que nunca terá exis­tido, se a ocor­rên­cia de alguns erros infor­ma­ti­vos nas peças publi­ca­das num diá­rio é ine­vi­tá­vel em qual­quer parte do mundo (importa é que sejam pron­ta­mente cor­ri­gi­dos), o con­fronto com asnei­ras no uso da lín­gua pode e deve ser intei­ra­mente pou­pado aos lei­to­res. É uma ques­tão de pro­fis­si­o­na­lismo e de orga­ni­za­ção, e é a obri­ga­ção incon­tor­ná­vel de um jor­nal de qualidade.

A direc­ção do PÚBLICO afirmou-se então cons­ci­ente das fra­gi­li­da­des paten­tes neste domí­nio e anun­ciou estar a pre­pa­rar medi­das para as cor­ri­gir. Sem sucesso, a ava­liar pelo que nos vai mos­trando a lei­tura diá­ria do jor­nal. Na minha per­cep­ção — natu­ral­mente sub­jec­tiva , na ausên­cia de uma con­ta­bi­li­dade rigo­rosa, mas coin­ci­dente com a dos lei­to­res que a este res­peito me inter­pe­lam —, a frequên­cia de erros de escrita tem mesmo vindo a agravar-se.

Vejam-se, a título mera­mente ilus­tra­tivo, alguns exem­plos recen­tes. Uma peça publi­cada há dias (edi­ção de 17.07) com grande relevo grá­fico come­çava com a frase ‘Pedi­ram a Sophie Calle que descreve-se, fisi­ca­mente, a sua mãe (…)’ — isto a abrir uma repor­ta­gem con­si­de­rada sufi­ci­en­te­mente impor­tante para ser finan­ci­ada ao abrigo do pro­jecto mece­ná­tico Público Mais. Dois dias depois, no pri­meiro pará­grafo de uma notí­cia na edi­ção on line sobre a guerra na Síria, podia ler-se que é com o Ira­que que aquele país tem a fron­teira ‘de maior exten­ção’ — o que levou o lei­tor Ricardo Ribeiro a ques­ti­o­nar ‘com que auto­ri­dade’ oPÚBLICO divulga, ‘com uma frequên­cia con­si­de­rá­vel, arti­gos crí­ti­cos do sis­tema de ensino’. Registe-se que neste caso o erro foi cor­ri­gido (e a cor­rec­ção assi­na­lada) pouco após a publi­ca­ção de um comen­tá­rio crí­tico do mesmo leitor.

Tam­bém cor­ri­gido, mas dessa vez sem expli­ca­ções, foi um outro atro­pelo à lín­gua, logo denun­ci­ado por dois lei­to­res, na aber­tura de uma peça sobre os incên­dios no Algarve (edi­ção de 21.07). A frente do fogo, escreveu-se, teria ‘uma inten­si­dade infe­rior há regis­tada nos últi­mos dias’. Se, para o lei­tor John Pal­lis­ter, ‘é cho­cante que um erro des­tes num cabe­ça­lho tenha esca­pado’, outros mani­fes­ta­vam o seu espanto na pró­pria caixa de comen­tá­rios à notí­cia. ‘Como pode um jor­na­lista con­fun­dir ‘há’ com ‘à’?’. Ou: ‘a sério que um jor­na­lista faz erros destes?’.

No dia seguinte, na edi­ção impressa, percebia-se que um jor­na­lista pode fazer ainda pior. Foi o que suce­deu na notí­cia sobre o fale­ci­mento de Helena Cidade Moura, em que o redac­tor pôs na boca do rei­tor da Uni­ver­si­dade de Lis­boa, citado entre aspas, uma refe­rên­cia ao modo como a peda­goga agora desa­pa­re­cida ‘inter­viu’ na soci­e­dade. Tam­bém neste caso, o que pas­sara sem estre­me­ci­mento pelos fil­tros edi­to­ri­ais do PÚBLICO não pas­sou des­per­ce­bido a quem leu o jor­nal. Duas edi­ções mais tarde, sur­giu na sec­ção O PÚBLICO ERROU o desa­gravo devido ao rei­tor, ‘citado com um erro que, obvi­a­mente, não cometeu’.

Pior é quando nem as cha­ma­das de aten­ção dos lei­to­res levam a cor­ri­gir as inca­pa­ci­da­des de expres­são em por­tu­guês. Ainda ontem se man­ti­nham no Público Online, numa peça de finais de Maio inti­tu­lada ‘Filha de mili­o­ná­rios é presa por envol­vi­mento nos motins de Lon­dres de 2011″, vários erros de pal­ma­tó­ria, com des­ta­que para a asneira em dose dupla na frase ‘A juíza Patri­cia Lees subli­nhou as esco­lhas de Laura John­son que, nessa noite, quando um polí­cia ordenou-a para parar, car­re­gou com o pé no ace­le­ra­dor,ape­sar do agente estar à frente dela’. Tal como se man­ti­nham, apos­tos à notí­cia, inú­teis comen­tá­rios de pro­testo a que nin­guém na redac­ção terá dado impor­tân­cia. Ainda menos res­pei­tada foi a inter­ven­ção da lei­tora Maria José Gou­lão, que se queixa de não ter visto publi­cado o seu comen­tá­rio de crí­tica à medi­o­cri­dade desse texto.

Os exem­plos avul­sos que esco­lhi, entre os mui­tos para que me aler­tam os lei­to­res, não se expli­cam por dis­trac­ção ou momen­tâ­nea negli­gên­cia. Reve­lam igno­rân­cia, indi­ciam um domí­nio insu­fi­ci­ente dessa fer­ra­menta essen­cial a qual­quer jor­na­lista que é a escrita da sua pró­pria lín­gua. Por mui­tos méri­tos que tenha em outras ver­ten­tes da sua acti­vi­dade, um jor­na­lista que comete erros como estes é um pro­fis­si­o­nal incom­pleto no qua­dro de um jor­nal de refe­rên­cia, que sem­pre terá na qua­li­dade da escrita uma das con­di­ções para o ser ver­da­dei­ra­mente. O mínimo que deve esperar-se em rela­ção a redac­to­res que reve­lem essas vul­ne­ra­bi­li­da­des é que os seus tex­tos sejam objecto de aten­ção espe­cial nos pla­nos da revi­são e da edição.

Para tanto é neces­sá­rio, obvi­a­mente, que a impor­tân­cia de não dar à estampa erros cras­sos de por­tu­guês seja ade­qua­da­mente com­pre­en­dida nos vários níveis da hie­rar­quia edi­to­rial. E não o será por quem não tenha inte­ri­o­ri­zado que a indig­na­ção de um lei­tor do PÚBLICO perante as agres­sões à lín­gua é a mesma que ele pró­prio jus­ti­fi­ca­da­mente sen­tirá ao adqui­rir um qual­quer pro­duto defei­tu­oso que lhe é apre­sen­tado com o rótulo de ‘qualidade’.

É neces­sá­rio, tam­bém, que o exem­plo venha de cima, pondo fim aos sinais de negli­gên­cia que con­ti­nuam a sur­gir por parte de quem tem a última pala­vra na vali­da­ção de tex­tos e de pági­nas. É ina­cei­tá­vel a frequên­cia de falhas téc­ni­cas como, entre outras, a publi­ca­ção de peças a que fal­tam as últi­mas pala­vras ou linhas, de legen­das e ele­men­tos grá­fi­cos que ficam esque­ci­dos, de info­gra­fias que não batem certo com os tex­tos que acom­pa­nham, de excer­tos de prosa que são objecto de cor­rec­ção mas per­ma­ne­cem no texto cor­ri­gido, de títu­los em que erros de con­cor­dân­cia bem visí­veis sobre­vi­vem ao último olhar, como este da edi­ção do pas­sado dia 19: ‘Muni­cí­pio espa­nhola à espera do tribunal’.

Julgo, como disse atrás, que a frequên­cia de erros de escrita e de falhas de edi­ção tem vindo a acentuar-se. Mas há, neste campo, ao menos um sinal posi­tivo: tornaram-se mais comuns, e em geral mais rápi­das, as cor­rec­ções nos tex­tos do Público Online. Essa é uma melho­ria que supo­nho dever ser cre­di­tada, em boa parte, à inter­ven­ção atenta e gene­rosa de mui­tos lei­to­res, que recor­rem às cai­xas de comen­tá­rios para apon­tar erros que esca­pa­ram aos profissionais.

Valerá a pena acres­cen­tar que, tenham ou não ori­gem em cha­ma­das de aten­ção dos lei­to­res, essas cor­rec­ções devem ser sem­pre sina­li­za­das. O lei­tor José Orti­gão Oli­veira assi­na­lou um erro numa notí­cia do pas­sado dia 20 sobre o fale­ci­mento de José Her­mano Saraiva: escrevera-se que o antigo minis­tro da Edu­ca­ção fora ‘pro­cu­ra­dor às Cor­tes’, quando se pre­ten­de­ria infor­mar que inte­grara a Câmara Cor­po­ra­tiva do Estado Novo. A ano­ma­lia his­tó­rica terá tido ori­gem num des­pa­cho da agên­cia Lusa (foi aliás repro­du­zida em outros órgãos de comu­ni­ca­ção) e foi, no caso do PÚBLICO, rapi­da­mente detec­tada e cor­ri­gida. Porém, tendo o erro estado em linha, a cor­rec­ção deve­ria ter sido assi­na­lada, e não o foi. Quando esse pro­ce­di­mento não é seguido, tornam-se incom­pre­en­sí­veis as men­sa­gens de lei­to­res que per­ma­ne­cem nas cai­xas de comen­tá­rios, aler­tando para o erro no texto original.