É certo que o presente escrito chega um tanto tardiamente, em relação à época do lançamento do mais recente livro História. Ficção. Literatura, do teórico Luiz Costa Lima, no segundo semestre de 2006. Não caberia declinarem-se, aqui, as razões para o adiamento, até o registro destas pontuações. Todavia, considerado o aspecto de que uma obra de densidade não se subordina a ditames mercadológicos, menos ainda cronológicos, qualquer período haverá de ser propício para consignar algumas reflexões, desde que o resenhista saiba trilhar caminhos por outros anteriores ignorados (ou desprezados).
O fato de o livro existente, há meses, ser da autoria de reconhecido talento facilita a tentativa de percorrer caminhos ainda inexplorados, o que liberta este leitor, portanto, do fantasma da repetição. Feitos os esclarecimentos preliminares, vamos ao enfrentamento do desafio pretendido, após ter a notícia de duas valorosas inteligências que, há poucos dias, se despediram da vida: o mitólogo francês Jean-Pierre Vernant e o pensador brasileiro Bento Prado Junior.
De início, há de se firmar a seguinte constatação: quem é leitor profissional da escrita que Luiz Costa Lima, há quase meio século, obra a obra, constrói, bem sabe do encadeamento a sustentá-la. Como um edifício, há sólida ‘fundação’ a suportar os inúmeros ‘andares’ cujo ‘telhado’ ainda se encontra a descoberto, visto que a engenharia do pensamento permanece no firme propósito de tornar a ‘construção’ a mais ‘alta’ possível.
Detalhe e sutileza
Em razão de a presente resenha ser posterior a outras, também me exime de aqui tratar das partes constitutivas do livro, compreendendo que tal informação haverá sido o foco das primeiras matérias já publicadas. Isto posto, a questão que efetivamente importa para o momento provém de uma indagação: que novo passo o teórico promove com a publicação do livro em foco?
No propósito de arriscar um esboço de resposta à pergunta formulada, iniciaria afirmando que, no recente desafio, Costa Lima confere mais um passo, com a ousadia crítico-teórica habitual, oferecendo a seus leitores o objetivo de superar mais um impasse no desvendamento de um ponto que tem sido gerador de incômodo à tradição dos teóricos da literatura, sem, no entanto, um dos representantes dessa mesma tradição chamar a si a responsabilidade em propiciar mínima elucidação. Contrariamente, pois, procedeu Costa Lima. A que impasse propriamente me refiro? A rigor, não se trata de um; são vários: 1) a relação entre história e literatura; 2) a associação entre ficção e literatura; 3) a denominação genérica de ‘literatura’, abrigando formas expressionais tão díspares, seja na sua ‘gnose’, seja na sua ‘codificação’, quanto, por exemplo, a ‘poesia’ e ‘romance’; 4) a ‘consensual’ parceria entre ‘narrativa’ e ‘ficção’. Essas, salvo algum defeito de percepção (ou de omissão), traduzem a travessia percorrida pelo teórico em História. Ficção. Literatura.
Quem, no tocante à escrita de Luiz Costa Lima, com ela mantém certa familiaridade, sabe quanto o teórico aprecia o detalhe e a sutileza. Deste modo, o título da obra já se faz merecedor de comentário. O título insinua, pela inclusão do ponto a isolar os três termos-conceito, a suposta autonomia que o autor pretenderia demonstrar. Sem temer a redundância, Costa Lima, no título, estaria sugerindo ao leitor que ‘história’, ‘ficção’ e ‘literatura’ caracterizariam três instâncias regidas por princípios próprios e destinações específicas, o que, entretanto, a leitura do livro finda por trair. Na verdade, entre os três campos, promove-se disfarçadamente tênue deslizamento, i.e., há, nas três construções discursivas, certo grau de ‘contaminação’. Nesse ponto, reaparece a preocupação que atravessa a obra de Costa Lima: o sentido metamórfico e tensional entre mímesis e verdade.
A discursividade subversiva da arte
O esforço da razão ocidental em equacionar a convivência pacífica entre o que seria o discurso da ‘história’, em oposição ao discurso da ‘literatura’, é diluído pela ‘fricção’ existente nos ‘territórios discursivos’ cuja substância deriva da própria imprecisa definição do que caracterize ‘ficção’. O teórico, portanto, desenha, com engenhosa reflexão, as sinuosidades com as quais se engendra a enganosa materialidade de cada uma delas. Num certo sentido, uma passagem do livro sinaliza, para o leitor, o diferente itinerário trilhado pelo autor:
Em vez, contudo, de reiterar o trajeto que tentamos cumprir desde Mímesis e modernidade (1980), passando por Vida e mímesis (1995) e Mímesis: desafio ao pensamento (2000), valho-me da relação já aqui estabelecida: em vez de imitatio, a mímesis supõe (…) a seleção de aspectos da realidade, que desorganiza a representação do mundo, seja porque não é sua repetição, seja porque não obedece a seus campos de referência (p.291).
O leitor que se habitua a lançar sobre a realidade um olhar mais atento haverá de compreender que angulações perceptivo-cognitivas o autor sinaliza. A modernidade erigiu, paulatinamente, tamanha difusão investigativa sobre as mais distintas manifestações da realidade que o sentido de ‘verdade’ ruiu. Não se trata mais de mecanismos operatórios de dissimulação, ou de controle. Não, a crise está posta numa dimensão endógena que atinge diretamente a essência constitutiva da linguagem, seja em sua feição científica, seja em sua configuração artística. Promoveu-se tenso embaralhamento e este reverbera tanto para o discurso organizado e institucional da ‘história’ quanto para a discursividade subversiva da arte.
O enfrentamento das aporias
A preocupação teórica de Costa Lima nessa mais recente investida, afora as fontes mencionadas pelo próprio autor na citação extraída, retoma reflexões, para novas inflexões, formuladas na trilogia escrita ao longo dos anos 80, ou seja, O controle do imaginário (Brasiliense, 1984), Sociedade e discurso ficcional (Guanabara, 1986) e O fingidor e o censor (Forense Universitária, 1988). Assim, a leitura das três partes que integram História. Ficção. Literatura, por vezes, deixa a falsa sensação de ouvirem-se ecos provindos daqueles tempos. Na verdade, porém, o escopo do autor vai exatamente na direção contrária: trata-se de uma revisitação para recomposição de problemas que naquelas escritas ficara.
Na trilogia aqui referida, faz-se já reconhecível um certo ‘estado de desequilíbrio’ no regime dos ‘três discursos’. Contudo, àquela altura, parecia haver um foco prioritário às intenções do autor: a atuação das estruturas de poder, em distintos estágios da história ocidental, com suas respectivas conseqüências no âmbito da escrita literária. Como, afinal, se comportava a sobrevivência da ficção ante os mecanismos de absorção (ou de controle) do ficcional era a questão.
De igual modo, Costa Lima procurara demonstrar os atalhos e desvios que o vigor imaginativo havia empreendido para assegurar sua própria permanência, seja na Idade Média, seja no auge do projeto iluminista, ou mesmo, nas dicotomias históricas e políticas nas quais esteve sitiado, por longos séculos, o contexto latino-americano. Vale dizer, portanto, que as conjeturas teóricas e analíticas constantes na trilogia destinavam à História ainda um peso significativo. É esta hierarquização que, na obra recente, fica diluída. É nessa mutação do olhar que o autor promove um salto no pensamento, tornando, por isso, enganosa a sensação quanto aos possíveis ‘ecos do passado’.
Costa Lima, em História. Ficção. Literatura, agrupa os três campos, considerando-os como ‘construções discursivas’. Ora, afirmar isto exige explicitar sua implicação. Em que, pois, a alteração perceptiva redireciona a reflexão? Não mais reconhecendo o princípio da hierarquização, desfaz-se também a rede de contaminação oriunda das ‘estruturas de poder’. De posse de um novo ‘roteiro teórico’, o autor desnuda a ‘capa de proteção’ com a qual supostamente se resguardavam as territorialidades da ‘história’, da ‘ficção’ e da ‘literatura’, para trazer à tona a ‘porosidade das aporias’, aspecto absolutamente ausente em obras anteriores.
A beleza maior da obra em pauta talvez resida exatamente no movimento de um pensar que monta e desmonta argumentações, indo ora à Antigüidade, ora à modernidade, para o reconhecimento de um processo cultural cuja rede se foi compondo em meio a uma tensão indissolúvel entre a força e a fragilidade dos três discursos, até chegar-se ao estágio atual em que, a despeito da tipificação própria de cada um deles, detectar-se quanto neles há de lacunar e também de mescla.
Sob esse aspecto é que, por exemplo, o autor retorna à narrativa Os sertões, obra sobre a qual Lima dedicou estudo específico, em Terra ignota: a construção de Os sertões (Civilização Brasileira, 1997). Neste, aliás, se aloca o embrião do que, quase uma década após, adquire forma plena. Igual observação é validada para o questionamento proposto pelo autor ao cotejar a poesia épica de Homero com a escrita historiográfica de Heródoto.
Breve depoimento
À beira de terminar a presente resenha, dada a necessidade em esclarecer uma dúvida, tratei de consultar o próprio autor. Daí decorreu uma espécie de inesperada ‘conversa-entrevista’ na qual Costa Lima teceu considerações a respeito do próprio livro e, em razão de julgá-las expressivas ao corpo desta resenha, achei interessante reproduzi-las mescladas a comentários próprios:
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A busca da verdade histórica se distingue daquela investigada pela ciência e pela filosofia [enquanto a história se ocupa do ‘acontecimento’, a ciência trata do ‘fenômeno’, restando, por fim à filosofia, a tentativa de fixar sentido aos rumos da existência. São, pois, campos nos quais o conceito de ‘verdade’ tem sua transmigração vetada];**
Nega-se à verdade o estatuto de imanente às coisas [a verdade, outrossim, é concebida como ‘substância’; portanto, a exemplo do que o autor sinaliza (sub-stans), a ‘verdade’ se vê remetida a um ‘lugar’ situado abaixo da superfície na qual as ‘coisas’ se manifestam. Daí decorre a aporia hermenêutica (interpretativa) a perpetuar o desafio na apreensão da ‘verdade’;**
Outro ponto ao qual destinei atenção diz respeito à relação entre a raiz da arte (verbal e pictórica) e a religião, bem como da diferença que disto decorre, i. e., ao passo que a arte verbal e pictórica tende a desnudar sua própria ficcionalidade, como ilustra o ‘teatro dentro do teatro’, em Shakespeare, a religião tende a se converter em dogmas [o ponto interessante da comparação formulada parece ser o distanciamento progressivo da arte, em relação ao caminho trilhado pela religião, ao longo do tempo. Pelo exposto, Costa Lima sugere que, enquanto a arte se esforça em trazer à luz a ‘verdade’ – tendo na metalinguagem um de seus recursos – , a religião, ao contrário, asfixia a possibilidade da exegese, em favor do primado da crença].Enfim, até que ponto o ‘discurso literário’ será tão menos ‘histórico’? Por outra, qual o grau de contaminação absorvido pelo ‘discurso literário’, fruto da produção do ‘discurso histórico’? Ou ainda, a ficção estará mais próxima da história, assim como a poesia se torna parceira da ciência? Tais perguntas vão sendo, página a página, envoltas em sucessivas ‘explicações’ das quais derivam outras tantas pontuações. O leitor, tocado por essa ânsia de elucidação, encontrará ampla oferta de rentáveis revelações, em mais uma alentada contribuição teórica de Luiz Costa Lima.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ