Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Antonio Brasil

‘‘Nunca imaginei que um dia veríamos a imprensa americana tão dividida, tão politizada e ao mesmo tempo tão partidária, distante dos princípios mais básicos de distanciamento, objetividade e equilíbrio como temos observado durante a campanha presidencial deste ano’.

Esta foi a conclusão unânime dos participantes de um debate sobre a cobertura das eleições presidencias pela mídia americana transmitida pela National Public Radio, a rede de rádios públicas dos EUA. Entre os observadores da mídia americana, esse sentimento parece ser generalizado. A avaliação pode ser precisa e verdadeira, mas não deixa de ser igualmente perturbadora.

A imprensa americana tem uma história muito atípica em relação a histórias congêneres na Europa ou mesmo na América Latina. A luta pela independência do país se identifica com a luta da imprensa pela sua independência em relação aos governos, aos partidos, mas parece ter sucumbido ao poder dos interesses econômicos das grandes corporações. A história da imprensa americana se identifica e se confunde com a própria história do país.

Este ano, aqui na Rutgers, a Universidade de Nova Jersey, estou lecionando um curso específico sobre o tema: Meios de Comunicação de Massa e o Governo Americano. Nao deixa de ser uma certa ‘ironia’ que um professor brasileiro seja convidado para discutir a própria história da imprensa americana em tempos de crises de valores e rupturas de paradigmas.

Watergate? Nunca mais!

Há muitos anos me dedico a pesquisar a história da imprensa americana. Trata-se de um tema tão vasto, rico em mudanças e pleno de peculiaridades históricas. Uma história que se confunde com a própria história do jornalismo.

Em suas diversas e distintas fases, o jornalismo americano enfrentou todos os tipos de ‘pressões’. As primeiras, obviamente, viriam da metrópole imperial. As colônias britânicas na América se orgulhavam muito do seu jornalismo pioneiro, combativo e independente. É um dos principais fatores para a mobilização da população civil contra a Inglatera e a favor de uma revolução republicana nos EUA. A segunda fase desse desenvolvimento é menos gloriosa e independente. A imprensa americana se torna abertamente ‘partidária’. Ainda militante e distante das ‘rédeas’ e subsídios do governo. Mas uma imprensa engajada e identificada com as ideologias dos partidos políticos. Uma imprensa fragmentada e diversa mas patrocinada ou sustentada pelo recursos financeiros dos partidos políticos.

A publicidade se tornaria a grande alternativa para a ‘independência’ dos jornais americanos em relação ao partidos políticos e o governo. Na segunda metade do seculo XIX, surge uma nova forma de jornalismo popular nos EUA e no mundo. Um jornalismo mais moderno, de fácil leitura e compreensão acessível aos imigrantes de diversos países. A imprensa americana recorre aos anúncios publicitários como uma forma de tábua de salvação contra as imposições de uma política partidária. A busca dos fatos e da verdade estaria distante da ideologia imposta pelos interesses partidários. Surge um jornalismo mais independente, em contante luta pelas causas populares com recursos suficientes para enfrentar os poderosos. O momento máximo desta fase ‘independente’ do jornalismo americano seria representado pelas denúncias do caso Watergate pelos jornalistas do Washington Post. O poder do jornalismo americano enfrentava um presidente e o resultado dessa luta se tornaria parte da história dos EUA e do jornalismo.

Mas pelo jeito, os presidentes americanos aprenderam a lição. Assim como nunca mais houve uma cobertura de guerra tão livre e eficiente como a cobertura jornalística da guerra Vietnã, tudo indica que a liberdade de expressão, a independência e a objetividade dos jornalistas americanos estão sendo colocadas à prova durante essa campanha eleitoral.

A cobertura da mídia das eleições presidenciais de 2004 entra para a história como a cobertura mais engajada que se tem memória. A imprensa tradicional, a grande mídia parece copiar os modelos impostos pelo jornalismo alternativo blogueiro. Na Internet, a fragmentação da mídia se tornou um terreno fértil para milhares de sites que praticam um jornalismo engajado, partidário, onde vale quase tudo para convencer o próprio público, um público muito pequeno e uniforme, totalmente alheio aos princípios básicos de um jornalismo considerado ‘antigo’ e superado. Os ‘fatos’ passam a ser ajustados às realidades e interesses dos partidos e seus candidatos. Os fins justificam os meios e o jornalismo, ou o que restou dele, se torna uma plataforma para militância política.

A própria noção de objetividade – um princípio ilusório, mas extremamente poderoso para guiar o trabalho dos jornalistas – nunca foi tão discutida e relegada à condição de ‘mito ultrapassado’.

Jornalista vira ‘ator-mediador’

Os últimos debates com os candidatos presidenciais transmitidos pela TV americana ilustram de forma contundente a atual falta de participação do jornalismo independente na cobertura de ‘pseudo’ eventos. Os ‘jornalistas’ deixaram de ser ‘jornalistas’ – não podem fazer perguntas relevantes ou embaraçosas – e se tornaram meros ‘mediadores’ desses eventos. Eles se tornaram meros personagens ou atores de um ‘reality show’ com script pré-estabelecido que não admite ‘surpresas’. Para os novos e verdadeiros donos da campanha eleitoral, os todos poderosos marqueteiros, os jornalistas costumam ter o péssimo hábito de querer saber a verdade em um show de ‘ficção’ na TV. Os papéis já foram escolhidos, o texto decorado pelos candidatos e qualquer que seja a pergunta, as respostas serão sempre as mesmas. O pobre do jornalista-mediador se torna ‘figura de proa’ ou objeto de decoração que assiste impotente a discursos sem a menor possilidade de conduzir um debate em busca da verdade. A verdade se torna cada vez mais distante dos políticos na TV e em campanha eleitoral. Promessas substituem a verdade dos fatos. E para divulgar promessas, políticos não precisam de ‘jornalistas’. Precisam de outros atores, os jornalistas-mediadores. Eles emprestam o que ainda resta de credibilidade da profissão a mais um programa de auditório com grande audiência cativa.

A cobertura das eleições presidencias pela mídia americana em 2004 em meio a enormes pressões de um país dividido quebra os paradigmas sagrados do jornalismo americano. O futuro de uma cobertura que pelo menos ‘tenta’ ser mais isenta e equilibrada parece ter os seus dias contados. A mídia e o jornalismo cresceram demais no seu poder de influenciar e manipular os eleitores. E ‘política’ é considerada séria demais para ser deixada na mão de jornalistas competentes, porém, ‘independentes’.’



Diego Assis

‘‘Outfoxed’ acusa canal de apoiar Bush’, copyright Folha de S. Paulo, 15/10/2004

‘O mundo não é o bastante para os produtores de ‘Outfoxed’, documentário na ‘linha Michael Moore’, que tenta enquadrar o canal de TV a cabo Fox News como um instrumento de propaganda do Partido Republicano.

Lançado diretamente em DVD em julho deste ano nos EUA, ‘Outfoxed’ alcançou rapidamente o topo dos mais vendidos na loja virtual Amazon, tendo vendido até agora 140 mil cópias.

Impulsionado pelo boca a boca, o filme foi comprado por uma distribuidora independente americana e, um mês após o lançamento, fez sua estréia oficial nas salas de cinema dos Estados Unidos, arrecadando mais US$ 420 mil em bilheterias.

Nada mal para uma produção relativamente tosca, orçada em US$ 300 mil, divididos entre os grupos liberais MoveOn.org, Center for the American Progress e o diretor Robert Greenwald.

Pegue e faça

A última manobra de ‘Outfoxed’, que conseguiu seu espaço em veículos importantes da imprensa americana (‘New York Times’, ‘Washington Post’, ‘Village Voice’ etc.), foi disponibilizar todo o material bruto do documentário sob a licença de uso livre Creative Commons -espécie de programa de software livre para produtos culturais.

A intenção é que outros cineastas em qualquer parte do mundo possam reutilizar as entrevistas que a equipe de ‘Outfoxed’ fez com ex-funcionários da Fox, denunciando, entre outras coisas, o favorecimento do partido do presidente George W. Bush nos programas jornalísticos do canal.

Trechos desses mesmos programas, entre eles o talk-show do ultraconservador Bill O’Reilly e do bushista declarado Sean Hannity, usados em ‘Outfoxed’ sem a autorização da Fox não puderam ser liberados. é que o diretor, que contratou uma equipe de pessoas para monitorar o canal durante quatro meses, reproduz os trechos sob proteção de uma brecha na lei americana que permite o uso de material não-autorizado para fins de crítica jornalística.

A lei brasileira reserva liberdade semelhante com a ressalva de que os trechos não sejam excessivamente longos. No caso de ‘Outfoxed’, os trechos tirados da programação da Fox representam quase a metade da produção.

‘Eu não sou advogado, mas sob a alegação de ‘fair use’, utilizamos aquilo que era necessário para contar a história. E certamente não poderíamos contar a história da Fox News sem usar os trechos’, declarou por e-mail à Folha o diretor Robert Greenwald.

‘Ninguém ainda reeditou [o filme]. Mas duas músicas foram lançadas há poucas semanas inspiradas por ‘Outfoxed’, contou Jim Gilliam, co-produtor do documentário. As músicas, ambas batizadas de ‘Shut Up!’ (Cale a Boca!), em ‘homenagem’ ao bordão de O’Reilly, foram gravadas pelo músico independente Joel Gelpe e pelo grupo de punk rock The Politnix. Nenhuma das duas, no entanto, foi criada ‘a partir’ de trechos do documentário.

‘Essas coisas são boas para as vendas. Novos trabalhos derivativos podem levar o filme para públicos diferentes’, afirma Gilliam.

Acusado por parte da crítica de usar as mesmas armas da Fox -a manipulação dos dados a favor de um ponto de vista unilateral-, o co-produtor sustenta que ‘não há jornalismo imparcial’. ‘Escolher um assunto já é uma tendência. Mas isso não significa que o jornalismo tenha de ser injusto. Justiça não é ouvir porta-vozes dos republicanos e democratas. Inclui pesquisar, colocar os fatos lado a lado, ir a fundo em uma história.’

Em uma de suas passagens, ‘Outfoxed’ afirma que a Fox distribui memorandos diários orientando o ‘tom’ da cobertura de denúncias envolvendo o governo Bush. ‘Não vamos transformar isso em um novo Watergate’, diz um desses documentos, a respeito do relatório oficial sobre os atentados de 11 de setembro.

Um comunicado oficial da rede, controlada pelo milionário Rupert Murdoch, desafia ‘as organizações que acreditarem que essa história é grande e que a Fox News é um problema’ a ‘liberarem 100% de suas diretrizes editoriais e memorandos internos’, que a Fox fará o mesmo.

‘Deixemos o público decidir quem é justo’, acrescenta o texto, abertamente dirigido ao ‘The New York Times’, ‘The Los Angeles Times’ e ‘The Washington Post’, além dos canais de TV aberta e paga.

Outra reclamação da Fox aponta o uso incorreto dos créditos de supostos ex-funcionários da empresa que deram depoimentos para a equipe de ‘Outfoxed’. Em pelo menos dois deles (Alexander Kippen e Frank O’Donnel), a Fox tem razão. Apesar de identificados como ex-funcionários da companhia, eles trabalharam para suas afiliadas, que, segundo ela, não respondem ao mesmo controle editorial exercido na Fox.

‘Eles não ameaçaram nos processar. Devem ter aprendido a lição quando fizeram de Al Franken [comediante americano e autor do livro ‘Mentiras’] um best-seller’, afirma Gilliam.

Como bem ensinou o mestre do marketing Michael Moore, é a tática do ‘fale mal, mas fale de mim’. ‘Esses filmes podem ser bastante eficazes. Eles se infiltram na cultura, afetam formadores de opinião e então são filtrados pelo resto da população’, concluiu Greenwald, que é também autor de ‘Uncovered: The War on Iraq’, documentário que acusa o governo dos EUA de manipular informações da guerra no Iraque.

Resta saber se é a Fox ou se é ‘Outfoxed’ quem vai colher mais louros dessa briga. Segundo o jornal ‘USA Today’, a audiência do canal nos EUA, que chega a alcançar 1,4 milhão de espectadores no horário nobre, foi 13% maior em julho do que no mesmo período do ano passado.’



Nelson de Sá

‘Ao vivo, blogueiros bocejam’, copyright Folha de S. Paulo, 14/10/2004

‘Com menos de uma hora de debate, a blogueira nova-iorquina Ane Marie Cox, do Wonkette, não se conteve:

– Eu estou tão cansada.

A melhor tradução seria ‘eu estou de saco cheio’ (‘I’m so bored’), o que ela repetiu até o final.

Dos principais blogs americanos, o dela, que é mais liberal, o relativamente centrista Instapundit, de Glenn Reynolds, e o The Corner, mais conservador, concordaram que foi o pior dos três debates. Reynolds:

– Vai ser difícil achar um placar para este terceiro debate, porque ambos estão com performances tão piores.

E John Derbyshire, quase no final, no The Corner:

– É um debate a mais do que devia. Eu já tive o bastante desses debates. Olha, estou fazendo o meu melhor aqui, mas meus olhos estão embaçando.

Se a conservadora Kate O’Beirne descrevia o democrata como ‘sem atrativos’, alguém a quem os americanos ‘não vão se sentir bem tendo que ver por quatro anos’, o ultraliberal Markos Moulitsas, do blog recordista de acessos Daily Kos, dizia do republicano:

– Ok, então medicaram Bush para evitar que o Furioso Bush assustasse mais eleitoras, mas no lugar dele estamos com o menino que faz piadas ruins.

Já Kerry, para o partidário Moulitsas, era o ‘mestre zen’ -o que em televisão não é necessariamente um elogio.

Só os blogueiros mais fanáticos, como os do blogsforbush.com, conseguiam se manter no ataque.

Eles e a editora Katharine Q. Seelye, escalada pelo ‘New York Times’ para fazer a cobertura on line -copiada dos blogs- no site do jornal.

Mas até ela, em meio às notas críticas de parte a parte, observava que o democrata estava dando ‘detalhes, detalhes, detalhes’. E que as piadas do republicano eram sem-graça.

Pelo que se viu, o que manteve os blogueiros acordados, à direita e à esquerda, foram os temas mais candentes, como homossexualismo, e uma ou outra citação pop, por exemplo, ao personagem de TV Tony Soprano.

Wonkette, no final, deu a vitória ao mediador:

– Minha aposta: Bob Schieffer venceu. A audiência perdeu.’