Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Heliete Vaitsman

‘Morte no Paraíso – A tragédia de Stefan Zweig, de Alberto Dines. Editora Rocco, 593 páginas. R$ 68,50

Entre 1936, data de sua primeira visita ao país, e 1942, quando ele e a mulher/secretária Lotte se suicidaram na casa alugada em Petrópolis, Stefan Zweig, o mais popular autor de língua alemã entre as duas guerras mundiais e o mais traduzido do mundo na década de 1940, experimentou o melhor e o pior da vida brasileira – de um lado hospitalidade, tapinhas nas costas, tolerância; do outro, ambiguidade, racismo dissimulado, contradição entre atos e palavras. Ao biografá-lo em 1981, o jornalista e escritor Alberto Dines produziu um livro fundamental para compreender o contexto social e político do Brasil na era Vargas; o tema ensejou novas pesquisas, novos mergulhos, e merece agora uma terceira edição ampliada e com rica iconografia.

A trajetória do escritor remete a uma época – o entre-guerras – decisiva para a cultura ocidental. Humanista e pacifista, suas angústias voltam a se tornar partilháveis neste início de século XXI: ‘Os pavores de Stefan Zweig soam contemporâneos: fanatismo, sectarismo, xenofobia, arrogância, brutalidade, preconceito. As novas simplificações, aparentemente racionais, alimentam a irracionalidade’, afirma Dines, que trata o biografado – ele próprio um dos maiores biógrafos do seu tempo – sem complacência mas com profunda compreensão.

De temperamento conciliador, autor acabou isolado no Brasil

Filho dileto da burguesia judaica de uma Viena cosmopolita e culta, o sofisticado Zweig, colecionador de manuscritos e autógrafos, foi vítima de vários mal-entendidos na pátria dos eufemismos. Recepcionado nos círculos oficiais, bajulado pelos literatos de plantão, extasiado com a paisagem da Mata Atlântica e com o barroco mineiro, não conseguiu interlocutores à altura. Ao contrário de outros intelectuais europeus fugitivos do nazismo, membros ou simpatizantes de partidos de esquerda, adotara um ideário inteiramente pacifista, sem concessões a qualquer lado. Com seu temperamento conciliador, de ‘caçador de almas’, no dizer de Romain Rolland, acabou isolado no Brasil, onde sua cultura enciclopédica não impressionou a intelligentsia nativa – ao contrário, ao escrever ‘Brasil, país do futuro’ tornou-se o bode expiatório perfeito para os que não podiam criticar publicamente o regime.

O livro vendeu mais de cem mil exemplares em português e o título tornou-se expressão popular (depois tornar-se-ia estigma). Zweig o escreveu, mostra Dines, porque em troca recebeu o precioso visto de residência (obtivera o passaporte inglês, porém queria abandonar a Europa), mas também porque de fato se encantou com o país. Rico por herança familiar e pelos direitos autorais, jamais escreveria por dinheiro, embora isso lhe tenha sido imputado reiteradas vezes, inclusive por meio de piadinhas anti-semitas nos jornais.

‘Brasil, país do futuro’ não era um elogio ao governo, mas à aparente harmonia étnica e ao vasto território que poderia servir de potencial refúgio para milhões de judeus. Nas ruas do Rio, não marchavam camisas negras. No bonde, senhores de terno sentavam-se ao lado de lavadeiras negras. Contudo, afirma Dines na contramão do revisionismo da História recente, a ditadura Vargas era brutal, patrocinadora de milhares de mortes, desaparecimentos, torturas, massacre das liberdades civis e anti-semitismo. Zweig não tinha como saber disso. Mas na mesma semana de agosto de 1936 em que recebeu o escritor no Catete, Vargas expulsou Olga Benário e Machla Berger – judias, alemãs e comunistas, depois mortas em campos de concentração.

Adversário dos nacionalismos, inclusive do sionismo (embora fosse amigo de Theodor Herzl, que publicou seus primeiros artigos no ‘Neue Freie Presse’ de Viena), Zweig era filiado ao quase desconhecido movimento territorialista, que pretendia encontrar uma pátria para os judeus em qualquer país. Dines relata em primeira mão como Zweig passou três semanas em Lisboa, em 1938, pouco antes da anexação da Áustria pela Alemanha, fazendo gestões frustradas para ser recebido por Salazar, a quem queria propor a abertura de Angola aos refugiados do nazismo.

Com o avanço da guerra na Europa, Zweig, que se mudara para Petrópolis, afundou em melancolia. A mulher tinha asma grave, a biblioteca pública era rala, os visitantes eram raros. Grande missivista, lamentava as poucas visitas do correio (a correspondência de Zweig, abrigada na Biblioteca Reed, da Universidade Estadual de Nova York em Fredonia, tem mais de seis mil cartas que ele recebeu de nomes como Martin Buber, Richard Strauss, Rilke, Pirandello e Joseph Roth, além da correspondência com a primeira mulher, Friderike).

‘Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes’

Quando a guerra pareceu se aproximar das costas brasileiras, Zweig estava no limite. ‘Saúdo a todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes’, escreveu. O suicídio, por envenenamento, causou comoção no mundo e foi usado na propaganda anti-nazista. As autoridades brasileiras determinaram que o enterrassem com pompas, em Petrópolis. A solicitação da comunidade judaica de sepultar o casal em seu cemitério no Rio, de acordo com os preceitos da religião, produziu ameaças oficiais de represália, só agora inteiramente relatadas. Ironia do destino, o prototípico intelectual austríaco jaz, mal visitado, num túmulo perto dos Habsburgos da Família Imperial brasileira… HELIETE VAITSMAN é jornalista’



O SAPO E O PRÍNCIPE
Villas Bôas-Corrêa

‘As vidas paralelas de Lula e FH’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 15/10/2004

‘Surfando com a competência de veterano na onda da primeira eleição, na modéstia municipal da escolha de prefeitos e vereadores, o jornalista e escritor Paulo Markun foi ao fundo nas pesquisas e acaba de lançar, com 357 páginas de texto de leitura fascinante, ‘O Sapo e o Príncipe’, Editora Objetiva.

O título, tratando de tema político, anuncia o paralelismo na trajetória das biografias dos dois presidentes, nossos últimos em nove anos e 10 meses, com a transferência do poder de um canto para o oposto, na simplificação com fumaça ideológica do confronto entre o centro e a esquerda. Claro, o Príncipe é o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que emendou dois mandatos, e o Sapo que vira príncipe, inspirado em velha história infantil alemã, o seu sucessor, presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Mas, ao final das três centenas de páginas e quebrados, além dos anexos, descobre-se que o Sapo Lula engole o Príncipe FHC. Se o tratamento não privilegia nenhum dos dois personagens dominantes na trama que envolve muita gente, o implacável descorante do tempo empalidece o interesse pela vitoriosa carreira, mais do que conhecida do ex, e concentra a atenção no feitiço das muitas informações inéditas, com a interpretação e a análise pertinente, que ilumina a personalidade intrigante do torneiro mecânico que virou pelo avesso a crônica republicana, que entremeia ditaduras com períodos de governos paisanos conservadores.

O retirante nordestino que, aos sete anos, viajando em pau-de-arara, com Dona Lindu, a mãe heróica, abandonada pelo marido com sete filhos menores, para passar por grandes dificuldades em São Paulo, orgulha-se quando recebe o primeiro salário como aprendiz em pequena fábrica de parafuso e sente-se como ‘o dono da cocada preta’.

Primeiro passo na vertiginosa ascensão do maior líder sindical do Brasil e dos maiores do mundo. E se o encanto pela luta sindical custou a fisgá-lo, a disparada foi fulminante.

No golpe militar de 1° de abril de 1964, como torneiro mecânico de uma metalúrgica, Lula depõe: ‘nesse tempo eu não queria saber de política’.

Só em 1968, à insistência do seu irmão Frei Chico, comunista e militante no movimento sindical, assiste a uma reunião no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Ainda relutante, acabou assinando a proposta e entrando para sócio do sindicato. Logo na primeira eleição seria eleito presidente.

O foguete parte em velocidade alucinante. O autor explica a mágica: ‘Lula não tinha base teórica nem experiência anterior, mas no dia-a-dia do sindicato revelava talento incomum para o jogo político’. Na campanha para a reposição salarial, a mídia descobre Lula, que ganha a capa da revista ‘Veja’ em setembro de 1977.

Desligado do jogo político partidário, não se interessou pela campanha da anistia, dedicado em tempo integral a debater temas da pauta das reivindicações trabalhistas.

Firma a liderança, que se amplia em âmbito nacional, comandando greves que paralisam as montadoras do ABC, em 1980, e enfrentam a repressão policial, com Lula discursando para milhares de metalúrgicos. Preso em 19 de abril, foi liberado para visitar sua mãe, gravemente doente, e para o enterro de Dona Lindu, no dia 12 de maio.

Das greves vitoriosas ou de resultado frustrante, parte para a fundação do Partido dos Trabalhadores, ‘um partido sem patrões’. Da base petista lança-se à carreira política. Deputado federal mais votado em todo o país, com 651.763 votos, teve atuação apagada na Câmara e na Constituinte, sentindo-se um estranho no ninho. Queixou-se, em declarações amargas, da tediosa rotina parlamentar, afirmando que não queria jamais voltar a ser deputado.

A dupla face do governo do presidente Lula começa a esboçar-se na afirmação do seu temperamento, de suas contradições, qualidades e deficiências. E pode ser rastreada nos muitos dados conferidos por Paulo Markun. Lula não cultiva o prazer da leitura. Na sua estante de líder sindical, meia dúzia de volumes: o ‘Arquipélago Gulag’, de Alexander Soljenitsyn; o ‘Diário da CIA’, de Philip Agee; ‘Os Dez Dias que Abalaram, o Mundo’, de John Reed: uma biografia de Gandhi e alguns exemplares da coleção ‘Obras-Primas da Literatura’.

Lula leu pouco, muito pouco, pouquíssimo. Nos 12 anos em que seu emprego remunerado foi o de candidato a Presidente da República, não achou vagares para a leitura ou para cursos de aperfeiçoamento cultural.

Talvez não sinta falta. Pois com aguçada intuição, privilegiada inteligência e acuidade política, chegou onde está.

E dorme e acorda sonhando com a reeleição.’



LÍNGUA PORTUGUESA
Deonísio da Silva

‘Maravilhas do Brasil’, copyright Jornal do Brasil, 18/10/2004

‘Estamos acostumados a estudar substantivos, adjetivos, verbos, pronomes etc. Mas para entender ou escrever um texto precisamos de outras referências, que vão muito além do estritamente gramatical. Por exemplo: as sete maravilhas do mundo antigo são referidas com freqüência em nossa língua portuguesa, às vezes acrescidas do cinema, consolidado como a oitava maravilha..

Na verdade, cada um pode fazer a sua lista de maravilhas. Mas será que em dois mil anos produzimos apenas uma das oito maravilhas? Não é bem assim. A lista consolidada das sete maravilhas da Antigüidade é a de Filo de Bizâncio, que viveu no século III a. C. São: a Estátua de Zeus, o Colosso de Rodes, o Farol de Alexandria, os Jardins Suspensos da Babilônia, o Templo de Artemisa em Éfeso, as Pirâmides do Egito e o Mausoléu, como foi chamado o túmulo suntuoso do rei Mausolo.

Em resumo, as sete maravilhas do mundo antigo parecem propaganda de candidato a prefeito que quis eleger-se ou reeleger-se nas recentes eleições. São construções.

Aliás, nem de coisas assim os candidatos se orgulharam! Pois o que fica para depois das eleições não são essas grandezas. E talvez haja dose inconsciente acentuada no arquétipo que presidiu a todas as propagandas. Com efeito, poucos candidatos apresentaram obras em educação e cultura. Escola, livro, dança, teatro, música, cinema, alfabetização, que prefeito se orgulhou de façanhas nessas áreas?

As maravilhas que proclamaram foram outras: taparam buracos, fizeram pontes, construíram bueiros, cuidaram do transporte, providenciaram remédios, merenda. Como se atender a tais necessidades não fosse apenas obrigação de quem está no poder. E o resto? O resto é silêncio, como disse Erico Verissimo no título de um de seus romances?

Quem construiu a monumental estátua de Zeus foi Fídias, a quem Castro Alves cita em seu belo poema O navio negreiro: ‘homens que Fídias talhara/ vão cantando em noite clara/ versos que Homero gemeu’. Que beleza a cultura clássica! Mas hoje na escola o saber está ficando cada vez mais utilitário, tecnológico, científico. É provável até que muitos universitários achem que Fídias seja zagueiro ou atacante de alguma seleção da África ou do Oriente.

Há sabor até nas fofocas da História. As figuras ao pé da gigantesca estátua de Zeus podem ter sido inspiradas em gente de carne e osso. Um historiador irreverente escreveu que a figura que está amarrando uma fita ao redor da cabeça parece-se muito com Pantarces, namoradinho adolescente de Fídias. Pantarces praticava luta livre e foi o vencedor desta modalidade na 86ª Olimpíada.

Talvez fosse bom exercício listar as sete maravilhas do Brasil, acrescentando uma oitava para o alvorecer deste milênio. Vou sugerir uma lista ao correr do cursor.

Bem, para mim a primeira maravilha brasileira é nosso povo. Não apenas por ser bonita a diversidade resultante do cruzamento de tantas etnias, mas pela capacidade de se comover, da solidariedade, mais evidente entre os mais pobres.

A segunda maravilha é termos uma língua comum, a portuguesa, na qual, com leves variações regionais, nos entendemos todos.

A terceira é nosso futebol. Anda meio em baixa, mas já nos deu gênios como Pelé e Garrincha.

A quarta é o carnaval, o maior espetáculo da Terra. Sem comentários.

A quinta é Amazônia em imensidão e variedades, sua pouco estudada e sempre proclamada biodiversidade.

A sexta é o conjunto arquitetônico das Missões Jesuíticas, a parte da República Guarani que continua em território brasileiro.

Quais serão a sétima e a oitava maravilhas do Brasil no alvorecer deste milênio? Deixo a pergunta aos leitores. Peço que me ajudem e façam a sua própria lista.