Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O jornalista, promotor e juiz

Imaginemos, só para argumentar, que o casal que comanda a igreja Renascer seja absolutamente inocente. Que, nos tribunais, fique claro que jamais cometeram delito algum. Não importa: já estão condenados. E ai do juiz que se atrever a inocentá-los: a opinião pública (ou ‘clamor popular’) vai considerá-lo suspeito.

Este é um tema que precisa ser discutido entre nós, jornalistas: a aceitação passiva das versões de promotores, delegados, autoridades diversas, divulgadas amplamente, maciçamente, nos títulos, enquanto a defesa fica com um parágrafo tipo ‘fulano nega as acusações’, o que leva à condenação moral dos acusados (e a casos como o da Escola Base). As autoridades têm de ser ouvidas, mas sem que se esqueça que nunca, nem nos crimes mais escancarados da época da ditadura, faltaram autoridades que endossaram formalmente a tese do suicídio.

O uso da imprensa na criminalização prévia dos acusados é hoje fato comum, rotineiro. Autoridades municiam a imprensa com farto material de reforço à versão que defendem, para que os juízes, sentindo-se pressionados pelo ‘clamor popular’, concordem mais facilmente com as medidas propostas pelos promotores. Num caso recente, em Ribeirão Preto (SP), num dia especialmente quente, um promotor saía da sala onde se interrogava um suspeito, subia e descia escadas, esfalfava-se, suava desesperadamente, tudo para garantir à imprensa, quase em tempo real, a versão dos acusadores.

Um grande advogado, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, escreveu excelente artigo no O Estado de S.Paulo na quarta-feira (‘A realidade do combate ao crime das elites‘, 10/1/2007), mostrando que o aparato usado nas buscas e prisões, aliado ao noticiário francamente desfavorável aos acusados, constitui-se numa pena extra, não prevista na lei.

Imaginemos outro cenário: um jornalista sendo acusado por crime de opinião, com promotores ávidos por entrevistas e repórteres ávidos para publicá-las. Como vemos, está mais do que na hora de debater este tema.



A morte e a morte

A imprensa noticiou que a faxineira do novo governador do Rio, Sérgio Cabral, morreu de infarto depois de ficar seis horas na fila de um hospital público. O secretário da Saúde do município desmentiu as matérias: disse que a paciente foi atendida em nove minutos, fez vários exames (incluindo uma tomografia), teve três paradas cardíacas, duas das quais revertidas e a terceira fatal. Resposta do jornal: a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal da Saúde, procurada, disse apenas que ‘todo o atendimento necessário nesse caso foi dado’.

Quem tem razão? É questão a ser investigada. O fato é que não se deve crucificar um hospital porque as informações da assessoria de imprensa foram genéricas e insatisfatórias. Certos dados estão registrados, são concretos: hora da chegada, hora do atendimento, procedimentos médicos. Por que não insistir em consultá-los e, caso o pedido seja negado, registrar o fato na reportagem?

Pouca pesquisa, claro. E má vontade: o sistema público de saúde poderia ser muito melhor, mas será impossível para a imprensa que esteja certo alguma vez?



Nacional vs. global

O caso de Daniella Cicarelli contra o YouTube tem um ângulo que precisa ser amplamente discutido: as leis que nos protegem são nacionais, enquanto a internet é internacional. Vamos esquecer a transa à milanesa, na praia, e entrar no que realmente interessa: com a globalização das comunicações, como fica a proteção aos direitos individuais?

Vejamos um caso hipotético: alguém acusa o sr. Fulano de Tal, via internet, de estuprar ovelhas. A acusação pode ser acompanhada de um filme, possivelmente forjado, mostrando o cavalheiro em ação. Como evitar que o ataque continue a ser divulgado? Não dá: mesmo que o provedor esteja num país civilizado (o que nem sempre acontece) e se disponha a atender a um pedido judicial de outra nação, retirando algum conteúdo condenado, este conteúdo pode ser facilmente recolocado por qualquer pessoa que entenda um pouco do assunto.

Imaginemos um caso ainda pior: endereços eletrônicos racistas, distribuídos na rede por provedores situados em países longínquos, que garantem a seus clientes o absoluto anonimato, inclusive pela freqüente mudança do IP (uma espécie de número de identidade) de seus computadores.

Liberdade de expressão? Claro; só que ninguém é livre para gritar ‘fogo’ num estádio lotado. E essa situação fica ainda mais clara se o caro colega imaginar que alguém decida difamá-lo, utilizando a tecnologia da rede mundial.

Que fazer? Este colunista não tem a menor idéia. Sabe apenas que o assunto tem de ser debatido, envolvendo especialistas em internet, juristas, gente das mais diversas áreas do conhecimento. Por enquanto, discute-se a rapidinha da modelo com seu namorado, num site de boa reputação, com sede conhecida e dirigentes certos e sabidos. E quando houver algum assunto realmente sério, num desses sites que não informam de jeito nenhum quem são seus clientes?



Rápido no gatilho

Certas notícias deveriam despertar a atenção dos editores por suas características. São esquisitas; merecem maior investigação antes de publicadas. É o caso, por exemplo, da informação do Sunday Telegraph de que Israel prepara um ataque ao Irã com bombas nucleares táticas, para impedir que o país desenvolva armas atômicas. Por que a notícia é esquisita?

O principal motivo é que significaria que Israel, que até agora negou a posse de armas nucleares, estaria admitindo a existência de um arsenal atômico. Tudo indica que Israel tenha armas nucleares: nega-se a permitir inspeções internacionais em seus reatores, seqüestrou e prendeu um especialista israelense que denunciou a produção de bombas atômicas, tem mísseis de longo alcance que podem transportá-las. No momento em que Israel usar armas nucleares, táticas ou não, estará aberto o caminho para retaliações. E pelo menos um país muçulmano, o Paquistão, possui bombas atômicas.

Se a notícia fosse mais bem investigada, o editor descobriria que o repórter que assina a matéria, Uzi Mahnaimi, tem o hábito de publicar esta mesma matéria de vez em quando. Em 2000, no próprio Sunday Telegraph, informou que Israel atacaria a Síria se as negociações de paz com os palestinos gorassem. As negociações goraram e não houve ataque. Em 2005, Mahnaimi escreveu que Israel estava pronto para atacar o Irã. Em 2006, disse que Israel estava preparando um ataque à Síria e ao Irã. Um dia, quem sabe, ele pode acertar.



A bomba inteligentíssima

A melhor história de Uzi Mahnaimi, entretanto, é a da bomba étnica: uma bomba desenvolvida por Israel que mataria exclusivamente palestinos, poupando todos os demais seres humanos (a notícia não esclarecia se os árabes cristãos seriam ou não poupados).

Idiotas do mundo inteiro, inclusive do Brasil, a-do-ra-ram a besteira e se apressaram em republicá-la. Ninguém fez a pergunta mais óbvia: como a bomba distinguiria um palestino de um israelense? Faria entrevistas antes de explodir?



Imprensa em perigo

Estão tentando censurar a ‘Coluna do Canibal’, de Geraldo Anhaia Melo, uma das seções mais lidas da Voz do Litoral, quinzenário do Guarujá, SP. A tentativa judicial falhou: o pedido de censura prévia foi rejeitado pelo juiz Mário Magano, da 4ª Vara, que o considerou ‘inaudito’. Agora, ameaçam o dono do jornal, pressionando-o para que elimine a coluna, sob pena de processo criminal. De novo não vai adiantar, porque o editor da Voz do Litoral, Marcos Bonilha, é valente: não se deixará intimidar.



Dos outros

Um assíduo leitor desta coluna, comentando a frase ‘E a imprensa? Os meios de comunicação, como de hábito, se limitam a transcrever as declarações de um lado e de outro, sem investigar, sem sequer tentar descobrir quem tem razão’, insiste na necessidade de liberar a consulta ao Siafi, Sistema Integrado de Administração Financeira, a todos os cidadãos.

‘A imprensa não apenas desconhece o Sistema (fora as exceções de sempre), como não se informa sobre a estrutura orçamentária e financeira do Brasil. Se fossem mais a fundo, perceberiam que o orçamento tem donos, que há portadores das chaves dos cofres, que há gastos corriqueiros que sangram o erário, que há uma linguagem absolutamente desnecessária para impedir o entendimento dos demais cidadãos, etc.’

O caro leitor só não percebeu uma coisa: ir mais a fundo cansa!



E eu com isso?

Dizem que Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, certa vez se queixou de seu embaixador em Paris, Benjamin Franklin: ‘Faz mais de um ano que ele não manda notícias. Se não escrever nada até o fim deste ano, acho que irei enviar-lhe uma carta’.

Velhos tempos! Como é que Thomas Jefferson e Benjamin Franklin poderiam imaginar que hoje, com a velocidade de um raio, sabemos que Fábio Assunção curte show de música eletrônica com morena, ou que Britney Spears e Paris Hilton estão na lista das dez mais mal-vestidas de um costureiro aposentado?

Com toda a rapidez, recebemos notícias de uma ‘empresa de mídia esterior’; e um secretário de Estado, em mensagem por e-mail, promete ‘protejer de fato’. Somos informados de que o Fura-Fila, interminável obra iniciada na época em que Celso Pitta era prefeito, será inaugurada no dia em que São Paulo comemora ‘452 anos’ – mesmo tendo sido fundada em 1554, mesmo estando nós hoje em 2007. Houve festa neste escritório: todas as moças se sentem um ano mais jovens.



O grande título

Nesta semana, a concorrência é pesada. Iniciemos com alguns que, como se fossem novelas, são obras abertas, prontos a mudar de rumo conforme a vontade de seus consumidores:

** ‘Aprovada pela Câmara Municipal de São Paulo a Lei que torna crime ações de discriminação por orienta’

** ‘Condenado a 15 anos de prisão o marroquino El Motassadeq, por cumplicidade nos’

** ‘Nobel de Economia 2001 acha que EUA devem investir no Iraque e retirar suas’

Mas o melhor, por contrariar tudo aquilo que se considerava verdadeiro até hoje, saiu num grande portal:

** ‘Mulheres não se vestem para matar, mas para procriar’

Antigamente, buscando o mesmo objetivo, não se fazia exatamente o contrário?

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados