Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Laura Greenhalgh

"Na última sexta-feira, a socióloga Clarice Herzog, de 63 anos, não foi ao trabalho. Dona de uma conceituada empresa de pesquisa de mercado em São Paulo, vestiu-se logo cedo de jeans, camisão e tênis, e preparou a fuga estratégica para o litoral, junto com o segundo marido, Gunnar. Só assim colocaria o ponto final em uma semana da qual jamais se esquecerá. Antes, porém, reservou três horas para uma entrevista exclusiva para o caderno Aliás, sem colocar limites nos temas tratados.

E não foi uma conversa fácil: ao longo da semana crítica, a viúva do jornalista Vladimir Herzog, morto nas dependências do DOI-Codi em outubro de 1975, contestou o governo Lula ao reconhecer o marido em foto feita por arapongas da ditadura militar. Segundo o ministro Nilmário Miranda, a foto exibida em jornais, ao lado de duas outras igualmente desconcertantes, faz parte de uma coleção de 30 imagens guardadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara. ‘Pode haver muitas fotos. Podem até estar misturadas. Mas uma delas, pelo menos, mostra o meu marido nu e humilhado no cárcere’, insiste. As imagens foram bater na imprensa, tornaram-se alvo de notas desencontradas do Exército e desenterraram na memória do País a história de um assassinato brutal. Clarice quer a apuração de tudo. ‘Ficar à mercê do jogo político é a única coisa que me mete medo’, afirma.

Quando é que você viu pela primeira vez as fotos?

Tem pouco mais de uma semana. Era sábado. Fui para o meu escritório colocar ordem em algumas coisas quando recebi um recado da minha secretária. Ela dizia para eu abrir o meu e-mail porque chegara uma mensagem urgente de uma jornalista de Brasília. Não havia ninguém comigo, o escritório estava vazio.

E o que dizia a mensagem?

A jornalista pediu que eu olhasse e analisasse três fotos transmitidas pela internet. Ao abrir a primeira, tive um choque. Era a foto de um homem calvo com uma mulher estranha. Achei que aquilo era uma brincadeira de mau gosto. Abri as outras imagens e desabei. Numa delas reconheci meu marido nu, em situação de profunda humilhação. Comecei a chorar. Eu não esperava aquilo. Peguei o telefone, fiquei desesperada atrás da jornalista. É ele, eu disse.

O que a fez ter a certeza imediata de que era o Vlado?

Eu bati o olho e não tive dúvida. Eu o reconheço por aquele pedaço de rosto que a foto mostra, na altura da boca. Posso perfeitamente reconstituir a sua expressão facial. Reconheci o formato da cabeça, a calva, os pêlos do corpo. E tem o relógio da foto. Eu o guardei comigo todos esses anos. Vlado só usava este relógio e os agentes do DOI-Codi o entregaram a mim, junto com as roupas, quando o corpo chegou ao IML.

Ele usava relógio na mão direita?

Pois é, não usava. Isso me intriga.

Na última quinta-feira, o ministro Nilmário Miranda, dos Direitos Humanos, a procurou para dizer que não é o Vlado em nenhuma das três fotos.

Eu falei com o ministro e reafirmei a minha convicção. Daí ele me disse que a série completa tem 30 fotos, ou seja, que haveria ao todo 30 fotos em mãos da Comissão ou de um jornal, o Correio Braziliense. Então que ele mostre as outras 27 imagens, pois eu gostaria de ser convencida de que estou enganada.

A ferida reabriu, Clarice?

Completamente. É como se eu vivesse a morte de Vlado pela segunda vez. A imagem dele, nu e acuado numa sala do DOI-Codi, me faz repensar tudo. Sempre achei que sua morte foi o resultado de um trabalho ‘malfeito’, um descontrole da repressão. Ele ficou preso um dia e, segundo os registros oficiais, por sete horas. Durante esse tempo, fizeram com que redigisse e assinasse uma nota de arrependimento. Ele fez isso sob coação, mas, quando recobrou um pouco do ânimo, pôs-se a berrar e rasgou o papel na frente dos torturadores. Provocou a ira daquela gente e apanhou muito. Levou pauladas, socos, pontapés, tomou choque, tudo isso sob o som de um rádio ligado em alto volume. De repente, no meio da tarde, fez-se o silêncio no cárcere. Ele devia estar morto. Essas informações fazem parte dos testemunhos de dois amigos do Vlado, os jornalistas Rodolfo Konder e George Duque Estrada, que também estavam presos no DOI-Codi. Mas começo a supor que havia um plano para colocá-lo em situação de constrangimento.

Por que você acha isso?

Pessoas que estiveram presas no DOI-Codi contam que não havia esse negócio de fotografar o preso. Muito menos o preso nu. Isso não existia. Ora, no caso do Vlado, alguém estava lá para fotografá-lo nu e abatido.

Por que inúmeras vozes do governo Lula acham que é melhor encerrar o caso?

Eu sinceramente não sei. Por mais difícil que tenha sido a divulgação das imagens para mim, e por mais sensacionalista que tenha sido a cobertura de alguns órgãos da imprensa, penso que é preciso investigar. Afinal, como as fotos foram parar na comissão, e depois no jornal? Quem é este cabo Firmino que espionou tanta gente? Por que desenterraram o caso Vlado agora? Quem mais tem arquivos? Quem mais tem documentos a revelar? Espero que o governo Lula cumpra seu dever de esclarecer tudo. Anistia de mão dupla não significa jogar pás de terra sobre o passado. Não é isso.

Herzog era uma ameaça grave para o regime?

Não. Quando foi preso, aos 38 anos, tinha pouco tempo de militância. Um belo dia ele me disse ‘Clarice, preciso contar uma coisa, afinal, você é minha mulher, minha companheira, mãe dos meus filhos, é importante que você saiba. Entrei para o Partido Comunista’. Foi o maior susto.O Vlado no partidão?! Não era de fazer política, era mais um intelectual, um homem ligado às idéias, às artes… E ele se justificou dizendo que no Brasil, àquela altura dos acontecimentos, a única maneira de enfrentar o regime seria através da Igreja Católica ou do PC. Como era judeu, optou pelo PC. Foi assim.

Se não era terrorista, se não pegara em armas, se tinha pouco tempo de filiação comunista, então por que matá-lo?

Escolheram Vlado para ser a vítima de uma guerra de gigantes. Nós estávamos em 1975, em pleno governo Geisel. Havia setores do regime interessados numa transição institucional para a democracia.Mas havia os contrários a isso, os defensores do autoritarismo. Isso ficou claro nos desentendimentos do então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, com o comandante do II Exército, Ednardo D’Ávila Mello, um general linha-dura. Vlado morreu no contexto de uma ofensiva radical contra o governo Geisel.

Você acha que ele estava marcado para morrer?

Pode ser. Os agentes da repressão já estavam furiosos porque não conseguiram prender Vlado na TV Cultura, na noite de 24 de outubro de 1975, sexta-feira. Houve uma negociação para que o deixassem terminar a edição do telejornal, mediante o compromisso de que ele iria se apresentar ao DOI-Codi, no dia seguinte. Voltamos para casa, mas, naquela noite, tivemos de abrigar um sujeito estranho, um homem que trabalhava na TV Cultura e prestava serviços para o DOI-Codi, dá para acreditar? O homem acomodou-se no sofá de casa, para impedir uma possível fuga do Vlado. No dia seguinte, meu marido compareceu diante dos algozes por volta das 8 da manhã. Teria morrido às 15 horas.

Era intenção do Vlado ir ao DOI-Codi no dia seguinte ou tentar uma fuga?

Não, ele queria ir e foi. Me lembro de um comentário dele quando voltamos para casa naquela sexta-feira. Dizia que o fato de ir livremente ao DOI-Codi, no dia seguinte, seria uma conquista para todos os jornalistas.

Vocês já estavam sendo vigiados?

Sim. Naquela mesma sexta-feira, uns sujeitos vieram até nossa casa. Diziam que precisavam do Vlado para fazer uma cobertura fotográfica. Eu disse: ‘Sinto muito, meu marido não é fotógrafo.’ Pediram o endereço do trabalho dele, eu não dei. Os homens viraram as costas, eu coloquei meus dois filhos, Ivo, de 9, e André, de 7, no carro e zarpei para a Cultura.Precisava avisá-lo. Quando cheguei à emissora, dei de cara com os mesmos sujeitos que haviam passado em casa.

Parece filme de horror.

Completamente. Mesmo depois de matarem Vlado, eu continuei sendo vigiada. Por um bom tempo havia um carro com pessoas suspeitas parado diante do nosso portão. Por telefone vinham ameaças. Me chamavam de judia, diziam que se haviam matado um, matariam todos… aquilo era tão absurdo que até as empregadas foram embora.

A história poderia ter sido diferente?

Talvez. Desde que vi essas fotos, há coisa de uma semana, minha cabeça está fervilhando. Voltam pensamentos muito dolorosos…

Que pensamentos?

Sei lá, talvez se eu tivesse me apresentado com o Vlado, se tivéssemos sido presos juntos, ele não teria se exaltado com os torturadores. Talvez tivesse sido mais flexível e sobrevivesse. Ao longo desses 29 anos, inúmeras vezes me deparei com uma pergunta maluca: será que eu o deixei morrer?

Clarice, independentemente do fato ser o seu marido, por que o caso Vladimir Herzog abala tanto a opinião pública? Como você avalia isso?

Porque Vlado se tornou o símbolo do aviltamento do regime. É isso. As fotos que vi esta semana são chocantes, mas estou preparada para ver o que for necessário e restaurar a verdade. Do contrário, a ferida não fecha.

Você chegou a ver as marcas de tortura no corpo do seu marido?

A repressão entregou o corpo de Vlado no IML, no domingo. Ele estava vestido com um terno azul clarinho, que meu irmão levou para lá. Fizeram a autópsia ‘oficial’ e eu, desesperadamente, busquei arrumar três médicos que assinassem o pedido de uma autópsia paralela. Encontrei apenas um médico, que deu para trás, e foi tudo. O clima era de muito medo. Adiamos o que pudemos a ida do corpo para o velório do Hospital Albert Einstein porque, lá chegando, ele seria lavado segundo o rito judaico, o que poderia amenizar as marcas de violência. No Einstein, no entanto, o chefe dos lavadores de corpos abriu rapidamente o caixão para que eu visse Vlado pela última vez. Ele estava muito ferido. Eu comecei a gritar, a xingar… logo baixaram a tampa.

O que disseram os lavadores do corpo?

Não sei. Pergunte ao rabino Henry Sobel. Ele pode responder. Sobel foi o primeiro a contestar a tese do suicídio, determinando que Vlado fosse enterrado dentro do cemitério israelita. Mais ou menos um mês depois do enterro, dom Paulo me procurou. Disse-me que havia estado com a pessoa que comandou a lavagem e que o homem lhe dissera que Vlado chegara ao Einstein muito machucado, tinha vários ossos quebrados, marcas por todo lado. E que, não havendo a menor hipótese de suicídio, eu deveria mover um processo. Essa conversa com o cardeal foi importante porque me incentivou a trilhar o caminho da responsabilização do Estado.

Foi difícil trilhar esse caminho?

Muito. Houve gente que me criticou, gente que disse que eu era legalista demais, mas não me arrependi. Em 1978, o jovem juiz Márcio José de Moraes assinou uma sentença corajosa para os tempos da ditadura, responsabilizando a administração pública pelos atos de seus agentes. Foi uma vitória histórica, com repercussões positivas sobre outros casos de perseguidos e mortos pelo regime, como o do operário Manuel Fiel Filho. No processo, eu não pedia recompensa material porque não queria um dinheiro manchado de sangue. Eu queria justiça. A indenização só veio mais tarde, no governo Fernando Henrique, mas eram outros tempos.

O enterro do Vlado, o culto ecumênico na Catedral de São Paulo dias depois, a volta para a vida normal. Como foi seu primeiro tempo de viuvez?

No velório e no sepultamento, víamos agentes e policiais por todos os cantos. Era um cerco mesmo. Enquanto velávamos o corpo, um homem aproximou-se de dom Paulo e, sussurrando, disse-lhe que não se manifestasse. Dom Paulo rezou baixinho, cumprimentou nossa família e foi embora. No cemitério, havia um clima de pressa, de terminar tudo rapidamente. Por pouco dona Zora, mãe de Vlado, não chegaria a tempo de ver baixar à sepultura seu único filho. No culto ecumênico, eu estava transtornada. Chorei, gritei, praguejei a ponto de dom Paulo dizer: ‘Calma, minha filha, não é bom você dizer essas coisas.’ Daí ouvi atrás de mim a voz de dom Helder Câmara, dizendo: ‘Paulo, deixe ela desabafar, é bom…’. Jamais me esquecerei disso. Voltei para minha casa decidida a proteger os meus filhos, eles já haviam perdido muita coisa.

Como eles ficaram sabendo da morte do pai?

Quando ligaram para nossa casa para avisar que Vlado havia se ‘suicidado’, começou a chegar muita gente e eu subi ao quarto das crianças para conversar. Não diria que o pai se matara, jamais repetiria tal absurdo. Também não diria que o pai havia sido morto pela polícia, porque Vlado não era bandido. Acomodei a situação dizendo que foi um acidente de carro. Tempos depois, contei toda a verdade. Era preciso.

E qual foi a reação?

Para André, o mais novo, tudo aquilo era difuso. Mas, para Ivo, as seqüelas apareceram. Pouco tempo depois, ele começou a ficar muito, muito prostrado. Os médicos diagnosticaram um quadro de miastenia grave, doença que afeta o sistema neuromuscular. Mesmo debilitado, ele entrava em pânico quando tinha de tirar sangue ou quando precisava fazer exame de fundo de olho. Ninguém o segurava. Ele dizia: ‘Papai morreu na cadeira elétrica, não foi?’. Vi meu filho no fundo do poço e resolvi que iria salvá-lo. Hoje está bem.

E a mãe de Vlado?

Está com 94 anos. Quando houve a divulgação das fotos, na semana passada, tratamos de esconder os jornais para que ela não tivesse um baque. Mas impossível tirá-la da televisão. Nos últimos dias, tenho reparado que dona Zora já não presta muita atenção em fatos graves. É uma autodefesa.

Você se casou de novo, tem uma vida profissional bem-sucedida, conseguiu criar os filhos, enfim, pode-se dizer que Clarice Herzog deu a volta por cima. Mas ainda é a ‘viúva do Vlado’, a guardiã do mito. Como você lida com isso?

Essa dualidade vai continuar. Sou a viúva do Vlado e a Clarice. Ainda uso o sobrenome dele e há entre nós uma amálgama. Agora, jamais fui dependente dessa viuvez. Trabalho desde cedo e sempre acreditei que deveria me manter.

Vlado ainda é muito presente na sua vida?

Sempre foi e para sempre será. Ele é o pai dos meus dois filhos e o avô dos meus três netos. É o namorado que eu conheci nos tempos da USP, o rapaz ético, generoso, que pensava nos amigos antes de pensar em si mesmo. Para mim, o caso Vladimir Herzog está encerrado. Já provamos o que queríamos. Mas sou francamente a favor de que se busque a verdade, que se abram todos os arquivos e que se acerte, de uma vez por todas, essa dívida com a sociedade brasileira."



Henry Sobel

"O que o tempo não conseguiu lavar", copyright O Estado de S. Paulo, 24/10/04

"Esta semana tomamos conhecimento de fotografias que supostamente foram tiradas nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Verdadeiras ou não, as imagens nos chocam porque trazem à memória um episódio muito doloroso, que marcou o começo do fim da ditadura militar no Brasil. Vladimir Herzog foi humilhado e torturado no cárcere, disso não tenho a menor dúvida. E é por esta certeza que eu me disponho a repassar fatos daquele período sombrio.

No dia 26 de outubro de 1975, eu estava no Rio de Janeiro participando de uma palestra, quando fui chamado ao telefone para receber a notícia da morte Vladimir, filho de Zora, uma senhora judia que fazia parte da nossa congregação, por isso eu a conhecia bem. Disseram-me que o rapaz havia morrido na prisão e era dado como suicida pelos agentes do regime. Mas sobravam evidências de que fora brutalmente assassinado.

Em sucessivos telefonemas interurbanos, numa época em que não havia celulares, fax nem internet, conversei com os membros da Chevra Kadisha, entidade que zela pela observância dos nossos preceitos religiosos. Eu queria entender o que se passava. Eles me diziam ‘rabino, Herzog não se suicidou. Ele foi morto’. A essa altura, os voluntários da Chevra já faziam os preparativos do funeral no Cemitério Israelita do Butantã. Segundo a tradição judaica, os mortos são despidos e banhados em água antes do sepultamento, num ritual de purificação chamado tahraha. Após o banho, são embrulhados em panos e acomodados no caixão, que vai fechado para o velório e o enterro, para que se guarde do morto a lembrança de quando estava vivo.

Herzog foi banhado por cinco homens da Chevra Kadisha. Eles manusearam o corpo e viram as marcas de tortura nas costas, no peito, nas nádegas. ‘Rabino, o corpo está todo manchado. Deve ter apanhado demais’, me diziam ao telefone. Pedi que examinassem tudo muito bem, com cuidado, com atenção. Não havia agentes ou infiltrados no ritual do banho. Então, diante de algo que não vi, mas de que jamais duvidei, tomei a decisão de ignorar o laudo oficial que falava em suicídio. Determinei, do Rio mesmo, que enterrassem o filho de Zora no centro, e não na periferia do campo santo, para onde vão os que atentam contra a própria vida.

O pessoal da Chevra hesitou em cumprir a ordem, o que era natural naquelas circunstâncias. Aqueles homens estavam assustados. Por outro lado, figuras destacadas da congregação me recriminavam pelo fato de eu ter negado a versão oficial dos fatos. ‘Façam rigorosamente o que estou dizendo’, insisti. Voltei o mais rápido que pude para São Paulo, mas não a tempo de assistir ao enterro. Não houve rabino na cerimônia. Fui substituído também por enviados da Chevra. Mais tarde, eles me diriam que os rituais haviam sido cumpridos, ‘apesar da pressa toda’. Havia medo de que o enterro se convertesse num ato político, em clima de muita tensão e instabilidade.

Esse episódio marcou a minha vida e, o que é mais importante, mudou o País. Na época, eu tinha 31 anos. Era um jovem inexperiente, recém-chegado de Nova York para assumir meu primeiro posto como rabino. Nos dias que se seguiram ao sepultamento, passei a me reunir com dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo, e com o reverendo Jayme Wright. Aprendi muito com dom Paulo, um modelo de coragem e dignidade. Juntos, preparamos o culto ecumênico na catedral metropolitana, em ato que reuniu mais de 8 mil pessoas. Ali vimos que a sociedade queria dar um basta! Imagine, não se fazia culto ecumênico no Brasil, muito menos para prantear uma vítima do regime. Era algo absolutamente inédito.

Na véspera do culto, recebi a visita do general Marques, um dos chefes linha-dura do II Exército, um sujeito de estatura baixa. Ele foi até a minha sala acompanhado de outro militar, trazendo consigo alguns documentos, entre eles, o laudo oficial e aquela foto de Herzog que encena o enforcamento na cela. O general me disse: ‘O senhor está vendo. Foi suicídio. Rabino, quer um conselho? Não vá ao ato, o senhor não tem nada a fazer lá.’

Não me arrependo de ter ido, e muito menos de ter vivido aquele momento histórico. Este episódio precisa ser lembrado, até para que os jovens saibam o que aconteceu. Tive de sair da catedral direto para a sinagoga, porque era tarde de sexta-feira, quando começam os serviços religiosos do shabat, ou seja, o dia do descanso dos judeus. Do púlpito, agradeci os poucos apoios que havia recebido da minha comunidade e critiquei todos aqueles que se omitiram não só diante da morte de um judeu, mas diante da morte de um brasileiro. A história de Vladimir Herzog me fez fincar raízes neste país, ao mesmo tempo que definiu a missão religiosa que eu teria pela frente: construir uma ponte entre a sinagoga e as ruas. Até hoje é o que eu busco fazer. * Presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista (CIP)"



Larry Rohter

"A Exumação de um Assassinato Político Reabre Velhas Feridas no Brasil", copyright O Globo Online (www.oglobo.com), 25/10/04

"Abaixo, a íntegra da reportagem publicada na edição de domingo do ‘The New York Times’, assinada pelo correspondente do jornal no Brasil, Larry Rohter.

"Vladimir Herzog morreu sob custódia militar há quase 30 anos, no que ainda hoje é um dos mais notórios casos de abuso de direitos humanos no Brasil. Agora a publicação de um par de fotografias supostamente tiradas em suas últimas horas de vida reabriu essa velha ferida e aumentou as diferenças entre as forças armadas e o governo de esquerda atualmente no poder aqui.

A tentativa do exército, décadas depois do episódio, de justificar seu tratamento de Herzog e centenas de outros prisioneiros políticos enfureceu a opinião pública aqui. Embora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha se movido para disciplinar o exército, o ressurgimento do caso também expõe outras violações que talvez se provem mais difíceis de serem abordadas.

– O problema político imediato pode ter sido resolvido, mas o mais profundo não foi – João Luiz Pinaud, presidente da comissão especial do governo para Mortos e Desaparecidos Políticos disse. – O resíduo de um sistema autoritário continua lá, oculto nas sombras.

Em entrevistas nesta semana, o agente da inteligência militar que forneceu as fotografias, José Alves Firmino, também causou surpresa ao dizer que a inteligência militar continuou a espionar clandestinamente partidos e políticos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais muito depois do fim do regime militar. Ele disse que durante meados dos anos 1990 ele monitorou inclusive as atividades do Sr. da Silva (Lula), oferecendo uma fotografia de si mesmo com o futuro presidente como prova.

Herzog, um jornalista de televisão em São Paulo, foi convocado para interrogatório num quartel de inteligência na cidade em 25 de outubro de 1975, sob suspeita de ter laços comunistas, o governo disse. Ele morreu naquele mesmo dia após ser torturado. Os militares chamaram sua morte de suicídio, e trouxeram a público uma fotografia, que depois se provou ter sido montada, que mostrava Herzog enforcado por um cinto em sua cela.

Sua morte se tornou um símbolo dos excessos da ditadura militar, embora uma anistia tenha impedido que os responsáveis fossem julgados. Mas o caso Herzog foi abordado em diversos livros, filmes e programas de televisão através dos anos, e quando o jornal de Brasília ‘Correio Braziliense’ soube que fotografias de Herzog, preso, nu e em desespero haviam sido achadas nos arquivos de um comitê do congresso, para onde haviam sido enviadas por Firmino anos atrás, entrevistou o agente para torná-las públicas.

Solicitado a comentar as fotografias, publicadas em 16 de outubro, o exército de início respondeu desafiadoramente. Divulgou uma declaração prevenindo contra ‘revanchismo mesquinho’ e defendendo as violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar como uma resposta necessária a provocações comunistas

‘As medidas tomadas pelas forças legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo e optaram pelo radicalismo’ o pronunciamento dizia. O exército agiu ‘em resposta a um clamor público’ por uma linha dura contra subversivos políticos, o pronunciamento dizia.

O argumento se provou extremamente impopular, especialmente para os membros do governo que foram presos, torturados e exilados pelo governo militar. Da Silva,um ex-líder trabalhista e prisioneiro político, ficou lívido, segundo relatos, e o comandante do exército, General Francisco de Albuquerque, foi chamado ao palácio presidencial para uma reprimenda no começo da semana.

O exército teve que divulgar uma segunda declaração, dizendo que ‘lamenta’ a morte de Herzog e reconhecendo ‘a falta de uma discussão interna profunda’ sobre direitos humanos entre as tropas. ‘Entendo que a maneira pela qual o assunto foi abordado não é apropriada’ o General de Albuquerque disse na nota, adicionando que as posições que o exército inicialmente expressou era ‘não condizentes com o atual momento histórico.’

Essa humilhação pública, porém, não satisfez alguns grupos de direitos humanos ou membros do governo do Partido dos Trabalhadores. Eles têm pedido a exoneração do General de Albuquerque, um passo que da Silva deixou claro que não está disposto a tomar.

Quando da Silva assumiu o cargo em janeiro de 2003 algumas pessoa nas forças armadas permaneciam suspeitas de suas origens esquerdistas. Desde então, alguns resmungos têm sido ouvidos entre os militares sobre baixos salários, equipamento ultrapassado e a relação próxima entre o Partido dos Trabalhadores e o presidente cubano Fidel Castro.

No geral, da Silva tem procurado evitar conflitos com os militares, o que deu margem a críticas de que ele está sendo muito indulgente com as forças armadas. ‘Se o governo tivesse um discurso mais forte sobre o passado, teria evitado essa irrupção nostálgica’ a colunista Tereza Cruvinel escreveu no jornal diário do Rio de Janeiro ‘O Globo’ esta semana.

As forças armadas sustentam que todos documentos oficiais relevantes sobre abuso de direitos humanos foram legalmente destruídos depois que o mando civil foi restaurado em 1985. Mas Firmino diz que eles são parte de um conjunto de 50 mil documentos que um oficial militar deu a ele alguns anos atrás.

Na quinta-feira, a agência estatal de inteligência disse que as fotografias em questão eram de um padre canadense e não de Herzog, embora não tenha explicado como poderia ter chegado a essa conclusão se todos os arquivos tivessem sido destruídos. Mas a viúva de Herzog e o grupo de direitos humanos Tortura Nunca Mais, que acusou os militares de mentirem sobre a destruição dos documentos, disseram ter certeza de que era Herzog quem aparecia nas fotografias.

Pinaud, da comissão do governo, disse que gostaria de investigar o assunto, mas reclamou que sua comissão tem sido ‘impedida’ de fazer seu trabalho por um orçamento e equipe minúsculos e pela ‘inércia’ do governo atual.

– Estamos fora de compasso – ele disse. – Sinto urgência em chegar ao fundo disso, mas não sei se eles também sentem.

Em suas entrevistas à imprensa nessa semana, Firmino descreveu sua carreira na inteligência militar

– Eu espiava, roubava, recebia ordens para matar – ele disse numa. – Em resumo, eu era um criminoso.’"

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"‘The New York Times’ publica reportagem sobre caso Herzog", copyright O Globo Online (www.globo.com.br), 25/10/04

"O jornal ‘The New York Times’ publicou em sua edição de domingo uma reportagem a respeito da discussão sobre a reabertura dos arquivos militares brasileiros. Assinada pelo correspondente do jornal no Brasil, o jornalista Larry Rohter, a reportagem diz que a publicação de fotos que mostrariam Vladimir Herzog no cárcere do DOI-Codi ‘reabriu uma velha ferida’ e aumentou as diferenças entre o Exército e o governo ‘de esquerda’ do PT.

A reportagem é intitulada ‘A exumação de um assassinato político reabre velhas feridas no Brasil’. Nela, Rohter descreve as reações à publicação das supostas fotos de Herzog no ‘Correio Braziliense’, dando destaque às notas publicadas pelo Exército sobre o caso. O jornalista diz que a primeira nota, em que o Exército alertava para os riscos do revanchismo e dizia ter respondido a um clamor popular ao instalar a ditadura, provou-se extremamente impopular, e teria deixado o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ‘lívido’, segundo relatos.

Rohter diz que o presidente obrigou o Exército a publicar a segunda nota, em que lamenta a morte de Herzog, mas afirma que Lula tem evitado confrontos com os militares. Ele cita um artigo da colunista do ‘Globo’ Tereza Cruvinel em que ela afirma que uma posição mais firme de Lula sobre os crimes da ditadura teria evitado a ‘irrupção nostálgica’ do Exército. Rohter relata ainda as reclamações do presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, o advogado João Luiz Pinaud, que acusou o governo de não contribuir para uma apuração rigorosa dos crimes cometidos pela regime militar."



Carlos Marchi

"Objetivo da prisão de Herzog era atingir o governador Paulo Egydio", copyright O Estado de S. Paulo, 24/10/04

"Jornalistas lembram de perguntas sobre ‘comunistas da TV Cultura’ e acreditam que promessas de redemocratização motivaram a ação

A prisão de dezenas de pessoas, em sua maioria jornalistas da TV Cultura, em outubro de 1975, tinha por objetivo atingir o governador Paulo Egydio Martins e as tímidas e nascentes promessas de redemocratização, concordam jornalistas presos junto com Vladimir Herzog há 29 anos e o alvo da ação dos radicais – o ex-governador. A jornalista carioca Marinilda Carvalho, que trabalhava em Brasília, lembra a insistência com que seus torturadores perguntavam a ela sobre ‘os f.d.p. dos comunistas da TV Cultura’, que ela nem sequer conhecia.

‘Não há dúvida, eles queriam atingir a TV Cultura e, numa sucessão em cadeia, o secretário de Cultura, José Mindlin, o governador Paulo Egydio Martins e, na ponta da linha, a prometida abertura política do presidente Geisel’, diz o jornalista Paulo Markun, que era chefe de reportagem da TV Cultura à época. ‘Os deputados Alberto Goldman e Airton Soares me contaram que alguns presos libertados disseram a eles que os interrogadores da repressão me chamavam de ‘agente da KGB (serviço secreto soviético) no Brasil’. O jornalista Rodolfo Konder me contou a mesma coisa. Parece loucura, mas foi verdade’, diz Egydio.

‘COMUNIZAÇÃO’

Egydio relatou ao Estado que, logo que começaram as críticas à ‘comunização’ da TV Cultura – feitas principalmente pelo colunista Cláudio Marques, que tinha uma coluna no Shopping News, jornal de distribuição gratuita – ele fez uma reunião secreta com Mindlin, o secretário de Segurança, coronel Erasmo Dias, o diretor-geral do Dops, delegado Romeu Tuma, e oficiais de informação do Exército, Marinha e Aeronáutica. A todos pediu que fuçassem os arquivos da inteligência para saber se havia algo contra Vladimir Herzog.

Uma semana depois, nova reunião e uma resposta cabal – em nenhum dos arquivos da polícia ou das forças armadas constava qualquer informação, direta ou indireta, que pudesse relacionar Vladimir Herzog ao comunismo. Ele então deu a Mindlin inteira liberdade para manter Vlado. As críticas recrudesceram. Na Assembléia, o então deputado Wadih Helu atacava a Cultura por ter exibido um documentário sobre a União Soviética; no Shopping News, Cláudio Marques, que mais tarde perderia o registro de jornalista, dardejava a ‘TV VietCultura’ com denúncias e sugeria que ‘os comunistas’ deveriam ser convidados a se hospedar no Tutóia Hilton, expressão sarcástica que caricaturava a masmorra do DOI-Codi paulista (que ficava à Rua Tutóia).

Paulo Egydio explica a fúria dos radicais: ‘Eles sabiam da ligação que eu tinha com Aureliano Chaves e Sinval Guazelli, governadores de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, e nosso engajamento com a redemocratização. Nós estávamos na linha de frente contra a linha dura. Graças a Deus vencemos, mas muitas mortes lamentáveis ficaram pelo caminho, como a de Vlado e a de oficiais da Polícia Militar paulista, antes de eu assumir o governo’, diz ele.

O jornalista José Vidal Pola Galé, outro dos presos à época em que Herzog foi assassinado, registra que os ataques da linha dura a Egydio tinham uma razão clara – ele era contra a tortura. O mesmo pensa o jornalista Luiz Weis, hoje articulista do Estado, que também foi detido. Para ele, a linha dura tinha o claro objetivo de criar uma situação que fragilizasse o então governador Paulo Egydio.

À época, Weis levou uma denúncia contra Cláudio Marques ao porta-voz de Geisel, Humberto Barretto, que resumiu: ‘Não leve ele a sério.’ O Palácio do Planalto, de fato, parecia não levar. Mas as denúncias acabaram construindo o clima que propiciou a prisão e o assassinato de Vlado.

OS HOMENS

A bibliotecária Vera Stefanov, hoje presidente do Sindicato dos Bibliotecários de São Paulo, recorda que na noite de 24 de outubro de 1975 ela anotava as decisões sobre o novo quadro de jornalistas da TV Cultura, tomadas pelo novo diretor de Jornalismo, Vladimir Herzog, e o gerente de Recursos Humanos, Nelson Silva Miguel, de quem ela era secretária. De repente o telefone tocou e alguém disse a Vlado que agentes da repressão procuravam por ele na redação.

Começava ali a via-crúcis de Vlado. Vlado foi à redação e ficou acertado com os agentes que ele compareceria no dia seguinte, um sábado, ao DOI-Codi, onde outros jornalistas estavam, há semanas, sendo barbaramente torturados (naquela fornada, foram 95 presos, com 105 indiciados, 76 julgados e apenas 8 condenados). No sábado, Vlado chegou pontualmente às 8 horas e, menos de oito horas depois, estava morto.

No início da noite o 2.º Exército comunicou à TV Cultura que Vlado havia ‘se suicidado’ durante o depoimento. No domingo, 26 de outubro, o Estado publicou uma nota do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo que cuidadosamente protestava contra a morte. Eram tempos de trevas, lembra hoje Paulo Egydio, principalmente em São Paulo, onde pontificava a linha dura, comandada pelo general Ednardo d’Ávila Melo, que seria demitido pelo presidente Geisel 3 meses depois."