‘Um dos exercícios mais frutíferos que se pode fazer é ver como os outros nos vêem. Vale para pessoas, culturas, cidades, países e continentes. E quase sempre revela algo que, de outra forma, estaria oculto. Ou pelo menos ensina como obter uma visão ampla de assuntos que, em geral, tomamos como quase triviais.
Pulo por cima da matéria do Independent, já por demais comentada – e, de todo modo, apenas tangencialmente ligada ao tema desta coluna. Em vez disso, ofereço material um pouco mais positivo.
Por exemplo, a presença brasileira na edição especial, dedicada à música, da Vanity Fair americana. Todo ano a VF põe nas bancas duas edições especiais, temáticas. Uma, focada em cinema, sai um mês antes do Oscar, e inclui um portfólio de quem a revista considera pertinente no momento – este ano, Fernando Meirelles, Walter Salles e Rodrigo Santoro estavam lá.
Agora, no segundo semestre, a VF faz a sua ‘edição musical’, um gesto que se torna progressivamente mais ousado e interessante à medida em que a indústria de discos (e, agora, a de shows, pelo menos internacionalmente) agoniza, moída por transformações grandes e profundas. Noto aqui o quanto passou despercebida, na mídia brasileira, a venda do selo fonográfico DreamWorks, descartada sem cerimônia por seu fundador David Geffen por ser ‘um negócio que não é mais viável’. Isso na boca de um homem que praticamente inventou a indústria de discos como a conhecíamos…
O fato da VF continuar apostando no tema – e continuar saudavelmente rechonchuda de anúncios e promoções, exatamente na sua edição musical – confirma, para mim, que a música como pauta vai viva e mais que bem: seus suportes bi-dimensionais é que estão mais para lá do que para cá.
Fatiando o segmento ‘música’, a VF já se dedicou a country, hip hop e rock. Agora focaliza a chamada world music. A proposta, em si, já me intriga, uma vez que acredito (e sempre acreditei) que se trata de um dos mais claros rótulos já afixados de fora para dentro. ‘World’ para quem, cara pálida? É que nem chamar a região da Turquia, Palestina, Mesopotâmia e Arábia de ‘Oriente Próximo’ ou ‘Médio’ – com relação a que? Próximo de que? De quem?
Mas temo que esteja dando murro em ponta de faca – o rótulo pegou, é inegável. Resta então a curiosidade de ver quem, no olhar da VF – que é o olhar da elite da mídia americana – habita este world.
No portfólio deste ano estão dois dos príncipes primeiro-mundistas a quem devemos o rótulo (pensamento rápido: quando os Beatles gravavam com instrumentos indianos eles estavam fazendo ‘world music’?): Sting e Peter Gabriel. Ausentes, curiosamente, estão dois outros: Paul Simon e David Byrne (que renegou publicamente o rótulo num excelente artigo para o New York Times, uns três anos atrás).
Imediatamente após Sting – que abre o portfólio – está o primeiro dos quatro brasileiros que, segundo a VF, compõem este seleto time: Caetano Veloso, fotografado ao lado de Paula Lavigne, em seu apartamento no Rio. Depois dele, dividindo páginas com Ladysmith Black Mambazo, Talvin Singh, Les Nubians, Cesaria Evora e outros estão Gilberto Gil, Bebel Gilberto e Marisa Monte.
Eis o exercício para hoje: que Brazil/Brasil este quarteto desenha? O que ele significa? Como, numa nação de dimensões musicalmente continentais, estas quatro vozes foram ouvidas – e não outras? Responder essas perguntas sem julgamentos, sem pré-conceitos, tentando entrar na cabeça de quem primeiro as respondeu pode revelar um bocado sobre o Brasil com s e o Brazil com z, aquele que nós mesmos vemos, e aquele que é visto.
Estes quatro nomes atravessaram uma fronteira invisível e se alinharam com outros artistas que, de algum modo, foram escolhidos pra representarem o impossível – a vastidão de suas culturas – num foro que é desigual por natureza.
E, considerando que a seleção da VF não inclui nenhum outro artista latino americano – nem mesmo o gigante Gustavo Santaolalla, que praticamente inventou e apresentou ao público americano o pop en español – que geopolítica cultural este panteão estabelece? Uma possibilidade intrigante seria a de que o pop en español já está tão integrado ao tecido cultural norte-americano que não tem mais lugar no world…’
LÍNGUA PORTUGUESA
‘O português vulgar’, copyright Jornal do Brasil, 25/10/04
‘A ignorância não pode servir de álibi a ninguém para violar a gramática, a Constituição de nossa língua. Entretanto, as transgressões da norma culta são recursos indispensáveis a romancistas, contistas, poetas.
Vamos aos casos mais célebres. Jorge Amado, empenhado, na vaga do Romance de 1930, em registrar os diálogos dos personagens tal como eram proferidos na realidade documental que procurava espelhar em seus romances, foi chamado de analfabeto. Contudo, Graciliano Ramos fez outras opções frente a dilemas semelhantes e mostrou como podem ser conciliados norma culta e registros documentais. Erico Verissimo mostrou que o gaúcho empregava ‘le’ em vez de ‘lhe’. Duas décadas mais tarde, João Guimarães Rosa cunhou o dito famoso de que pão ou pães era questão de ‘opiniães’.
Antes, ainda nos anos 20, os modernistas questionaram duramente a rigidez da norma culta, entre outros atrevimentos. Nos anos 70, o conto irrompeu como gênero preferido por jornalistas, publicitários e centenas de autores que, impedidos em outros discursos, dados os temas de que se ocupavam e o império da censura, optaram por textos de ficção. A metáfora, a alegoria e outras figuras de linguagem despontaram como grandes recursos. Mas muitos autores foram negligentes com a língua portuguesa em nome de engajamento social e da urgência da luta que travavam contra a censura.
Mas e agora? Quem está obrigando a escrever textos que são, além de confusos e dispensáveis, verdadeiros crimes de lesa-língua? E quais os motivos de tanta omissão e descaso diante do quadro tenebroso? É freqüente que intelectuais, misericordiosos com quem erra tanto, defendam os transgressores em nome de um vago respeito ao povo e àqueles que, às vezes sem procuração, falam e escrevem em nome dele. Em tais casos, o absolvido não é o pecador, é aquele que se pôs no lugar do confessor que, assim procedendo, legitima o escrito desjeitoso do outro num pacote completo, que inclui, naturalmente, também a sua crítica absolutória.
Passemos do simples ao complexo. Machado de Assis cobria o Senado. Nossos jornalistas, hoje encarregados de ofício semelhante, lêem o homem? Tornou-se usual ‘fazer colocações’, ‘comentar sobre’ e usar ‘onde’ como curinga da língua portuguesa, utilizando-o, não como advérbio e pronome com funções previamente especificadas, mas até mesmo na substituição de ‘quando’. Quem escreve de modo assim confuso padece efeitos de dois pecados mortais: acha desnecessário conhecer a língua em que escreve e não lê os textos de quem sabe escrever.
Os desrespeitos à língua portuguesa têm um péssimo exemplo em jornal de circulação nacional que aboliu por conta própria o trema, tirou acentos que o português tinha e tem e colocou acento que o latim não tinha e não tem.
Em face de tantos atentados à língua, bom seria que o projeto do agora ministro Aldo Rebelo fosse transformado logo em lei. Não somente para vetar neologismos horripilantes e dispensáveis, mas para incentivar os inconformados com tamanho descalabro.
Comandando instâncias decisivas em instituições respeitáveis, públicas ou privadas, estão indivíduos quase ágrafos. E às vezes muito pernósticos. Indivíduos ou elementos? A polícia diz sempre elementos. Eles costumam evadir-se, em vez de fugir.
Não é essa a linguagem que queremos.
Mas pelo amor de Deus, se quem escreve não é botânico, trate de cuidar da jardinagem com as devidas cautelas. O leitor não tem tal obrigação. Ele merece que nos façamos entender sem estranhas submissões aos ignaros e ágrafos. Se fosse para escrever de qualquer jeito, por que orçamentos, públicos e privados, incluindo os de nossos familiares, gastaram tanto com instrução?’
JORNAL DA IMPRENÇA
‘Malformação’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 25/10/04
‘Deu no Consultor Jurídico desta quinta, 21/10, e espraiou-se pelos jornais Brasil afora esta notícia que realmente honra o Judiciário:
Meia volta
Gestantes de feto sem cérebro não podem mais abortar
por Luciana Nanci
As gestantes de feto anencefálico (com má formação cerebral) não estão mais autorizadas a abortar. O Supremo Tribunal Federal revogou, por 7 votos a 4, nesta quarta-feira (20/10), liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS). O julgamento foi um dos mais acalorados do ano, com direito a faíscas entre Marco Aurélio, Eros Grau e Joaquim Barbosa.
Votaram pela manutenção da liminar, que ficou em vigor durante quatro meses, os ministros Marco Aurélio (relator do caso), Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Foram contrários a ela, o presidente do STF, Nelson Jobim, Eros Grau, Ellen Gracie, Carlos Velloso, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Cezar Peluso. A liminar foi cassada em caráter ex nunc, ou seja, é inválida daqui em diante.
Janistraquis leu e chegou à conclusão de que os sete que derrubaram a liminar estão cobertos de razão: ‘Considerado, embora não seja ético revogar em causa própria, os juízes em questão precisam defender os seus valores hereditários!!!’
Precisão
O considerado leitor Álvaro Silva lia Notícia Agora, o espetacularmente vibrante matutino de Vitória (ES), sua cidade, quando encontrou, a lutar contra injusto ostracismo, a seguinte pérola do moderno jornalismo brasileiro:
Sob o título Casa assaltada na Enseada, lia-se:
Uma casa foi assaltada na tarde de ontem na Enseada do Suá (…) Dois bandidos TERIAM invadido o local (…) Os criminosos fugiram levando várias jóias.
Alvinho sentiu a temperatura subir mais do que moqueca na panela de barro:
Afinal, assaltaram ou não o raio da casa?!?!?! Pois ficamos sem saber se os bandidos invadiram ou TERIAM invadido. É por essas e outras que eu penso dez vezes antes de acusar os outros…
Abundam erros
O considerado leitor José, de Porto Alegre, ficou deveras e justamente impressionado com um ‘erramos’ publicado no caderno Vida, de Zero Hora:
Na reportagem sobre Isostretching, a declaração da fisioterapeuta Laura Reis foi ‘Ao corrigir a postura, o Isostretching melhora o encaixe dos ombros e da pelve e ameniza as curvaturas da coluna que estão aumentadas. Conseqüentemente as dores vão embora e o corpo fica também mais bonito’,
e não,
‘Ao corrigir a postura, o Isostretching diminui a barriga e melhora o encaixe dos ombros e da pelve. Os seios levantam e o corpo fica mais bonito’
como publicado na contracapa da última edição.
Janistraquis ficou perplexo: ‘Considerado, entre a publicação do texto e a correção os seios caíram!!!’
Bom, pelo menos as dores foram embora.
Bacafuzada
O considerado Antonio Marcello lia o Correio Braziliense às margens plácidas do Lago Paranoá, fez as contas e chegou às seguintes conclusões:
1- A leitura da seção Últimas do CB não é moleza;
2- Matemática é matéria realmente complicada;
3- A lingua chinesa (mandarim) também.
‘Todavia, 1 + 1 não dá 4, em língua nenhuma deste mundo!’, protesta o leitor, soterrado de bom senso.
Leiam, por favor:
Maratona de Pequim
Quatro participantes morrem durante prova
Pequim (China) – Dois corredores, um estudante universitário e um aposentado, morreram durante a Maratona Internacional de Pequim, segundo declaração da agência de notícias Xinhua, nesta segunda-feira.
Liu Hongbin, 20 anos, estudante da Universidade Jiaotong de Pequim, e um homem aposentado não-identificado caíram desacordados durante a corrida de domingo e faleceram no hospital.
Janistraquis garante, ó Marcello, que a bacafuzada nasceu da ausência de parêntese: ‘Se o redator tivesse escrito ‘dois corredores (um estudante universitário e um aposentado) morreram durante…’, etc. e tal, não teria confundido maratona com quarentena.’
Baixada carioca
O mestre Roldão Simas Filho, diretor de nossa sucursal em Brasília, de onde se avista o imponente edifício do Supremo Tribunal Federal, lia, excepcionalmente, a revista PETROS e ali encontrou dolorosa referência à Reduc como refinaria carioca, localizada em Duque de Caxias.
Roldão, que já perdeu a paciência, etc. e tal, desabafou:
Afinal encontrei o que esperava ver um dia: uma menção aos cariocas da Baixada Fluminense. Ou será que virou Baixada Carioca?
Impróprio
Para espanto de uns e indignação de outros, o Jornal de Brasília saiu com esta chamada de capa: VIVA – Brasil dá adeus a Fernando Sabino. VIVA é o título do caderno de ‘variedades culturais’ do ilustrado matutino e não havia, é lógico, intenção de insultar o ilustre morto, querido dos leitores de todo o país; o conjunto texto + logotipo ficou até bonito– ‘o que estragou foi a espetacular impropriedade editorial, né, considerado?!’, protestou Janistraquis.
A obra de arte pode ser admirada aqui.
Pole Position
Inacreditável notícia publicada pelo UOL Esporte:
Contra as estatísticas, Barrichello não admite superioridade de Schumacher
Em entrevista ao jornal alemão ‘Bild’, publicada neste domingo, Barrichello, vice-campeão mundial duas vezes, declara que ainda não se considera inferior a Schumacher, dono de sete títulos mundiais, um recorde na categoria.
‘Eu não vou desistir até reconhecer que Michael é melhor do que eu e, até agora, esse não é o caso’, afirmou o brasileiro, que estreou na Fórmula 1 em 1993 e, em 13 anos, conquistou nove vitórias.
Janistraquis, que não gosta de automobilismo mas sabe dirigir muito bem, deixou o queixo cair: ‘Considerado, tantos anos a respirar fumaça de metanol (onze anos e não treze) pelas pistas deste mundo enlouqueceram Rubinho…’, suspirou, sinceramente comovido com o estado mental do piloto.
Prefiro imaginar que tudo não tenha passado de falha na tradução do texto. É que Rubinho fala um inglês de oficina mecânica; deu entrevista a um jornalista de F-1, que apenas quebra o galho no idioma de Bush e raciocina como qualquer alemão depois de um prato de eisbein com dois litros de cerveja. Essa formidável trombada entre tais ‘barbeiros’ não poderia gerar nenhum pensamento lógico.
(Ou então, sob a influência de Duda Mendonça, Rubinho se deixou transformar em ícone da campanha para aumentar a nossa auto-estima; afinal, como lembram as mensagens da TV e do rádio, ‘o brasileiro não desiste nunca!!!’)
Trapalhadas de Bush
Nosso considerado Argemiro Ferreira, correspondente da Tribuna da Imprensa e do canal Globo News em NY, lançará hoje (21/10) em Belo Horizonte seu livro O Império Contra-Ataca: As guerras de George W. Bush, antes e depois do 11 de setembro. A festa começará às 19h30, no Teatro da Biblioteca Pública Luís de Bessa, Praça da Liberdade, s/n; telefone (31) 3261-1501.
O Império…, editado pela Paz e Terra, terá lançamento carioca na segunda-feira, 25/10, às 20 horas, na Livraria Argumento – Rua Dias Ferreira, 417, Leblon. Telefone (21) 2239-5294. No dia 27 de outubro, em São Paulo, a partir das 18h30, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional – Av. Paulista, 2073, telefone (11) 3170-4033.
Janistraquis garante que vai ler, porém anuncia que já gostou e recomenda.
Viva a palavra!
Empenhada em defender a honra da palavra nesta delicada zona em que se debate a imprensa, a Universidade Estácio de Sá vai reunir seus alunos para uma conversa com três veteranos do jornalismo: este humilde colunista, mais os mestres Augusto Nunes e Cícero Sandroni.
O papo está marcado para as 10 horas da manhã de terça-feira, 26/10, no Campus Tom Jobim: Avenida das Américas, 4.200, Centro Empresarial Barrashopping. O tema do encontro, A Palavra no Jornalismo, é da lavra desse professor de todos nós, Deonísio da Silva.
Nota dez
Uma excelente análise do que significa a Febre do Orkut é feita pelo sociólogo Gílson Caroni Filho, professor-titular da Facha, em artigo no Jornal do Brasil:
(…)Exacerbando as tendências comportamentais da sociedade contemporânea, o Orkut acaba por produzir o oposto do que promete: a capacidade de resgatar e ampliar o círculo de amizades. Na verdade, o que se observa é uma compulsividade acumulativa. O que era um processo envolvendo concordância de sentimentos, apreço pelo outro, relação reinventada diariamente, torna-se, no universo do Google, uma mera operação de adição. Ostentação curricular de prestígio social. Competitividade deslavada. Com certificado de qualidade que vem sob a forma de testimonial. Nunca a solidão agregou tanta euforia. E uma fantástica coleção de retratos. A impossibilidade constitutiva de se ter mais de 100 amigos é um detalhe a ser ignorado. Deveriam ter aprendido com o Show de Truman que o horizonte termina na parede(…)
A íntegra está aqui.
Errei, sim!
‘CAXIAS NA FORCA – Jamais revelei, mas é chegada a hora, e aqui o faço, que meu secretário dirigiu, em tempos idos, a revista A Vaca e o Brejo, na aprazível estância de Garanhuns(PE). O maior orgulho daquele sucesso editorial do sertão era, precisamente, a seção Ferro em Nós, equivalente nordestino do Erramos. A Redação inteira cultivava a seção como uma espécie de baluarte em tempos democraticamente obscuros.
Um dia, o coronel Horácio Fervente, dono da revista, adentrou com a espuma do ódio a lhe despencar dos beiços. ‘Cambada, está proibida esta merda!’, gritou o dono. E mandou suspender a seção Ferro em Nós. Janistraquis e equipe amargaram a humilhação, meteram-se em vexame e verecúndia, mas, infelizmente, o coronel tinha razão. A errata daquele número da revista dizia: ‘Diferentemente do que foi publicado na edição passada, Joaquim José da Silva Xavier não é o Duque de Caxias.’ (novembro de 1988)’’
MEMÓRIA / FERNANDO SABINO
‘E na bateria…’, copyright O Globo, 21/10/04
‘Fernando Sabino foi um dos amigos que herdei do meu pai. Tínhamos uma coisa em comum: ele também, se lhe dessem a escolha a tempo, preferiria ter sido músico de jazz. Chegamos a nos apresentar juntos, uma vez. A Traditional Jazz Band de São Paulo teve a temeridade de nos convidar para tocar com eles, Sabino na bateria e eu no sax, e fomos maravilhosos. Pelo menos na nossa apreciação mútua.
Outra vez, assisti a um golpe de teatro do Sabino. Era uma das primeiras edições da incrível Jornada Literária de Passo Fundo, organizada pela ainda mais incrível Tania Rösing, que contara com a ajuda do Josué Guimarães para trazer do centro do país para o interiorzão do Rio Grande do Sul um respeitável time literário: Sabino, Millôr, Otto Lara, Orígenes Lessa. Os quatro, mais eu e o Josué, sentados atrás de uma longa mesa, enfrentando um ginásio cheio de professoras de português. Quando foi a sua vez de falar, o Sabino declarou que não podia continuar ali, que ali não era o seu lugar, que estava se sentindo desconfortável e inconformado, e que o desculpassem mas ia embora. E levantou-se.
Agitação na platéia. O que teria havido? Qual era o problema? O Sabino só foi embora da sua cadeira. Para alívio e depois delírio das professoras, deu a volta na mesa e levou o microfone para a frente do palco, seu lugar, onde começou a falar com o desembaraço e o humor que – junto com a simpatia e o físico de ex-nadador – faziam dele o escritor brasileiro com mais jeito para a celebridade, até o seu recolhimento voluntário. De certa forma, ele inaugurou o que a Jornada de Passo Fundo viria ser depois, um show de literatura. Foi a sua primeira estrela.
Nosso relacionamento era ideal: eu falava pouco e ele não ouvia. Eu tinha lido ‘O encontro marcado’ antes de conhecê-lo. Lido e relido. Não entendia muito bem a religiosidade do Sabino, dele e dos outros mineiros, e só mais tarde me dei conta de que um livro como ‘O encontro marcado’ seria impossível sem as convicções e as dúvidas religiosas do autor, sem as questões do pecado e da redenção pessoal camufladas como a escolha ética de uma geração. Pois, para religiosos ou não, foi o livro de uma geração.
Na improvável hipótese do Sabino e do Jacques Derrida terem se cruzado num engarrafamento de trânsito depois da morte, esse pode ter sido um dos seus assuntos: a permanência do imperativo ético mesmo quando nada o sustenta, nem a fé religiosa, no caso do Sabino, nem todos os textos desconstruídos até a insignificância moral pelo Derrida. Mas desconfio que os dois não se entenderiam. Se existiu um escritor que nunca quis dizer outra coisa nos seus textos senão o que dizia magistralmente, esse foi o Fernando Sabino.’
Carlos Heitor Cony
‘Paixão segundo Sabino’, copyright Folha de S. Paulo, 20/10/04
‘Boa a repercussão da morte de Fernando Sabino na imprensa. Mais que merecida. Contudo, na maioria das notas publicadas, houve a reincidência de uma crítica profundamente injusta ao fato de Sabino ter escrito um livro cujo personagem principal era a ex-ministra Zélia Cardoso de Melo.
Na ocasião, atribuíram ao escritor a intenção de ganhar dinheiro com um tema badalado. Acontece que os direitos autorais do livro foram doados a uma entidade, da mesma forma que o Prêmio Machado de Assis, que Sabino recebeu pelo conjunto de sua obra, em 1999, também foi doado a uma associação que cuida, se não estou enganado, do menor carente.
O que magoou Sabino e seus amigos não foi isso. A imprensa em geral, e a crítica em especial, malharam o livro por ter dado dimensão literária ao caso de amor vivido pela ex-ministra, já nos estertores do governo Collor.
Nada mais injusto e obtuso. Sabino sentiu naquele drama matéria de romance da vida real, do cotidiano que todos vivemos e no qual ele sempre se inspirou para sua obra de romancista e cronista. Nenhum propósito de bajulação. Quem conheceu Sabino ficou perplexo com a insinuação descabida, levantada por alguns críticos e resenhistas.
Muito menos uma defesa da gestão de Zélia no Ministério da Fazenda, que incluiria a defesa do confisco da poupança que tanto irritou o país inteiro. O livro de Sabino tem como ponto de partida e chegada a história da moça solteira e bonita que se apaixona por um homem mais idoso e casado. E paga um preço bem alto pela sua paixão. Paixão que pode ser vivida por uma comerciária, uma secretária, uma recepcionista e, por que não?, por uma ministra de Estado.
Sabino trairia a sua condição de romancista se, ao captar a matéria que a vida nacional lhe oferecia, deixasse de escrever o que sentia e queria. E o fez, como sempre, com alta qualidade literária.’