O documentário dramatizado sobre a cantora Elis Regina, exibido pela Rede Globo em dezembro, acende um holofote sobre a formatação de programas jornalísticos. O exemplo mostra que a busca desenfreada por novos formatos na televisão pode levar a conseqüências cômicas, trágicas, brilhantes ou enfadonhas. É o que se vê desde que os programas de rádio foram transportados para a telinha e tiveram suas épocas de ouro até desapareceram das grades de programação para, depois de alguns anos, ressurgirem em remakes travestidos de novidade.
Humorísticos, programas de auditório e novelas são alguns dos gêneros mais copiados do passado. As tevês buscam as fórmulas de programas já consagrados para tentar obter o mesmo sucesso com a nova geração e também atrair os saudosos telespectadores. Quem assiste a Praça é Nossa (SBT) revive a original Praça da Alegria, fórmula já consagrada há décadas.
Outros gêneros rentáveis também criados no rádio, como as soap operas (radionovelas), os programas de perguntas & respostas e o noticiário, também foram simplesmente transpostos ou adaptados para a televisão. Por isso, dentro dos velhos gêneros, o que importa é a criação dos formatos, ou seja, a forma como o gênero de um programa de TV é apresentado ao telespectador. Isso pode ser comparado a uma indústria que tem seus produtos à venda em várias embalagens.
O desenvolvimento e a exportação dos formatos de TV no mundo tem sido um fenômeno extraordinário dos últimos anos em nível mundial. A cada dia, é maior o número de canais que promovem a troca imediata de programas que não funcionam por outros mais interessantes, o que provoca uma concorrência feroz entre os formatos. As televisões de todo o mundo procuram um formato ‘salvador da pátria’ que resolva o problema da audiência para toda a temporada da programação. Os formatos são a base do êxito, mas muitas vezes é difícil distinguir o essencial do secundário para apontar qual é o motivo do triunfo de um e porque ele é diferente do outro.
Aura santa
Os documentários ficaram ilesos por um bom tempo dessa febre de novos formatos simplesmente porque o gênero tem uma linguagem própria consolidada internacionalmente. Mas essa cobrança chegou ao documentário de televisão assim que a fórmula do infortenimento começou a dominar a linguagem jornalística. Os profissionais de televisão especializados em documentários hoje se vêem com a corda no pescoço, a qual aperta a duração dos programas e obriga a testar formatos estapafúrdios dentro dos documentários para descobrir novos gêneros televisivos em razão da audiência. Mas a resistência continua.
Equipes brilhantes de jornalistas e radialistas, normalmente aqueles que mais se destacam na produção, na pesquisa e na reportagem investigativa, na reportagem cinematográfica, no áudio, na iluminação, na edição de texto e imagem, são pinçados de dentro das emissoras para trabalharem na produção de documentários. O gênero é tratado com uma aura santa dentro das emissoras. A história das emissoras abertas brasileiras está cheia de bons exemplos.
Jorge Pontual e Tereza Cavaliero são referências na direção e edição de dezenas de produções de cunho investigativo e informativo no Globo Repórter, um dos mais antigos e bem estruturados núcleos de documentários das emissoras comerciais internacionais. Essa dedicação ao gênero rendeu adeptos entre suas afiliadas, a exemplo da TV Campinas, interior de São Paulo, que se lançou às produções de documentários ganhando, inclusive, espaço no horário nobre da cabeça-de-rede para exibição nacional de suas produções.
A TV Cultura, de São Paulo, projetou seu núcleo de documentários, vários deles sob a direção de Cristina Fonseca. Cacá Vicalvi, deu visibilidade internacional à Cultura com documentários como Laços de Menina e Estrada das Lágrimas, e o documentário sobre o MASP, produzido pela mesma rede educativa, poderia ter sido morto por um repórter cinematográfico que não tivesse a sensibilidade de Eliseu Ferreira, que fez as imagens do mais famoso museu de arte do Brasil ganharem vida e movimento na tela da tevê. Até as emissoras que não tiveram no documentário seu principal atrativo, montaram equipes, lapidaram temas e superaram limitações técnicas para creditar seus logotipos como o SBT Repórter e a extinta Manchete. A Band também demonstrou que valoriza o gênero ao contratar Roberto Cabrini para aplicar a linguagem documental em seu jornalismo diário. O Repórter Record também demonstra a importância que toda nova emissora precisa dar a esse gênero de programa jornalístico para ganhar credibilidade.
Temas da história ou da atualidade, assuntos especializados ou do cotidiano, podem e devem ser trabalhados pelas emissoras aplicando a linguagem documental. Não é só para garantir audiência. É para garantir a credibilidade do seu jornalismo. No mundo todo, os documentários carregam a bandeira do prestígio de suas emissoras e demonstram a qualidade dos programas do departamento de telejornalismo. Raymond Carroll escreveu um ensaio publicado no livro TV Genres (Greenwood Press, 1985) no qual afirma que ‘o documentário é a antítese da ficção, da fabricação de fantasia’. Se o gênero está devidamente classificado na categoria de programas informativos, faz sentido. Se cai para ficção, a história é outra.
Os temas abordados pelos documentários apresentam uma certa importância histórica, social, política, científica ou econômica e também aprofundam assuntos do cotidiano, vistos por um olhar crítico. Mais um gênero com raízes históricas no cinema, o documentário saiu das salas de exibição para a televisão com o mesmo respeito obtido pelos documentários produzidos durante a II Guerra, quando cumpriram um importante papel informativo e também ideológico.
A seriedade assumida pelo gênero documentário permaneceu com a intenção de levar ao telespectador uma visão do mundo, da realidade de outros países e de outras culturas. A necessidade de pesquisa, de aprofundamento do tema, através de entrevistas e de produção de imagens em diversos locais, eleva o orçamento do gênero. Por isso, nem todas as redes produzem documentários. Uma alternativa é a compra de trabalhos importados de países que produzem com a intenção de servir ao mercado internacional, como é o caso das famosas séries de documentários da BBC.
Formatos do documentário
A proposta de todos os documentários é buscar o máximo de informações sobre um tema. Por isso sua duração é maior do que as reportagens apresentadas pelos telejornais. O mercado internacional de documentários desenvolve produções com duração média de 30 a 60 minutos. No Brasil, os programas do gênero inicialmente tinham a duração média de 30 minutos, como o Globo Repórter (Globo) ou SBT Repórter (SBT). Mas houve uma significativa redução da duração, o que desvirtua o caráter de documentário, merecendo apenas o crédito de grande reportagem. As redes alegam que o programa fica cansativo e a audiência não está acostumada a assistir o mesmo assunto durante muito tempo. Mas a rede Cultura, mais preocupada com a informação do que com a audiência, ainda é fiel ao conceito básico de um documentário, que é ter duração suficiente para tentar mostrar todos os ângulos de um assunto.
A produção de um documentário pode apresentar muitos formatos dentro do próprio gênero. A abordagem de um assunto pode utilizar videoclips, entrevistas, debates, narração em off, com o objetivo de não tornar o programa cansativo, e apresentar de forma variada as informações colhidas de várias fontes. O diretor da produção é quem dá o ritmo. Uma relação de confiança entre entrevistado e diretor garante a concessão de entrevistas prioritárias e inéditas para compor o tema.
O gênero documentário passa a ser também um formato quando utilizado por outros gêneros. Há experiências de apropriação do formato documentário pelo gênero humorístico. Casseta & Planeta e Brasil Legal, ambos da rede Globo, alternam humor e realidade no formato documentário. O gênero esportivo e até os programas políticos partidários também podem ser roteirizados no formato documentário sem perderem suas características ou, às vezes, inovam na abordagem e acertam na fórmula.
Morte anunciada
As celebridades têm espaço garantido na tevê e não é raro as emissoras deixarem pronto o documentário da vida de famosos que já estão prestes a ‘bater as botas’. Equipes de edição e documentação são mobilizadas dentro das emissoras para pesquisarem nos arquivos de fitas todo o material que será editado para exibição, a qualquer hora em que for anunciada a morte de uma personalidade que já se encontra em fase terminal.
Todos os famosos que já morreram ou aqueles que ainda esperam vida longa, mas sabem que um dia serão chamados para a morada da paz, estão sujeitos a serem retratados pelos documentários. A esses, é grande o risco de um assassinato da sua biografia. Isso pode ocorrer por vários motivos. O mais comum é para buscar mais audiência. Em nome dela, acrescentam-se ou excluem-se dados.
O exemplo mais recente foi a produção do programa Por toda a minha vida, da cantora Elis Regina, exibido pela Rede Globo no dia 28 de dezembro de 2006. Evidentemente, não marcou nenhum avanço para o gênero porque se o público não sabe qual a diferença entre os departamentos de Jornalismo e de Produção, muito menos sobre um documentário e um ‘docudrama’ proposto pela direção do programa. Mas que história é essa de ‘docudrama’? Certamente, nada tem a ver com aquela confusão de formatos apresentando a vida de uma das mais famosas cantoras de MPB do Brasil.
Docudrama: o que é isso?
A fusão de gêneros na televisão dá origem aos mais variados programas que, se forem aceitos pelo público, passam a identificar uma produção com características próprias e geram uma nova classificação. O gênero documentário, da categoria informação, tem uma fórmula para passar credibilidade e tratar de assuntos de interesse do público. O gênero documentário é formatado, normalmente, com entrevistas e imagens com narração em off.
Quando o documentário se associa ao gênero teledramaturgia, da categoria Entretenimento, para justificar um argumento e ou ilustrar uma história real, o programa apresenta um novo gênero classificado como docudrama. Em suma, é um documentário dramatizado com personagens encenando histórias reais, reconstituindo crimes, interpretando ações de personalidades ou protagonizando um assunto de maneira dramática.
O gênero docudrama surgiu na esteira dos seriados que fizeram sucesso com o tema policial. Crimes hediondos, desastres, acidentes, mortes, contravenções penais ou ações policiais de sucesso são alguns dos mais requisitados assuntos dos roteiros dos programas do gênero docudrama. Nesse sentido, os formatos séries e os telejornais segmentados nos assuntos policiais dão ao docudrama um espaço garantido em horário nobre nas programações das TVs voltadas para um público mais popular.
O radialista Gil Gomes implementou esse formato no rádio, levou para a televisão e ganhou vários seguidores com uma fachada mais contemporânea, entre eles, o repórter Marcelo Rezende. Próximo desse formato radiofônico está o apavorante Linha Direta (Globo), que apresenta casos reais reconstituídos. Pavor é o que não falta na fórmula, pois o docudrama é uma oportunidade para o apresentador em estúdio realçar o ponto alto do programa – que enfoca sempre o drama vivido por cidadãos comuns e pode fazer parte do cotidiano das pessoas.
O que mais apavora é que o docudrama mantém a audiência cativa nos formatos seriados e também é utilizado pelo gênero Religioso para convencer a audiência a se arrepender de pecados apresentados pelos protagonistas das histórias de vida perversas. Em muitas produções, o docudrama apresenta-se como uma prestação de serviços, como no caso de enfocar histórias de pessoas desaparecidas, por exemplo. Não foi o caso de Elis Regina, pois já é sabida a causa mortis. A fórmula pode ser aplicada para fins não sensacionalistas. O docudrama pode ser utilizado por programas educativos e instrutivos ou com o objetivo de apresentar soluções para problemas cotidianos.
Propostas inovadoras
O diretor do programa sobre a vida de Elis Regina, exibido pela Globo na última semana de dezembro, em horário nobre, comentou alguns problemas e falou para a imprensa sobre o interesse da emissora na ‘busca da audiência’. Nada novo para uma emissora comercial. Mas camufla uma formatação usada de maneira inadequada, confusa, que não conquistou nem mesmo os entrevistados que protagonizaram a história e não deram depoimentos e, por isso, não informou nem esclareceu o assunto.
O docudrama virou novela, com pinceladas de minissérie e sem depoimentos fundamentais que sustentariam o ‘documento’. Frisamos aqui a importância da pesquisa em novos formatos porque não é por acaso que a televisão norte-americana é a que mais desenvolveu sua indústria de programas. Porém, quem experimenta corre o risco de fracasso e o índice de audiência não garante a aprovação e repetição da fórmula, porém dá indicativos para novas experiências.
Exemplos de sucesso em novos formatos não são poucos. Sempre apresentam um domínio do jogo dos elementos do entretenimento na televisão. Mas precisa ser brilhantemente trabalhado pela produção e direção, senão vira aquilo lá que virou o programa sobre a vida de Elis Regina, retratada por uma overdose de formatos que entorpeceu o público que assiste televisão naquele horário. Aliás, quinta-feira à noite passa o quê mesmo naquela emissora? Uma sitcom. Para um viciado em tevê tanto faz ver um documentário, um drama ou uma comédia e para a emissora, se der audiência, também.
Um documentário sobre o Chico Xavier ou o Padre Cícero talvez desse a mesma audiência no horário, se tivesse a mesma divulgação que teve o ‘docudrama’ de Elis, que pode ser assistido acessando o site www.youtube.com. Índice de audiência não significa a compreensão e aceitação do tema e do formato de um programa único. Seria ótimo se as televisões também valorizassem a pesquisa qualitativa da audiência e não apenas a pesquisa quantitativa que mostra o índice com o número de quantos telespectadores assistiram ao programa.
A pesquisa qualitativa daria mais fôlego para investidas em propostas inovadoras, visando à revolução imposta pela TV digital e interativa que ainda engatinha para alcançar novos formatos. Quem viver, verá. Quem morrer, será documentado, talvez, sem dramas.
******
Doutor em Comunicação, professor de Televisão da UFRN e autor de ‘Gêneros e Formatos na Televisão Brasileira’ (Ed. Summus)