Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Luis Fernando Verissimo

‘Oque é irrelevante para um pode não ser irrelevante para outro, e vá você convencer alguém alérgico a mosquito que uma picadinha não tem a menor importância. Nada mais subjetivo do que a importância relativa das coisas. Mas sempre desconfio quando alguma coisa ganha uma relevância que nada razoável justifica. Por exemplo: numa escala de importância para a nação e o destino dos seus cidadãos, não consigo pensar em algo menos relevante do que o gosto do Duda Mendonça por rinha de galo.

Talvez seja uma falha de avaliação minha. Talvez o fato mereça, sim, todo o espaço e o verbo gastos com ele e eu é que não esteja entendendo o seu significado maior. Mas como eu nunca entendi o significado maior do Duda Mendonça na vida nacional, fica difícil entender o significado maior dos seus galos. Ou você acredita no mito que foi o marquetchim que elegeu o Lula (os mitos sobre o poder da propaganda são criados pela própria propaganda, o que só prova o seu poder de vender mitos), e que dessa maneira o Duda flagrado na rinha de certa forma conspurca o governo na sua origem, pois é um pecado imperdoável contra as relações públicas, ou você só pode desconfiar de tanto barulho por tanta irrelevância.

Nossa história política também autoriza suspeitas sombrias. Temos uma longa tradição de irrelevâncias transformadas em fato do dia e de moralismo cenográfico, para desestabilizar governos ou mascarar o realmente relevante. O significado que merece atenção no flagra do Duda é o da ação da Polícia Federal, que para ser coerente agora teria que interditar todos os terreiros de umbanda do país. Como o realmente relevante, e assustador, na questão das fotos que eram ou não eram do Herzog foi aquela primeira, inacreditável, nota do encarregado de comunicações do Exército, tentando reescrever a história.

O realmente relevante, e escandaloso para quem procura escândalos, no governo Lula é o fato de o primeiro ano do primeiro governo de origem popular no Brasil ter coincidido com o ano em que os banqueiros lucraram como nunca no país. Mas esta é outra rinha de galos, e não tem muita graça.’



João Ubaldo Ribeiro

‘O Rinha Zero vai dar certo’, copyright O Globo, 31/10/2004

‘Ultimamente, como devem ter notado os pacientíssimos leitores que visitam este espaço, dei para me preocupar com os entrelinhistas, o pessoal que lê nas entrelinhas. Espero tratar-se de um surto passageiro, que vá embora depois do segundo turno eleitoral. O entrelinhismo, afinal, é uma postura filosófica ou metodológica arraigada em muita gente e, se quiser continuar a escrever e publicar, vou ter que conviver com ele o resto da vida. Mas hoje, particularmente, faço questão de deixar claro aos entrelinhistas que, além de não ter recebido oferta de suborno nenhuma, não posso ser acusado de defensor das brigas de galo e Itaparica está aí, para não me deixar mentir.

Eu não devia falar, porque as brigas de galo, assim como o jogo do bicho, são práticas secretíssimas e raríssimas (diz aqui que a rinha na qual foi preso Duda Mendonça funcionava havia apenas 17 anos, não dava ainda para ninguém suspeitar de nada), mas, em Itaparica, há brigas de galo. Na última vez em que me manifestei contra elas, no Mercado, fui vaiado. Meus conterrâneos sabem que eu não suporto briga de galo e jamais botei os pés na rinha da… Ia dizer o nome do lugar onde fica a rinha mais popular, mas não sou dedo-duro, ninguém sabe onde é e não serei eu quem fará a revelação.

E mais, desfiro um golpe final. O próprio Duda Mendonça, que há dé-cadas não vejo em pessoa, foi, muito brevemente, meu aluno e, depois disso, chegamos a trabalhar juntos, ainda mais brevemente. Nessa época, ele teve a oportunidade direta de expressar sua impaciência em relação aos comentários que uma vez lhe fiz, sobre brigas de galo. Ou seja, igual a muita gente pelo mundo afora, ele gosta de brigas de galo e a discussão, digamos, filosófica, sobre o assunto redundaria inútil – nem eu iria convencê-lo, nem ele a mim, de maneira que não discutimos e continuamos no trato amistoso que sempre tivemos, até que a vida nos fez sumir um do outro, a não ser à distância.

Os aspectos jurídicos das brigas de galo são outra coisa que também não vou discutir. As brigas são proibidas e acabou-se, dura lex, sed lex . O que quero ver é se dá para abstrair esses aspectos da questão, para examinar somente o que aconteceu no tal episódio. Segundo li, foram destacadas dezenas de policiais, todos de colete à prova de balas, a fim de desbaratar a temível organização criminosa. Provavelmente, em termos técnicos, a operação estava correta, mas é assim que se costuma proceder, no Brasil? É assim que vemos tratados os criminosos de todos os tipos, inclusive os chamados de colarinho branco, que assolam a nossa vida?

Não, claro que não é assim, estamos fartos de saber que não é assim. Numa rinha que funciona há 17 anos, em local mais do que conhecido, está presente o marqueteiro do governo, arma-se essa presepada toda e se prende o dito marqueteiro, em mise- em-scène digna da captura de pelo menos o ajudante-de-ordens de Bin Laden. Que novidade é essa, agora as rinhas de galo são prioridade do governo, o Rinha Zero substituirá o Fome Zero, já que este não deu certo, nem vai dar? Trata-se de uma ação inserida no contexto maior da proteção aos animais, que agora o Brasil converte em programa fundamental do governo? É bem verdade que vivemos num país onde é ‘mais negócio’ matar o fiscal do Ibama que nos pegar matando o jacaré do que ir preso pelo assassinato do jacaré. Matar bicho é crime inafiançável, cana dura. E matar gente é moleza, tanto assim que o método mais fácil de se livrar de um desafeto no Brasil e encher e cara e atropelá-lo. Se alguns poucos requisitos forem satisfeitos, o sujeito é solto imediatamente e ainda processa a família do defunto por danos morais. Horrível pensar isso, mas alguém falou no boteco e é verdade: se o Bateau mouche estivesse cheio de tatus, provavelmente os responsáveis pelo desastre teriam sido presos e punidos exemplarmente, mas, como era só gente, deu no que deu.

Sério mesmo, queridos leitores, entrelinhistas ou não, o que estou discutindo não é o problema de atividades como as dos realizadores de brigas de galos, rodeios, vaquejadas, lutas de cães, canários ou peixes. Não se trata do que o homem faz com ou contra os animais. Isso rende anos de discussão apaixonada e até brigas sérias e não pretendo me meter nelas, pelo menos agora. O que quis foi chamar a atenção para a singularidade dessa estranha operação. Como disse antes, pode estar certíssima, admito até que provavelmente me alinharia com os que acham que devia ser sempre assim, mas não é normal entre nós, isso a gente sabe, teve toda a cara de uma ação especial, casuística.

Ou seja, claro que há alguma coisa que não sabemos, nessa história to-da. Boatos e versões hão de estar correndo soltos em rodas de conversa pelo Brasil afora. A maior parte fazendo a velha pergunta, que, para me exibir mesmo, lembro em latim dos tempos da Faculdade: Cui prodest ? A quem aproveita, quem sai ganhando? Não sei, gostaria de saber. Devo ser muito burro, aliás, porque não faço a menor idéia. De repente essa armação toda, um escarcéu federal? É, deve ser um programa novo do governo, deve ser o Rinha Zero mesmo, nunca se sabe, o mundo é cheio de novidades.

Fiquei remoendo este assunto, que reconheço já estar velho, e acabei por perder espaço para tratar do segundo turno, especialmente na poderosa cidade de São Paulo, onde, por sinal, Duda assessorou d. Marta. Não tive nem tempo de comentar a propaganda do PT, ora pactuado com o dr. Maluf ‘pelo bem de São Paulo’. Pois é, nunca se diga ‘dessa água não beberei’ ou ‘já vi tudo o que tinha que ver’. E, aconteça o que acontecer, ao menos que seja mesmo pelo bem de São Paulo. Pelo bem de todos os brasileiros, aliás, Deus é grande e uma hora dessas há de nos acudir.’



Tales Alvarenga

‘Menos hipocrisia, por favor’, copyright Veja, 2/11/2004

‘‘Só mesmo numa cidade como o Rio de Janeiro, na qual o narcotráfico e os tiroteios entre quadrilhas não existem mais, é concebível deslocar quarenta policiais para prender amantes de briga de galo.’

Se está na lei que promover briga de galo é crime, e um crime que dá cadeia, cumpra-se a lei. Outra coisa é transformar o publicitário Duda Mendonça num sujeito rude, sem bons sentimentos e ainda por cima criminoso porque foi flagrado e preso numa rinha no Rio de Janeiro pela Polícia Federal.

Não gosto de rinhas, mas também não gosto de galos. Um galo a menos no mundo não prejudica ninguém. Aliás, a supressão de um desses galináceos cheios de testosterona traz a vantagem de calar um daqueles despertadores ambulantes que nos acordam de madrugada.

Não gosto de galos nem de rinhas, mas gosto de touradas e lutas de boxe, o que não me transforma num ser humano cruel, muito menos criminoso. Até aqui estou falando de preferências pessoais. Do ponto de vista dos princípios, o repentino horror demonstrado às brigas de galo é mais esquisito ainda.

Se Duda foi preso porque participava de um ritual de crueldade contra galos, o que dizer de criadores de frangos ou donos de frigoríficos, como o ministro Luiz Fernando Furlan, da Sadia, que deixam as aves presas a vida inteira em cubículos e no fim as executam para o deleite carnal de milhões de brasileiros?

Tem muita gente boa que põe passarinho em gaiola. Na sociedade dos homens, só vai para a gaiola quem é condenado pela Justiça por algum seriíssimo ato anti-social. Mas, como bicho não é gente (com exceção dos galos, ao que tudo indica), ninguém chama a polícia porque o vizinho mantém um canário preso na varanda. Engordar porcos até aquele limite antinatural que conhecemos também é uma crueldade, mas não incomoda ninguém. Ao contrário. Você já viu alguém envergonhado de comprar bacon no supermercado?

Não vamos continuar com a lista porque ela é muito longa. Sem muito esforço retórico, eu incluiria até mesmo ratos na relação. Os laboratórios químicos incluem. Conhecendo a força dos lobbies de proteção aos animais, os fabricantes de remédios se protegem informando que na produção de suas drogas não usam métodos cruéis contra cobaias. Agora, cá entre nós. Você sabe que os franceses alimentam gansos à força, por meio de funis. Os gansos são entupidos de milho até seu fígado ficar deformado, enorme. Esses fígados inchados se transformam depois numa das glórias da culinária francesa. Pois bem: atire a primeira pedra em Duda Mendonça aquele que nunca comeu patê de fígado de ganso — por princípio, é claro.

Duda Mendonça não foi preso apenas por crueldade contra animais. Também pesa contra ele a acusação de formação de quadrilha. Só mesmo numa cidade como o Rio de Janeiro, na qual o narcotráfico foi vencido, os tiroteios entre quadrilhas não acontecem mais e os arrastões na praia são manifestações há muito dominadas pelas autoridades, é concebível deslocar quarenta policiais para dar uma batida em Jacarepaguá com o objetivo de fechar uma rinha.

Sou um defensor do cumprimento das leis. Mas as leis devem refletir alguma lógica. Então, de duas, uma: ou se muda a lei para liberar as rinhas ou se fecham todos os matadouros e zoológicos do país. As crianças podem achar muita graça nos macacos. Mas os macacos não acham graça nenhuma nas crianças. Em resumo, menos hipocrisia, por favor.’



Carlos Heitor Cony

‘Canoa furada’, copyright Folha de S. Paulo, 30/10/2004

‘Desvio de formação e gosto, tenho uma atração fatal: a de embarcar em canoas furadas. Detesto chutar cachorro atropelado e, se não dou razão aos crucificados, tenho simpatia e respeito por eles.

É o caso de Duda de Mendonça, apontado como um sanguinário, um Jack Estripador, um bandoleiro do asfalto, formador de quadrilha como Al Capone, um Fernandinho Beira-Mar. Vamos com calma.

Não aprecio o seu amor pelas rinhas de galo, como não aprecio o boxe, as touradas e os rodeios, onde os promotores põem mostarda no intestino dos cavalos para irritá-los e obter espetáculos mais emocionantes.

Se dependesse de mim, tirante aqueles dias das mulheres, nada que derrame sangue mereceria ser encarado com naturalidade. Nem mesmo as corridas de cavalo, que são incruentas, mas não deixam de explorar animais -e a sociedade que os protege nem está aí para protestar contra os confinamentos, a vida artificial que lhes é imposta.

Não abençôo Duda pelo gosto, mas daí a considerá-lo um criminoso, um tarado, vai uma infinita distância. Uma luta de boxe, esporte considerado ‘nobre’ pelos entendidos, freqüentemente derrama sangue, causa mortes e aleijões e requer uma disciplina, um aprendizado técnico em que a finalidade é colocar o adversário estendido no chão, sem sentidos, momentaneamente ou para sempre.

Bem, a briga de galos é ilegal. Que Duda responda, mas dentro dos limites, pela infração à lei. Lei menor, que preocupou um Jânio Quadros, que também não gostava de concurso de miss. Lei garantida por mais de 40 elementos da Polícia Federal, a mesma que nem está aí para impedir a entrada de armas e de drogas produzidas lá fora e que aqui entram aos borbotões,

A eficiência com que a PF atua em casos que pretendem desmoralizar candidatos em época de eleição, além de rotineira, torna-se suspeita de estar sendo manobrada por interesses partidários.’

***

‘Torcer errado’, copyright Folha de S. Paulo, 1/11/2004

‘‘Quero ver sangue!’ Num filme dos anos 60, há uma luta de boxe e um dos assistentes, mamando um charuto apagado, dá esse grito em direção ao ringue. Não sei se foi para fazer a vontade do cara, um dos pugilistas de repente começa a sangrar no rosto. Com aquela luva que parece uma pata com elefantíase, o desgraçado tira o sangue dos olhos. Logo recebe outro soco e cai. O juiz conta até dez, levanta o braço do vencedor, a platéia urra de gozo.

Bem, a diferença entre uma luta de boxe e uma briga de galos é evidente: o pugilista entra no ringue porque quer e, vencendo ou perdendo, para ganhar dinheiro. O galo não é consultado, e quem ganha dinheiro não é ele. Quem ganha é o dono e o apostador.

Mas a violência é a mesma. Bem ou mal, ver o sangue espirrar é um espetáculo que tem consumidores. E não apenas no esporte e na guerra. No dia-a-dia do jornalismo, quando aparece um assunto que causa estupor nos leitores, não basta o relato isento e profissional do caso. Há sempre um grito que vem da platéia: ‘Quero ver sangue!’.

Criticar Bush ou Cachoeira, condenando suas atitudes e práticas, é pouco. Provar que eles não merecem o nosso respeito é insuficiente. É preciso sangrá-los, dar para beber a alguns leitores o sangue dos vilões, sejam eles permanentes ou eventuais, autênticos ou equivocados.

De minha parte, não vejo muita diferença entre vilão e herói. Não aprecio Bush nem estou muito a par do malefício que Cachoeira anda fazendo por aí. Dou de barato que estão longe de serem flores que se cheire.

Aprendi nos filmes de faroeste que o vilão é o herói do outro lado. E, como desconfio dos lados, nunca sei exatamente quem é quem. Já me surpreendi torcendo pelo bandido, achando que o mocinho é um chato. Mas quando o sangue espirra, não dou razão nem a um nem a outro. E, geralmente, sinto-me com vergonha por ter torcido errado.’