Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Fabiana Murer e o direito de amarelar

O Brasil é um país onde se pode fracassar sossegado. Isso porque a mestiçagem abraça e inclui o derrotado, e com isso a cordialidade substitui a competitividade, conforme se pode inferir das pesquisas de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Visto que a cultura mestiça mitiga a rivalidade, em caso de fracasso a reação costuma ser não de revolta belicosa, mas de tristeza lusitana, como foi em 50, diante da derrota da seleção brasileira para o Uruguai. Mas os tempos são outros. Hoje há, no ar, uma mídia colonizada, internet globalizada e redes sociais. Estas são como shoppings: parecidas no mundo inteiro, porque têm padrão made in USA. E, nos EUA, a humanidade é dividida entre vencedores e perdedores, sendo estes últimos tratados como escória.

Nas Olimpíadas, os blogs esportivos, com raras exceções, seguiram a cartilha: até pouparam Diego Hypólito porque o Brasil começou excepcionalmente bem a jornada, com três medalhas, sendo uma de ouro; mas com a seca que se seguiu e a frustração dela decorrente, explodiram em fúria ante o vacilo de Fabiana Murer, que temeu machucar-se no salto de sua vida. “Vento amarelão”, “pipoqueira” e por pouco um “fracassada” foram alguns dos adjetivos que os blogs esportivos destinaram a Fabiana, campeã mundial no salto com vara. As TVs foram mais delicadas, porque preenchem seu tempo com imagens e dispensam o opinionismo cruel dos blogueiros e redes sociais. Seria esperar demais uma reação mais à brasileira, com um silêncio respeitoso ou uma mensagem de apoio? Jornalistas não tremem? Nunca deixaram de abordar assuntos que sabem desagradar à empresa em que atuam?

Epítetos generosos

Exceção à regra, Rui Barbosa Neto, do UOL, fez um post defendendo Fabiana com argumentos técnicos (várias atletas tiveram tempos abaixo dos seus melhores por causa do vento). E Antero Greco (do Estadão) e Vítor Birner (do UOL) também resistiram à onda de massacre aos atletas que perderam chances de medalhas, como as do futebol feminino, lembrando a falta de apoio à categoria.

Mas Birner caiu em outra falácia, a do rodrigueano complexo de vira-latas, desta vez aplicado à virada do handebol feminino para as norueguesas. Trata-se de lembrar aqui a conclusão do inglês Alex Bellos: “O Brasil não é um país de vencedores, é um país de gente que gosta de se divertir.” Daí que sempre que enfrentarmos civilizações que fazem dos Jogos afirmações de superioridade, e não formas lúdicas, o mais provável é que percamos mesmo. E enquanto os burocratas do COB se perpetuam na incompetência, continuamos nos contentando com o ouro do sol, a prata da lua e o bronze dos corpos porque ninguém é de ferro.

Mas não os blogs, não a mídia. O louvor aos santos da Idade Média foi substituído, na Idade da Mídia, pelo culto aos ídolos. E os blogs adoram os vencedores. Daí a raiva manifesta contra os derrotados e a supervalorização dos bem-sucedidos, as loas às vitórias, a exacerbação dos ouros, os epítetos generosos a atletas excepcionais, como “mito”, “monstro”, “gigante”. O que não seria tão criticável, se não viesse acompanhado do invariável pisoteamento de quem não venceu.

Marginalização e estigma

Nessa irritação com o looser, até contusão vira sintoma de covardia. Na ESPN (que a afetação globalizóide obriga por contrato chamar-se í-és-pí-én), o comentarista Trajano pergunta: “Então, o corredor chinês pipocou de novo?” O especialista responde, compreensivo: “Não, ele apenas se lesionou no mesmo lugar que na Olimpíada passada.”

Esta perspectiva arrivista da mídia é reflexo da sociedade americana, com sua cultura de ressentimento, na qual se inspira. Não queiram estar na pele da seleção estadunidense de vôlei masculino na volta para casa. Favorita ao ouro e campeã olímpica, ela perdeu para a Rússia de virada quando estava ganhando o terceiro set de 22 a 19, e depois, com o ego destroçado, foi eliminada pela Itália por 3 sets a 0 nas quartas de final (após ter feito a melhor campanha de toda a primeira fase). O que os espera? Marginalização e estigma. Diferente do que ocorre aqui. Júlio Cézar, o goleiro que já foi um dos melhores do mundo, mas falhou na última Copa, sendo um dos responsáveis pela derrota para a Holanda, de férias no Rio foi aplaudido quando entrou numa padaria, segundo relato emocionado de sua mulher, Suzana Werner. Coisas do Brasil. Que a mídia, olhos postos no sucesso e na glória, é incapaz de apreender.

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[Silvia Chiabai é jornalista]