No fim de semana [retrasado] circulou uma notícia escalafobética: um grupo de advogados vinculado ao Partido dos Trabalhadores (PT) teria a intenção de tentar impedir, por vias judiciais, o emprego da palavra mensalão nos órgãos de imprensa. No Estado de S.Paulo, a informação apareceu no sábado (4/8), em reportagem de Débora Bergamasco (página A6). Outra nota, esta na Folha de S.Paulo de domingo (5/8), trouxe um adendo providencial: a direção do PT afirmou que a iniciativa não foi adotada por nenhuma instância oficial da legenda. Melhor assim. Seria preocupante se um partido político acalentasse projetos de cercear o vocabulário das pessoas; agora, que um agrupamento de indivíduos invista nessa linha, bem, isso de vez em quando acontece. No futuro próximo, a prevalecer o bom senso nas instituições, o intento fará parte do anedotário político. No futuro distante, terá sumido da memória.
Mesmo assim, o episódio merece algumas linhas.
De saída, é preciso reconhecer: ninguém há de gostar de ser chamado de mensaleiro. Ninguém se orgulha disso. Mensalão é, indiscutivelmente, um termo que carrega um estigma pesado, corrosivo, impiedoso, maculando a imagem do PT e do governo Lula de modo cumulativo e perverso. Embora também exista o mensalão mineiro, que é tucano da gema, assim como o mensalão do DEM, foi ao PT que a palavra ficou mais associada. Portanto, é natural que aqueles que ainda guardam afeto pelo partido queiram livrá-lo desse carimbo que indica tenebrosas transações, além de caixa 2, corrupção e vergonha.
Mania nacional
Reconheçamos, ainda, que os incomodados têm sido alvo de uma artilharia violenta de 2005 para cá. Andam machucados, o que é compreensível, e protestam. Falam como se fossem vítimas de uma forma agigantada de bullying, ainda que não usem o termo. Consideram injusta e descabida essa pecha que o PT passou a carregar e, na visão deles, a imprensa é a principal detratora do partido. Em suas manifestações, os queixosos costumam acusar a grande imprensa – entendida por eles como se fosse uma unidade, um organismo coeso – de se valer dessa alcunha diabólica, mensalão, com o fim teleológico de implodir a reputação dos ícones petistas e tornar inviável o futuro do próprio partido. Estão pelas tampas.
O interessante, aqui, é que, ao menos em parte, têm um pouco de razão. Embora a instituição da imprensa não seja esse todo uno e indivisível que supõem, os reclamantes não estão de todo errados em seu diagnóstico. De fato, foi na imprensa que a alcunha maldita fez sua carreira. Desde que foi sapecado por Roberto Jefferson na acusação que fez contra seus desafetos no governo Lula, o vocábulo mensalão pegou como carrapato, como um apelido de escola, desses que são capazes de marcar um adolescente pelo resto de sua vida. Nesse caso, porém, o estrago não se limitou aos muros da escola, mas se espalhou pelo mundo nas páginas dos jornais.
Fora isso, eles erram – e erram feio. Erram, para começar, na identificação dos culpados. Não foram os jornalistas que inventaram esse termo. Ele nasceu da luta sangrenta entre os partidos da base governista. Depois, o próprio ex-presidente Lula, quando terminou seu segundo mandato alardeando que iria provar que o mensalão tinha sido uma farsa, tomou a iniciativa de pôr mais lenha na fogueira. Passou recibo, como se diz. A briga prolongou-se e hoje o tema virou uma grande mania nacional, a ponto de, no início da semana, ter ultrapassado a novela Avenida Brasil no Google e no Twitter.
Em suma, se essa palavra, mensalão, ficou na pele do PT como tatuagem, não foi por obra de um conluio da assim chamada grande imprensa, mas em decorrência da guerra entre os protagonistas diretos ou indiretos desse grande escândalo, registrada por veículos jornalísticos os mais diversos, seja em textos que rechaçam o termo, seja em artigos que o reproduzem sem vacilar. Acima de tudo, a palavra mensalão ganhou sua validade linguística em razão dos fatos.
Chance de liberdade
Iniciado o processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal, esses fatos estão evidentes. Mesmo nas falas de alguns dos advogados dos réus eles foram reconhecidos: algum tipo de ilícito houve nessa história toda, nem que tenha sido apenas a farta distribuição de dinheiros não contabilizados entre figurões e figurinhas que apoiavam o governo no Congresso Nacional. Pois foi a isso que se acabou chamando de mensalão. É verdade que talvez o mensalão não tenha sido precisamente mensal. Talvez tenha sido um “bimestralão”, ou um “de-vez-em-quandão”, se quisermos ser rigorosos nos intervalos temporais. Mas que houve um ilícito que resultou em desaguadouros sazonais de pequenas ou médias fortunas, cuja origem era e continua sendo suspeitíssima, isso houve.
Neste ponto, vale um aviso aos vigilantes de linguística: a supressão autoritária de uma palavra, se fosse possível, não eliminaria os fatos. Acontece que arrancar palavras do imaginário nacional é impraticável. Sonhar com isso é uma espécie de delírio totalitário justificado em boas intenções. Sonhar com isso é desejar para o Brasil uma ordem de trevas, vertebrada por aquelas truculências imaginadas por George Orwell em 1984, em que a tirania mudava o sentido dos termos e adulterava os acontecimentos históricos.
Para nossa sorte, a língua é algo que o poder não consegue controlar, não consegue sequer administrar, por mais que tente e siga tentando. O poder pode até inventar um idioma, sem dúvida, mas jamais poderá mandar nesse idioma depois que ele começar a ser falado pelo povo. “Quem cria uma língua a tem sob domínio enquanto ela não entra em circulação”, ensinou Ferdinand de Saussure. “Mas desde o momento em que ela cumpre sua missão e se torna posse de todos, foge-lhe ao controle.”
Ainda bem que é assim. Na língua que falamos mora a nossa chance de liberdade. E de acabar com todos os mensalões.
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[Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM]