Muita água vai rolar ainda, certamente, por debaixo das velhas pontes, até 2010, mas o cenário da próxima disputa para a presidência da República já começa a se esboçar nos debates sobre os grandes problemas do país. De um lado, o fato de o PT não ter um candidato natural com o impedimento de Lula para disputar mais um mandato e, de outro, o tempo que a esquerda e outras forças políticas têm ainda pela frente para discutir, articular e compor o quadro final das candidaturas deixa, por ora, em destaque, como pré-candidatos naturais, os governadores dos dois principais estados da federação, José Serra e Aécio Neves.
É esta uma situação cujos ingredientes vão certamente pressionar o processo político antecipando a campanha pela presidência. Quanto menos expectativa de mudança o governo Lula suscitar e capacidade de envolvimento ele desenvolver, mais a campanha de 2010 avançará, ocupará espaços na mídia e mesmo atropelará o governo no embalo das forças sociais e políticas desatendidas e sob a batuta de uma imprensa ávida por novidades e/ou embates com os quais entreter seus leitores.
José Serra e Aécio Neves trabalham desde longo tempo em vista da disputa presidencial. Aécio vem montando com muito afinco a sua estratégia e não dispensa nenhum recurso de marketing ou aliança política que alavanquem sua imagem e posição no xadrez da disputa. Até a imprensa internacional já começa a se interessar pelo que está ocorrendo.
No início de dezembro de 2006, fui procurado pela correspondente no Brasil do jornal Le Monde, solicitando uma entrevista sobre Aécio Neves e seu governo. A matéria – que integrou alguns pontos da conversa telefônica, muito mais ampla, que tivemos – foi publicada em 3 de janeiro, logo depois da posse dos governadores.
‘Um filho do avô’
Se o jornal quis dar à matéria um perfil ‘equilibrado’ – aquele do batido modelito da imprensa burguesa de espelhar o ‘direito ao contraditório’, dando a parte do gato e do rato – como me diz, numa mensagem, a jornalista; e se este ‘equilíbrio’ é ou não equilibrado, eu deixo aos leitores a tarefa de julgar. O fato é que ao responder às perguntas me pautei, como faço habitualmente, mais pela atenção às perguntas que ao (órgão) entrevistador. Alguns dos elementos mais essenciais foram, no entanto, acolhidos na matéria ainda que de forma sucinta.
Mesmo contando com uma boa compreensão da língua portuguesa, a jornalista (e/ou a redação do jornal) não conseguiu contornar completamente certas circunstâncias vocabulares, que pesaram na formulação das minhas críticas a Aécio Neves. Expliquei, com efeito, que o governador deve seu lançamento político ao respaldo da performance histórica do avô, Tancredo Neves, depois da sua morte; que ele, Aécio, à diferença de um considerável número de políticos que militaram, por exemplo, na política estudantil, não teve nenhuma experiência política própria; que ele é, assim, marcadamente, um político conservador, ‘um filho do avô’, para usar uma expressão que a assessoria de imprensa do comitê de campanha do então candidato Aécio Neves não gostou, em 2002.
Controle da imprensa
Se a jornalista não entendeu ou não encontrou tradução direta já consolidada para esta expressão – que não existe, de fato, nem na língua portuguesa – não importa muito. O fato é que no, texto original, ela se utilizou da expressão fils à papa, que se traduz corretamente por ‘filhinho de papai’ no nosso linguajar mais comum. Isto pode até ter melindrado os leitores mais fetichistas e/ou tradicionalistas do preceito do ‘devido respeito às autoridades’, mas a grande maioria que não simpatiza com o lado playboy de Aécio Neves aplaudiu a designação, considerando-a uma plástica ‘bola na cesta’, no jargão dos amantes do basquetebol. De todo modo, ‘filho do avô’ ou ‘filhinho de papai’ são dois epítetos de significados algo diferentes mas afins e que, a julgar pela reação dos leitores, têm, ambos, muito consenso entre os que acompanham a atuação do governador de Minas.
[Clique aqui para ler a versão original da matéria do Le Monde, em francês; e aqui para ler o texto em português.]
A jornalista queria saber por que Aécio Neves havia obtido a invejável perfomance de 73% dos votos com que venceu as eleições para governador, já no primeiro turno, em outubro de 2006. Expliquei-lhe, então, que um primeiro motivo estava no já aludido perfil conservador de Aécio, um ‘filho (político) do avô’ que, aliado à marquetizada fachada de ‘jovem e bonito’, poderia granjear-lhe a simpatia de setores menos politizados e mais amplos do eleitorado.
As elites mineiras mais conservadoras, com os olhos vidrados na possibilidade de voltar a participar com mais vantagem dos butins dos negócios nacionais, visando reconquistar o Palácio do Planalto – do qual está ausente desde o governo Juscelino Kubitschek, há mais de quatro décadas – viram, assim, em Aécio, o semblante ideal para a disputa, sobretudo com São Paulo, e transformaram o neto de Tancredo no seu ‘príncipe encantado’.
A aliança de Lula – que disputa o favor da plutocracia daquele estado com o PSDB de lá e vê nas ambições de Aécio e das elites mineiras um aliado precioso com o qual contrapor-se à Serra – com Aécio, o chamado ‘Lulécio’, constituiu outra poderosa alavanca para o bombástico 73%; o candidato a governador lançado pelo PT, Nilmário Miranda – por quaisquer razões que procurem explicar o fato – não esteve à altura do seu papel e serviu mesmo só para coonestar e alavancar a candidatura do PSDB mineiro ao governo do estado.
A terceira e decisiva leva de apoio para se reeleger em condições tão favoráveis foi o controle, com mão-de-ferro, da imprensa local. Os jornais, rádios e TVs, a chamada ‘grande imprensa’, sofrem, desde a primeira eleição de Aécio Neves, em Minas Gerais, o controle indefectível do Palácio da Liberdade.
A rigorosa censura aeciana
Este último fato foi confirmado pela própria divulgação da matéria do Le Monde, que não foi publicada na íntegra por qualquer meio de comunicação. O Palácio da Liberdade, com sua legião de marqueteiros e assessores de imprensa sempre a postos para blindar o governador de qualquer crítica, estendeu, sobre a matéria, as finas malhas de sua censura aos órgãos de imprensa – não só mineiros, mas também nacionais. Estes últimos, displicentes e/ou coniventes, se submeteram, docilmente, publicando os releases de Aécio com os trechos selecionados da matéria do jornal francês onde, evidentemente, não apareciam as críticas que lhe foram feitas.
A matéria do Le Monde confirma, ainda, com uma ponta não dissimulada de dramatismo, a rigorosa censura aeciana, ao divulgar a opinião crítica longamente contida de um jornalista que acompanhou a trajetória de Aécio Neves na Câmara dos Deputados por 16 anos e não quis deixar que o próprio nome fosse divulgado.
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Professor aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG, doutor em Filosofia Política pela Universidade de Urbino (Itália), autor de A história pela metade — Cenários de política contemporânea (Editora do Cefetmg, Belo Horizonte, 2006); colaborou Carmen Dulce Diniz Vieira, professora do Departamento de Comunicação da UFMG