‘Por certo um dos erros a que os leitores são mais sensíveis: os títulos que anunciam aquilo que não está na notícia, ou que está, apenas parcialmente. São falhas ou abusos que qualquer leitor descobre sem precisar de especiais conhecimentos sobre jornalismo. Basta que se interesse por um assunto a partir de um título e acabe por descobrir uma notícia diferente daquilo que lhe tinha sido dado imaginar. É uma contrariedade que só não sentem aqueles que se ficam pela leitura dos títulos o que, não sendo tão excepcional como isso, só agrava os efeitos nefastos de um título enganoso.
Embora cada jornal, conforme a sua orientação, tenha as suas regras no que respeita à natureza dos títulos (informativos, interpretativos, incitativos) e à titulação em geral (uso ou não de antetítulos ou pós–títulos), o objectivo é comum: sintetizar, através de frases geralmente curtas, aquilo que constituí o essencial da notícia e, com isso, conquistar para ela a atenção do leitor.
Uma tarefa difícil que, sabe–se nas redações, é uma ‘especialidade’ que nem todos os jornalistas praticam com igual êxito. Se, por um lado, requer capacidade técnica para resumir em poucas palavras (que caibam no espaço disponível) o que vai ser explicado em muitas, por outro exige rigor suficiente para evitar cedências de natureza deontológica.
É evidente que os títulos devem estimular o interesse do leitor. Não só porque o jornal tem o direito de valorizar o trabalho que apresenta, mas também porque é seu dever sublinhar o significado de uma informação que o leitor pode não estar preparado para avaliar.
Mas é também evidente que – como já foi dito nesta coluna – este é um terreno atravessado por fronteiras que separam as imagens dos jornais de referência e da chamada imprensa popular. O que nesta é ‘característica’, naquela é desvio. Com os consequentes efeitos na credibilidade.
Ao escrever ao provedor que ‘um jornal como o Público não se pode dar ao luxo de cometer ‘deslizes’ destes’, a que ‘deslize’ se refere o leitor António Pimenta Marinho, de Braga ?
No dia 27 de Outubro, a manchete do jornal anunciava: ‘limpeza de ficheiros na saúde detecta 400 mil falsos utentes’. E remetia para o interior, onde o título era o seguinte: ‘há 400 mil potenciais duplicações de inscrições nos centros de saúde’.
‘Isto’ – escreve o leitor – ‘ obrigou–me a andar de trás para a frente e da frente para trás a tentar ver se havia duas notícias contraditórias na mesma edição e cheguei à conclusão que só havia uma notícia – a da página 26 – e que o título da 1ª página lá estava para enganar os leitores e fazer crer que afinal há muitas duplicações de inscrições no CS. Não sei de quem é a responsabilidade, mas julgo que não é correcto’.
O leitor considera ainda que a manchete ‘podecriar falsas expectativas nos cidadãos que não têm médico de famíliae pensam que podem ir a correr ao CS para arranjar um médico…’. E estranha que um título como aquele, na primeira página do jornal, remeta ‘o assunto para uma modesta página 26. Quando se dá um título destes’ – considera – ‘pressupõe–se que o artigo vai ser tratado como destaque, o que não aconteceu’.
Por este caso, responde o ‘director de fecho’ da edição. Eduardo Dâmaso admite que a manchete possa induzir ‘uma leitura ambígua’ e explica o seu procedimento: ‘Na verdade, é mais correcto falar de duplicações de inscrições no SNS do que de ‘falsos utentes’ , expressão que remete para uma interpretação mais próxima de uma ideia de burla ao SNS do que para a desorganização dos serviços, que o texto retratava. Aqui verificou–se um daqueles problemas clássicos da elaboração de títulos para a primeira página: tanto quis fazer um título de leitura simples e directa e que coubesse no espaço que as opções gráficas da primeira página permitiam que acabei por fazer uma opção menos rigorosa. Ainda que, em muitos casos, estivessem mesmo em causa situações que se podem classificar como ‘falsos utentes’, pois estamos a falar de pessoas já falecidas ou de identidades que remetiam para pessoas inexistentes. A maioria dos casos, porém, era de inscrições duplicadas. Só posso pedir desculpas aos leitores por isso’.
Quanto ao destaque da notícia, Eduardo Dâmaso discorda do leitor, considerando que, embora ‘desejável’, nem sempre um título de primeira página anuncia uma notícia muito desenvolvida: ‘ Por vezes, informações obtidas ao fecho do jornal, bem confirmadas e indiscutivelmente importantes, podem justificar um título na primeira que remeta para notícias de não mais do que 1500 ou 2000 caracteres. O factor tempo condiciona os ritmos de produção do jornal, quer ao nível dos alinhamentos noticiosos quer das opções gráficas (mais texto, fotos destacadas, etc). A realidade dos jornais, felizmente, não está formatada por meia dúzia de rotinas exercidas de forma burocrática e insensível à evolução própria da actualidade’.
Reconhecida, no essencial, a razão do leitor, consideremos um segundo caso, de contornos diferentes: assinada por Maria Antónia Ascensão e Ana Henriques, uma notícia (16 de Outubro) com o título ‘ModaLisboa é o sítio onde Santana Lopes se sente bem’. Em boa parte, o texto é dedicado à presença do primeiro–ministro. No entanto, a frase do título nunca aparece citada.
Embora ninguém tivesse reclamado, o provedor interpelou as jornalistas. Afirmando que a opção é de sua responsabilidade, Ana Henriques responde que também o subeditor da Cultura a questionara no momento da edição da peça mas que, face à sua argumentação, manteve o título. E explica: ‘A principal afirmação inserida no texto que fundamenta o título é a seguinte: ‘Sabe muito bem estar aqui. Sou fã da ModaLisboa’. Acontece que, além desta, o primeiro–ministro produziu outras afirmações – não só elogiosas e de apoio ao evento como demonstrativas desse tal ‘sentir–se bem’ no local – que me fizeram escolher este título e não outro’.
A terminar, Ana Henriques interroga–se sobre se deveria ter reproduzido essas outras afirmações e responde:’ Perante as dúvidas que se levantam, parece–me que sim’.
Vejamos: fazer elogios ao evento, afirmar que o apoia, declarara–se ‘fã’ dele, ou dizer que ‘sabe muito bem estar’ lá, não poderá ser traduzido pelas palavras que acabaram por aparecer no título. Para isso, Santana Lopes teria que ter afirmado qualquer coisa como ‘este é o sítio onde me sinto bem’, ou alguém teria que ter feito um comentário desse teor (o que surgiria atribuido entre aspas). Não sendo assim, o título só poderia afirmar a ideia de que A ModaLisboa é um sítio onde Santana Lopes se sente bem. Um sítio. Não o sítio. O que é totalmente diferente. E não só no plano gramatical, pois há significados a extrair de uma ou outra formulação. Tal como foi publicado, o título aparece como uma opinião de quem o fez. O que é incorrecto, visto não estarmos perante um comentário ou uma crónica – onde a opinião é natural – mas perante uma notícia.
A preocupação com a consonância entre os títulos e os conteúdos das notícias, está expresso em diversos códigos (1), desde o Código Europeu de Deontologia do Jornalismo, aprovado pelo Conselho da Europa – onde se estipula que ‘os títulos e enunciados das notícias devem sublinhar o mais fielmente possível o conteúdo dos factos e dos dados’ – até ao Código da Associação Americana de Editores de Jornais que determina que ‘os títulos do jornal devem ser plenamente garantidos pelos conteúdos dos artigos que acompanham’.
É um princípio que falta no Código dos Jornalistas Portugueses e que seria a altura de introduzir no Livro de Estilo do Público, agora que ele está em processo de revisão.
(1) – Ver ‘O Quarto Equívoco’, de Mário Mesquita, Edições Minerva/Coimbra.’