Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fausto Macedo

‘A Justiça Federal decretou ontem imediata abertura dos arquivos militares. Por meio de sentença de 46 páginas, o juiz Paulo Alberto Jorge, da 1.ª Vara Federal de Guaratinguetá (SP), acolheu liminarmente ação civil proposta pelo Ministério Público Federal. Ele ordenou ao comandante do Exército, general Francisco Roberto Albuquerque, que no prazo de 15 dias ‘transfira todos os documentos referidos para o Quartel do 5.º Batalhão de Infantaria Leve do Exército, em Lorena, onde deverão ser mantidos em sala própria cujo acesso somente será permitido com autorização deste Juízo Federal’.

Ele determinou que todos ‘os documentos relacionados com o período da ditadura militar, de 1964 a 1985, sejam postos à disposição deste Juízo Federal, independentemente do grau de sigilo que lhes tenham sido atribuídos por qualquer autoridade política, administrativa ou legislativa, civil ou militar para oportuna análise judicial dos mesmos’.

Jorge indicou o quartel de Lorena como abrigo dos papéis que os militares nunca quiseram exibir ‘para viabilizar a análise dos documentos pelas partes e pelo Juízo’. Mandou providenciar ‘a necessária segurança de guarda dos documentos’.

‘É mais do que hora de se estabelecer o controle dos atos de decretação de sigilo dos documentos dos chamados arquivos da repressão’, decidiu o juiz. ‘Os tais documentos sigilosos bem poderiam conter informações para localização dos ainda muitos cidadãos desaparecidos, ao menos para que possam ter o enterro digno que Antígone ao custo de sua própria vida garantiu ao irmão, cujo corpo Creonte havia determinado fosse deixado insepulto para que os abutres e os cães lhe devorassem as entranhas e, assim, não descansasse em paz.’

NEFASTAS

O juiz assinalou que ‘a julgar pelas conseqüências nefastas que a indevida não revelação destas informações acarreta no meio social, a providência jurisdicional deve ser adotada com máxima urgência’. Ao fundamentar sua decisão, Jorge destacou: ‘Se o Poder Legislativo, no uso das prerrogativas que pelo artigo 49, inciso X, da Carta Magna o constituinte lhe assegurou ainda não fez, resta ao Judiciário, último bastião das garantias constitucionais, fazê-lo.’

Para o magistrado, são ‘absolutamente jurídicas as ponderações do Ministério Público Federal, no sentido da necessidade do controle jurisdicional dos atos do Poder Executivo pelos quais documentos importantes da história do País são mantidos sob sigilo’.

Ele avalia que ‘somente com a análise de tais documentos feita à luz dos princípios constitucionais que informam a defesa do Estado e das instituições democráticas é que se poderá saber da ocorrência das hipóteses a partir das quais a revelação das informações neles contidas pode ser legitimamente recusada conforme o previsto no inciso XXXIII, do artigo 5.º, da Constituição’.

BLINDAGEM

O juiz federal questionou a eficácia do Decreto 4.553, de 27 de dezembro de 2002, que prevê a blindagem dos arquivos pelos próximos 50 anos. Para ele, ‘não é constitucional norma que deixe ao critério exclusivo do presidente da República a classificação de documentos quanto ao seu sigilo, menos ainda a norma que atribua esta competência a autoridades inferiores, inclusive nem do chamado primeiro escalão do governo’.

O artigo 6.º do Decreto 4.553 estabele que a classificação no grau ultra-secreto é de competência do presidente, do vice-presidente, de ministros de Estado e comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Além dessas autoridades, podem atribuir grau de sigilo secreto as autoridades que exerçam funções de direção, comando ou chefia; e grau de sigilo confidencial e reservado, servidores civis e militares, segundo regulamentação de cada ministério ou órgão da Presidência.

‘Tal situação leva a questão para o campo do subjetivismo extremo, absolutamente impertinente no âmbito da administração pública, mormente em se tratando de questão atinente à defesa do Estado e das instituições democráticas e restrição de direitos individuais e coletivos dos cidadãos’, ressaltou o juiz federal.

Jorge observou: ‘A classificação de documentos públicos como sigilosos, em seus diferentes níveis (ultra-secretos, secretos, confidencial e reservado) e, assim, a recusa da administração pública federal de fornecer e disponibilizar informações que se reveladas poriam em risco a segurança da sociedade e do Estado é, ao menos no Brasil, tema tormentoso.’

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O juiz anotou que ‘os interesses que se busca proteger são, portanto, de todos os que estão potencial ou concretamente privados das informações eventualmente ilegitimamente sigilosas, ou seja, toda a população brasileira’.

Ele alertou para os princípios do artigo 37 da Constituição. ‘Tratando-se de hipótese não constitucional de sigilo de informações, restariam feridos, segundo os fundamentos do Ministério Público, os princípios de publicidade e legalidade, pertinentes à atividade administrativa, e que todos os cidadãos brasileiros têm interesse sejam observados.’

O magistrado concluiu que ‘a ação trata de evidente defesa de interesses difusos, quais sejam os metaindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato’.

Jorge informou, ainda, que ‘é pertinente do ponto de vista constitucional a decretação de sigilo de informações mantidas pelos órgãos públicos quando isto seja imprescindível para preservar ou prontamente restabelecer a ordem pública ou a paz social.’’

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‘‘É a única forma de fazer justiça aos mortos’’, copyright O Estado de S. Paulo, 12/11/04

‘A abertura dos arquivos militares foi ordenada em ação civil da Procuradoria da República, que requereu ‘a juntada aos autos de todo e qualquer documento público relacionado com a ditadura militar no Brasil, não importando o grau interno de sigilo que lhe tenham sido atribuídos por autoridade administrativa ou legislativa, civil ou militar, ficando a exibição desses documentos reservada exclusivamente à vista das partes (Ministério Público Federal, representante da Advocacia-Geral da União) e do juízo’.

A Procuradoria pediu a condenação da União a exibir publicamente ‘cada um dos documentos que não resistam a um controle de legalidade, vale dizer, cada documento anexado no qual a tarja de sigiloso tenha sido aposta ao arrepio das normas jurídicas de hierarquia superior, notadamente as leis federais mencionadas e a Constituição, seja porque não houve motivação do ato, seja porque não houve proporcionalidade entre meios e fins, seja porque o motivo que o embasa é imoral e atende apenas interesses particulares mesquinhos, seja porque os fins preconizados pela Constituição não quedaram atendidos pelo ato administrativo, seja porque editado por agente sem competência legal para tanto, seja porque motivo for que o macule de invalidade’.

O Ministério Público Federal amparou seu pedido em dois fatos recentes. O primeiro: a divulgação de fotografias que seriam do jornalista Vladimir Herzog, morto nas dependências do DOI-Codi, órgão do extinto II Exército, em 1975. O segundo: a nota oficial emitida pelo Centro de Comunicação Social do Exército, depois da divulgação das fotos, ‘cujo teor mostra que a democracia no Brasil está bastante incipiente, e mais, que o Ministério Público e a Justiça Federal devem ficar alertas, dar as mãos e armar-se contra o risco, não despropositado – a julgar pelo teor da nota -, de que nossa frágil democracia venha a ser solapada por uma nova ditadura militar’.

Para a Procuradoria, ‘saber exatamente o que aconteceu em vários episódios dos horrores da ditadura militar atende não só a direito dos familiares dos perseguidos politicamente, é uma exigência que decorre de dois fundamentos da República, a cidadania e a dignidade da pessoa humana’.

‘A única forma de fazer justiça aos mortos, aos torturados, aos exilados, aos humilhados, a seus familiares e à consciência do povo brasileiro em geral, é fazer com que o Brasil mostre a sua cara, nua e crua, seja ela qual for’, diz o texto da ação civil.

A Procuradoria sustenta: ‘Não imaginamos como os arquivos que trazem detalhes das atrocidades da ditadura possam ser sigilosos, a ponto de o sigilo ser imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, como exige a norma constitucional. O sigilo destes documentos, assim, foi imposto para acobertar o interesse de alguns, que sabiam muito bem o que estavam fazendo na época negra da ditadura.’’



Josias de Souza

‘Juiz manda abrir os arquivos da ditadura’, copyright Folha de S. Paulo, 12/11/04

‘Em decisão proferida ontem, o juiz federal Paulo Alberto Jorge, lotado em Guaratinguetá (SP), determinou a abertura de todos os documentos secretos produzidos pelo Exército entre 1964 e 1985, período da ditadura militar. A Advocacia Geral da União será notificada da decisão nos próximos dias.

A abertura dos arquivos secretos do Exército foi pedida pelo procurador da República João Gilberto Gonçalves Filho, de Taubaté (SP). A decisão do juiz tem caráter liminar (temporário) e está sujeita a recurso.

De acordo com a determinação judicial, os papéis sigilosos terão de ser reunidos pelo Exército e remetidos para o quartel de Lorena (SP). É a instalação militar mais próxima da Vara Federal de Guaratinguetá. O prazo concedido pelo juiz é de 15 dias, a contar do recebimento da notificação.

Na ação que motivou o despacho do juiz, o procurador Gonçalves Filho escorou-se no texto da Constituição. Reproduziu trecho do artigo quinto: ‘Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade’.

O mesmo artigo, reconhece o procurador, permite ao governo manter sob reserva aquelas informações ‘cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado’. A ressalva constitucional não alcançaria ‘os documentos oficiais que se referem à ditadura militar’.

‘Controle jurisdicional’

Gonçalves Filho argumentou que cabe ao Judiciário fazer um ‘controle jurisdicional de legalidade dos atos administrativos que conferiram sigilo a documentos públicos’. Diz o procurador: ‘É necessário que eles sejam exibidos em juízo’.

O pedido foi acatado pelo juiz. Com uma ressalva: para preservar a integridade dos papéis, o magistrado determinou que sejam reunidos num quartel, e não na vara de Guaratinguetá, como pleiteou o Ministério Público.

O procurador pediu na ação que, além do juiz, apenas o Ministério Público e a Advocacia da União tenham acesso aos arquivos a serem disponibilizados pelo Exército. O juiz foi lacônico. Disse na sentença que, apresentados, os documentos só poderão ser manuseados por pessoas autorizadas pela Justiça.

Se, a critério do juiz, forem encontrados no lote de papéis a ser exibido pelo Exército documentos cujo sigilo seja injustificável, o governo será condenado a exibi-los publicamente.

Vladimir Herzog

O que motivou a ação do Ministério Público foi a nota divulgada pelo Exército em reação à divulgação de supostas fotos do jornalista Vladimir Herzog. Depois se verificaria que as fotos não eram de Herzog.

Na nota, o Exército justificou a repressão militar da ditadura: ‘As medidas tomadas pelas forças legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optando pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas’.

‘Quais as armas em que pegou Vladimir Herzog?’, indaga o procurador Gonçalves Filho na ação. Na opinião dele, o Brasil tem o direito de conhecer o seu passado. O país precisa, argumenta o procurador, ‘mostrar a sua cara, nua e crua, seja ela qual for.’



José de Souza Martins

‘Um homem sem anistia’, copyright O Estado de S. Paulo, 15/11/04

‘Nos anos setenta, um vaqueiro analfabeto, chamado Aparecido Galdino Jacinto, tornou-se místico. Foi na região de Santa Fé do Sul, no Estado de São Paulo. Numa certa época ele havia sido uma espécie de guarda-costas do militante comunista camponês Jofre Correia Neto, mais tarde preso. Seu misticismo decorreu de que num desesperado pedido de socorro a Deus teve a vida de um de seus filhos salva da chifrada de uma vaca brava. A partir de então, Galdino deixou de comer carne de animais de sangue quente. Galdino se tornou uma espécie de precursor da luta ambientalista. Passou a condenar as barragens construídas no rio que separa São Paulo de Mato Grosso, porque tiravam a liberdade dos peixes, impedindo a piracema e a sua reprodução.

Criou no seu pequeno sítio uma irmandade religiosa que se reunia ao redor de uma capelinha de pau-a-pique, a que deu o nome de Exército Divino. Não era curandeiro. Era católico. Como houvesse, com benzimento, o que é costume na roça, curado a bicheira de um animal, o povo passou a pedir-lhe que benzesse pessoas doentes que o procuravam. Negava-se a isso. Mas não se recusava a rezar o pai-nosso e a ave-maria em intenção dos enfermos. O número de pessoas que o procuravam começou a crescer. A Igreja Católica, através do pároco local, posicionou-se contra. Por seu lado, o delegado de polícia organizou uma força que atacou os devotos num domingo à tarde, enquanto oravam. Destruiu a capela e prendeu a todos, na maioria mulheres. Foram soltos aos poucos. Galdino, porém, ficou preso.

Acusado de curandeirismo e prática ilegal da medicina, foi defendido gratuitamente, de modo muito apropriado e competente, por um advogado local, Dr. Alcides Silva. Ele apoiou sua defesa em estudos sociológicos sobre messianismo e milenarismo, em particular em casos ocorridos no Brasil. O réu foi absolvido. O promotor, porém, entendeu que deveria apelar para a Justiça Militar, como se essa justiça especial fosse instância superior da Justiça comum, pois entendia que Galdino era subversivo. Vivíamos tempos de prepotência e burrice.

Galdino foi transferido para São Paulo, como preso político e nessa condição aguardou a decisão da Justiça Militar. Era óbvia a tolice da suspeita e da acusação. O tribunal militar não teria como não absolver Galdino. Naqueles tempos de repressão dura e de arbitrariedades, o então delegado Fleury, torturador profissional, aconselhou os juízes a declararem Galdino louco, mandá-lo para o Manicômio Judiciário e deixá-lo lá apodrecendo. Era o modo de evitar que se transformasse num mártir. Dito e feito. Os juízes convocaram dois peritos do manicômio, que declararam Galdino esquizofrênico paranóide. Galdino teria direito a uma contraperícia, o que não ocorreu. A imprensa censurada publicou algumas linhas sobre o caso, um ou dois artigos saíram em publicações especializadas e o assunto morreu aí. Galdino foi removido para o Juqueri, na proximidade de um dia de Natal e pensou que estava sendo libertado e enviado para casa.

Até que anos depois tive a oportunidade de denunciar o caso publicamente, num grande ato público que tinha como tema os direitos humanos, organizado pelo cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Dom Paulo tomou providências, o caso foi assumido pela Comissão de Justiça e Paz e ficou dele encarregado o advogado Mário Simas. Na campanha para libertá-lo, fui com o jornalista Ricardo Carvalho e o fotógrafo Ubirajara Dettmar visitá-lo e conhecê-lo, para obter detalhes que municiassem o movimento em seu favor. Nós o encontramos resignado, em completo desamparo.

Depois de demoras, a contraperícia foi feita, o ‘erro médico’ foi constatado, o caso foi reaberto a contragosto pelo juiz militar, que chegou a me ofender diante de jornalistas, indignado com o meu atrevimento de denunciar o caso. Fez ameaças. Mas Galdino foi finalmente libertado. Ficara cerca de nove anos confinado, como preso político, a maior parte do tempo no Manicômio Judiciário, como louco que não era. Nesse meio tempo seus filhos cresceram, sua esposa se foi, sua família se desfez, Galdino envelheceu.

Voltou para Santa Fé do Sul, onde o prefeito, do então MDB, partido de oposição ao governo ditatorial, lhe deu o emprego de jardineiro da prefeitura, para que pudesse sobreviver. Galdino voltou a casar e a constituir nova família. Está velhinho e pobre, com família numerosa para sustentar. Não processou o governo por danos materiais e morais e por erro médico nem pediu indenização ou compensação pelo fato de ter a ditadura destruído sua vida e a de sua família. Autêntica vítima da ditadura, doloroso caso de injustiça e violência, Galdino não terá ato do ministro da Justiça ou do presidente da República a seu favor. Galdino nada tem a comemorar.

Foi à luz desse drama que li o ato publicado no Diário Oficial da União, de 19 de outubro, do ministro da Justiça, que concede a um anistiado por perseguição e prejuízos profissionais durante a ditadura, uma reparação mensal de mais de 23 mil reais, reduzida a um teto de pouco mais 19 mil reais, porque esse é o limite dos vencimentos no País, mais a compensação de um milhão e quatrocentos mil reais pelos atrasados. Poderia ler muitos outros atos similares na mesma perspectiva. Não analiso o mérito do benefício, que não me cabe. Mas não posso deixar de refletir sobre essa espantosa travessia do socialismo utópico ao socialismo conveniente. (José de Souza Martins é professor titular aposentado no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Fellow de Trinity Hall e professor da Cátedra Simon Bolívar da Universidade de Cambridge (1993/94). É autor, dentre outros livros, de ‘A Sociedade Vista do Abismo’ (Vozes) e ‘O Sujeito Oculto’ (Editora da UFRGS)).’



Eliane Cantanhêde e Iuri Dantas

‘Para general Félix, arquivos vão expor vítimas do regime’, copyright Folha de S. Paulo, 14/11/04

‘O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, é radicalmente contra a abertura dos documentos da ditadura militar (1964-1985): ‘Não há nada bonito ali’, diz ele. Curiosamente, justifica que sua preocupação não é poupar os torturadores e sim os perseguidos e torturados.

A versão de Félix, 65, é na prática um alerta às vítimas do regime que exigem a abertura dos documentos: os registros, segundo ele, mostram uma esquerda corrupta, que mantinha relações extraconjugais e delatava companheiros.

‘Tem gente que naquela época estava na clandestinidade, tinha outra mulher e hoje está com a antiga. Se isso aparecer, você pode destruir uma família. Tem os companheiros que entregaram, está escrito ali’, disse Félix à Folha, no seu gabinete, a poucos metros do gabinete do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo o general, nem sempre as delações eram forçadas: ‘Às vezes, não forçava, não. Às vezes, [o preso] chegava lá e abria tudo. Por medo, não é?’.

E quanto à tortura e aos desaparecimentos? ‘Não encontrei nada na Abin até agora’, respondeu.

Cercado no Planalto por antigos opositores da ditadura, como o próprio Lula e os ministros José Dirceu (Casa Civil) e Aldo Rebelo (Articulação Política), ele declarou: ‘O pior inimigo que você pode ter é o Estado. Não queira ter o Estado como inimigo’.

Folha – A Abin (Agência Brasileira de Inteligência) é o novo SNI (Serviço Nacional de Informações)?

Jorge Armando Félix – O SNI foi extinto.

Folha – É um filhote?

Félix – É uma outra criança.

Folha – Em que casos Lula recebe um relatório da Abin?

Félix – Não recebe todos, nem daria tempo. Recebe aquilo que a Abin acha que deva chegar ou ao presidente ou a algum outro órgão. Algumas coisas eu levo ao presidente. Outras apenas comento.

Folha – O atual diretor da Abin, Mauro Marcelo de Lima e Silva, é a favor da permissão para escutas telefônicas. O sr. também?

Félix – Em alguns casos, seria interessante. Exemplo: chega alguém no Brasil suspeito de terrorismo. Acompanhar visualmente é possível, eventualmente vejo que está telefonando. Para quem? Falando o quê? Não sei.

Folha – O sr. entregou o cargo ao presidente e ele pediu para esperar a reforma ministerial?

Félix – Não. Ainda não me passou pela cabeça fazer um pedido de demissão. Nunca houve nenhuma razão, tenho tido todo tipo de consideração por parte do presidente e de todos os ministros. Não tenho problema de saúde na minha família, como alguns jornais andaram anunciando, não tenho nenhum tipo de problema com o diretor da Abin.

Antes de ele assumir, conversamos várias vezes. Ele sabe exatamente o papel dele, não temos nenhum tipo de contencioso. Ele não despacha diretamente com o presidente. Não despachou nenhuma vez, desde que assumiu.

Folha – E os encontros nos finais de semana?

Félix – Eles são amigos.

Folha – Isso não é uma forma de despacho, general?

Félix – Não. O presidente respeita o espaço de todas as pessoas. Tenho absoluta certeza de que não tratam de inteligência. Se porventura se encontraram não foi mais do que duas ou três vezes. Eventos sociais até.

Folha – Por que autoridades do próprio governo dizem que o sr. pediu demissão?

Félix – Não sei. É possível que haja pessoas ou grupos que queiram que eu peça demissão.

Folha – Por quê?

Félix – Não sei. Posso ser um obstáculo a determinados interesses e, às vezes, sou.

Folha – Por exemplo.

Félix – Interesses políticos. Às vezes tenho que tomar posições. Recebo a informação, levo ao presidente para ser trabalhada. O que vai ser feito com essa informação é um problema político.

Folha – Qual foi a sua reação quando o sr. viu a primeira nota do Exército, defendendo a ditadura e até os órgãos de repressão? Como o sr. soube?

Félix – Li nos jornais. No começo não houve muita reação, mas depois foi crescendo.

Folha – A primeira impressão?

Félix – Claro que a gente tem a sensação de luz amarela. A luz amarela acendeu, não é?

Folha – Inclusive no gabinete de crises do GSI?

Félix – Não houve luz amarela.

Folha – O sr. disse que acendeu.

Félix – Acendeu para mim, pela repercussão. Claro que procuramos acompanhar, mas não houve uma articulação nossa, porque é um outro tipo de problema, não é alguma coisa que exigisse articulação de vários ministérios.

Folha – O ministro da Defesa pediu demissão.

Félix – Isso aí foi um assunto tratado pelo ministro da Defesa e pelos comandantes militares. Só entramos, junto com os Direitos Humanos, porque [no caso das fotos que pareciam ser do jornalista Vladimir Herzog] éramos os detentores de uma informação que os outros não tinham.

Folha – Algumas perguntas ficam. Quem escreveu a nota? Por quê? É um indício de que há setores descontentes nas Forças Armadas?

Félix – Essas perguntas o Exército tem que responder, e acho que já respondeu até, de certa forma. Como militar, me preocupo porque vi uma repercussão muito negativa, mas, institucionalmente, funcionalmente, não podia me meter e não me meti.

Folha – Inteligência trabalha com cenários. Um dos cenários a partir da nota é que existe um foco de insatisfação, seja por salário ou por falta de equipamento, que pode vir a criar uma situação de confronto ou de constrangimento para o poder civil?

Félix – Acho difícil esse tipo de constrangimento. As Forças Armadas estão hoje perfeitamente enquadradas no funcionamento normal da sociedade. Elas têm um papel e o desempenham. Agora, há manifestações de grupos, de pessoas, que não são manifestações da instituição.

Folha – Mas a nota foi uma manifestação da instituição.

Félix – Foi corrigida, não é?

Folha – Ou seja, era errada. Alguém, ou algum grupo, fez uma coisa errada e não aconteceu nada com os responsáveis.

Félix – Esse é um problema que diz respeito às Forças Armadas.

Folha – E se não houvesse recuo na nota? Seria preocupante?

Félix – Não necessariamente. É um problema muito mais político do que um problema de crise. Nas crises políticas não entramos.

Folha – Se houver um foco de insatisfação e a inteligência não detectar, não alertar, a responsabilidade não vai ser sua?

Félix – Por não ter prevenido. Por isso é que tem que ter um anteparo entre o presidente e a estrutura, para ter alguém para mandar embora.

Folha – O vice-presidente da República é demissível no Ministério da Defesa?

Félix – O vice-presidente da República tem habilidade suficiente para contornar qualquer crise. Ele é muito hábil e muito competente. Certamente vai levar muito bem o Ministério da Defesa.

Folha – Que arquivos da ditadura estão guardados na Abin?

Félix – Temos arquivos da Comissão Geral de Investigações, depois vamos recolher os do Conselho de Segurança Nacional, que fazia as cassações. Isso vai tudo para o Arquivo Nacional, no Rio. Temos os arquivos do SNI, estão microfilmados. E é aquela história. Não tem nada bonito ali.

Folha – Não tem nada bonito dos dois lados?

Félix – Não, só tem de um lado. É corrupção. Tomamos todas as precauções, porque ali trata-se de pessoas, e é preciso que se preserve a individualidade, o direito à privacidade. Essas pessoas estão aí, estão vivas.

Folha – E os documentos sobre tortura, desaparecimentos?

Félix – Não encontrei nada na Abin até agora. Há dossiês que nos preocupam, porque tratam de pessoas em situações extremamente constrangedoras.

Eu até gostaria de destruir esse tipo de documento. Isso não é história, não vai fazer bem a ninguém. Se aparecer, só vai fazer mal à reputação das pessoas, e tem gente aí, hoje, com 75, 80 anos de idade. Para que serve isso?

Folha – E o material dos Doi-Codi?

Félix – O que há ali são as microfichas. As pessoas fazem pedidos, já respondemos a 7 ou 8.000 pedidos de informação.

Folha – O governo diz que os documentos do Araguaia foram incinerados, mas isso exigia os termos de destruição. Onde está?

Félix – Nós não encontramos dentro da Abin. Continuamos procurando.

Folha – E nos órgãos de inteligência das Forças Armadas?

Félix – Isso é um problema das Forças Armadas.

Folha – O sr. vê problema em divulgar os arquivos?

Félix – Tem problema divulgar porque ali você fala de pessoas, de indivíduos. Tem gente que naquela época estava na clandestinidade, tinha outra mulher e hoje não tem, está com a antiga. Se isso aparecer, você pode destruir uma família.

Tem os companheiros que entregaram, está escrito ali. Aquilo ali é problema daquela pessoa. Ninguém mais deve tomar conhecimento disso a não ser com autorização da pessoa ou da família, se ela tiver morrido.

Folha – Se houve delação, é porque alguém forçou.

Félix – Às vezes, não forçava, não. Às vezes, chegava lá e abria tudo. Por medo, não é?

Folha – Havia bons motivos para ter medo, não é, general?

Félix – O pior inimigo que você pode ter é o Estado. O Estado é muito poderoso. Não queira ter o Estado como inimigo. Não quero.’