A Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo que seja declarada inconstitucional a exigência de autorização de personagens ou de seus herdeiros para que sejam publicados livros ou obras audiovisuais nas quais eles são citados.
Argumentam que com isso se criou o que chamam de “censura privada” ao dar a essas pessoas o direito de decidir o que pode ou não ser conhecido pelo público.
Além disso, surgiu o que nos meios editoriais vem se chamando de “mercantilização da honra”: se o acordo financeiro for bom, pode-se publicar o que, na argumentação inicial, era considerado ofensivo.
Não é apenas a publicação de biografias que é atingida pela exigência dos artigos 20 e 21 do Código Civil. Outros livros de não ficção e programas de TV também vêm sendo alvo de personagens ou seus parentes que tentam impedir sua divulgação – ou negociar somas altas para permitir que sejam veiculados. Por conta disso, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) vai se unir à Anel na ação.
Restrições
“Somos o único país do mundo onde um protagonista da história do país pode brecar a publicação de um livro”, diz Roberto Feith, sócio da editora Objetiva e membro da Anel.
As restrições já atingiram obras como Roberto Carlos em Detalhes, biografia escrita por Paulo César Araújo e que teve sua venda proibida em 2007. Outras foram abandonadas pelo caminho, como as que contariam as trajetórias dos músicos João Gilberto e Raul Seixas.
Minisséries de TV também foram alvejadas pelos artigos 20 e 21. Em abril, o Tribunal de Justiça do Acre condenou em primeira instância a TV Globo a indenizar a família do ambientalista Chico Mendes por causa da veiculação de Amazônia, de Galvez a Chico Mendes, em 2007.
A causa tem o valor de R$ 23 milhões. A família alegou ter sofrido dano material com a exibição do programa. A emissora defendeu-se afirmando que só reproduziu “fatos nacionalmente conhecidos e amplamente divulgados”, mas a Justiça considerou que, embora Chico Mendes (1944-1988) fosse uma pessoa nacionalmente conhecida, a exploração de sua imagem dependia do consentimento de seus sucessores. A Globo recorreu.
Chapa-branca
Na ação, a associação dos editores argumenta que, além de abrir uma brecha para a censura, o que é proibido pela Constituição, outros dois princípios constitucionais são desrespeitados: os direitos à liberdade de expressão e à informação. “A restrição criou a história ‘chapa-branca’. Só se pode publicar o que agrada ao retratado”, afirma o advogado Gustavo Binenbojm, responsável pela ação.
Um parecer do advogado Gustavo Tepedino, professor titular de direito civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), anexado à ação, aponta ainda reflexos que as proibições podem ter no conhecimento que as gerações futuras terão da história do país. “Como contar a história do primeiro reinado sem levar em conta as relações extraconjugais do imperador, relevantes para a compreensão dos costumes da época, das ligações entre a burguesia e a nobreza, do método de nomeação de autoridades e cargos públicos?”, pergunta. “Seria razoável condicionar a divulgação de cartas e documentos que retratam fielmente o relacionamento do imperador com suas amantes e a imperatriz à autorização dos descendentes?”
A ação terá como relatora a ministra Cármen Lúcia, mas ainda não há previsão de quando será julgada.
O biografado ideal
“Enquanto esse dispositivo do Código Civil não cair, não chego nem perto de biografia”, diz o escritor e colunista da Folha Ruy Castro, autor de biografias como Anjo Pornográfico, de Nelson Rodrigues, Estrela Solitária, de Garrincha, e Carmen, de Carmen Miranda. Castro, que enfrentou uma longa batalha judicial com as filhas de Garrincha, diz que atualmente pensa duas vezes antes de se propor a contar a história de um personagem. “Não tem sentido trabalhar num projeto longo e complicado como uma biografia e, no fim do processo, vê-la empacar por causa de herdeiros oportunistas que, em muitos casos, nem gostavam do parente ilustre.”
Outra “vítima” dos artigos 20 e 21 do Código Civil, o escritor Nelson Motta foi alvo de uma ação de um personagem citado em Noites Tropicais, livro sobre a MPB – o que mostra que nem só biografias viram caso judicial. Em um dos capítulos, Motta conta um episódio que ganhou as páginas dos jornais nos anos 1960: uma investigação policial a respeito do suposto envolvimento de artistas com menores. Todos foram inocentados. Tempos depois, um dos músicos citados – e inocentado – processou Motta e a editora Objetiva. O autor foi condenado em primeira instância. “A tese da juíza era de que só a própria pessoa pode contar sua história. Então, se morre, a história acaba”, disse Motta.
Motta e a editora conseguiram reverter a sentença em segunda instância, mas a experiência o deixou precavido. Quando se preparava para escrever a biografia de Tim Maia (Vale Tudo – o Som e a Fúria de Tim Maia), Motta e a Objetiva reuniram-se com os herdeiros para firmar um contrato que previa o pagamento de royalties “e uma cláusula que garantia que eles não iam apitar”, conta. “Dar participação sai mais barato do que enfrentar uma ação depois”, explica Motta.
Ruy Castro discorda. “Sou a favor de um convívio razoável com os herdeiros, no sentido de facilitarem o meu trabalho, mas sem qualquer forma de ‘acordo’. Acho anti-higiênico”, diz. Por isso, Castro já definiu o perfil do biografado ideal. “Ele é solteirão, órfão, filho único, estéril e broxa.”
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[Cristina Grillo, da Folha de S.Paulo]