‘BRASÍLIA – Celso Furtado foi no Brasil um dos pais do ‘desenvolvimentismo’, linha de pensamento econômico surgida nas décadas de 40 e 50 e que até hoje influencia muitos intelectuais petistas, mas que cada vez está mais ausente das ações concretas do governo Lula. Coincidentemente, Furtado morre apenas dois dias após seu afilhado e seguidor Carlos Lessa ter sido demitido da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
No PT, o senador Aloizio Mercadante e a economista Maria da Conceição Tavares são alguns dos principais herdeiros do pensamento de Furtado. Foram eles três que sugeriram ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva a nomeação de Lessa para o BNDES. Acreditavam que o banco estatal, nas mãos de um desenvolvimentista, poderia cumprir um papel fundamental na indução de um novo ciclo de desenvolvimento, com eliminação das desigualdades sociais.
Na prática, entretanto, a presença de desenvolvimentistas no governo federal é hoje quase meramente figurativa. A política econômica é dirigida por uma corrente de pensamento oposta, conhecida como ‘monetarista’ ou ‘ortodoxa’. Para esse grupo, a tentativa do governo de gerar emprego e renda por meio de gastos públicos e crédito fácil só gera bolhas de crescimento e inflação. Por isso, o Banco Central deve ter autonomia para conduzir a política monetária e perseguir suas metas de inflação livre de qualquer pressão.
De acordo com a visão hoje dominante no Palácio do Planalto, o respeito a esses limites é uma imposição da atual conjuntura econômica internacional, dominada pelos humores do mercado. Ainda assim, muitos acreditam que é possível implementar uma política industrial e de desenvolvimento independente da política monetária e fiscal. É o que se estaria fazendo com os incentivos tributários aos investimentos e às exportações.
CAVALO DE PAU
Do ponto de vista do ideário original dos ‘desenvolvimentistas’, entretanto, que pressupunha um País com um mercado interno mais desenvolvido e mais igualdade social, o Brasil do governo Lula engatinha. Inúmeros economistas dessa ala já se desiludiram, enquanto outros permanecem crentes em uma mudança futura.
No início do governo, por exemplo, o ministro José Dirceu justificava a manutenção da política econômica alegando que não se podia dar ‘cavalo de pau em transatlântico’. Mas era taxativo: uma transição deveria se iniciar em um ano e meio, ou seja, até junho de 2004. É o que, para alguns, estava acontecendo no primeiro semestre até que o Banco Central decidiu interromper a queda nas taxas de juros por causa das pressões inflacionárias. Mais uma vez, o chamado ‘equilíbrio macroeconômico’ passou a ser invocado para conter o crescimento, e a visão monetarista se impôs sobre a desenvolvimentista.’
José Paulo Kupfer
‘Celso Furtado (1920-2004)’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 21/11/04
‘É uma ironia que Celso Furtado tenha se despedido da vida no momento em que o governo Lula, aquele em que Furtado depositou, publicamente, suas últimas e maiores esperanças, parece a ponto de abandonar por completo as idéias desenvolvimentistas que ele defendeu com paixão e competência ao longo de uma vida intelectualmente impecável. Economista brasileiro de maior prestígio internacional, com obras traduzidas em meia centena de idiomas, o paraibano de Pombal Celso Monteiro Furtado, 84 anos, morreu na manhã do sábado, 20 de novembro, em sua residência, no Rio, de um ataque cardíaco.
O presidente Lula decretou luto oficial por três dias. Mas terá de amargar o fato de que, no embate político-ideológico que culminou com a demissão do desenvolvimentista Carlos Lessa da presidência do BNDES, Furtado manifestou apoio à permanência de Lessa e engrossou as fileiras dos que reclamam mudança de rumos na condução da política econômica. Lula, que, num gesto carregado de simbolismo e referência, fizera questão de visitar Furtado tão logo foi eleito presidente, demitiu Lessa na quinta-feira, 18.
Participante ativo da eterna peleja teórica que contrapõe os que, como ele, vêem os fatos econômicos como fenômenos sociais e históricos aos que os encaram como manifestações coletivas de comportamentos individuais, Furtado, com saúde frágil há alguns anos, vinha restringindo suas manifestações públicas. Em todas, porém, manteve uma férrea coerência, a mesma que orientou uma trajetória inigualável de acadêmico e homem público. Em maio, por exemplo, impossibilitado de comparecer a um seminário no Rio, enviou a seguinte mensagem: ‘Se continuar a prevalecer o ponto de vista dos recessionistas – aqueles que colocam os interesses dos nossos credores acima de outras considerações na formulação da política econômica – temos de nos preparar para um longo retrocesso’.
Celso Furtado integrou uma geração de economistas latino-americanos de frondosa produção intelectual. Juntamente com o argentino Raúl Prebisch, esteve no centro do laboratório de idéias desenvolvimentistas do qual resultou, no imediato pós-Guerra, a criação da Cepal, o escritório econômico das Nações Unidas para a América Latina. Fez parte também, na primeira metade dos anos 50, do grupo que desenhou o sistema brasileiro de financiamento ao fomento econômico, cujo ponto de origem foi o então Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), que depois agregou um ‘S’ de social à sigla, embora nos anos mais recentes não tem feito inteiramente jus ao nome adicionado. Nesta empreitada, destaque-se, esteve ao lado de Roberto Campos, outro economista brasileiro ilustre, ainda que de posições políticas e ideológicas opostas às de Furtado.
Com base numa inspirada análise da história econômica latino-americana, Furtado e seus colegas produziram uma teoria do desenvolvimento original. Grosseiramente resumida, a nova formulação entendia o subdesenvolvimento não como uma etapa no rumo do desenvolvimento, mas como um estado próprio das economias periféricas. De acordo com a nova teoria, a superação dessa situação estrutural exigia o estabelecimento de mecanismos sociais e econômicos que abrissem espaço para uma industrialização forçada das regiões subdesenvolvidas. Vêm daí, por exemplo, as idéias de estímulo à substituição de importações e à diversificação produtiva pela proteção temporária de setores emergentes, a partir de um quadro desenhado e acompanhado por um sistema formal de planejamento econômico.
Embora em países como o próprio Brasil os avanços alcançados na industrialização sejam inegáveis, o que sem dúvida permitiria classificar a experiência regional de planejamento e industrialização tardia como relativamente bem sucedida, as distorções produzidas também dão suporte a visões que permitem qualificá-la como relativamente fracassada. Idealizador e primeiro dirigente da Sudene, ministro do Planejamento de João Goulart, Furtado foi obrigado a exilar-se, em 1964.
Exilado, lecionou na Sorbonne, em Washington e em Cambridge, entre 1964 e 1974, quando voltou ao Brasil. Nessa época, aprofundou suas idéias sobre o caráter estrutural do subdesenvolvimento. Mais tarde, foi ministro da Cultura no governo Sarney, entre 1986 e 1988. Em 1997, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, tendo ocupado a cadeira 11, vaga meses antes com a morte de seu amigo Darci Ribeiro, por um conjunto sólido de escritos sobre desenvolvimento econômico, no qual sobressai o clássico ‘Formação Econômica do Brasil’.
Em 2003, num movimento que contou com a adesão de mais de 600 economistas de várias partes do mundo e o patrocínio de quatro vencedores do Nobel, além de entidades e instituições internacionais, foi lançada a candidatura de Furtado ao Prêmio Nobel de Economia. O brasileiro, o primeiro a disputar a indicação, não foi escolhido. A láurea coube a dois econometristas que pesquisam a volatilidade de séries temporais, conhecimento específico com aplicação sobretudo no mundo das finanças.
O Nobel de Economia, no período da globalização recente, que abrange as duas últimas décadas, tem sido preferencialmente conferido a expoentes de uma ciência econômica apoiada nas facilidades e na amplitude dos cálculos computacionais, com a aspiração – às vezes inconfessada, outras nem tanto –, de galgar o status de ciência natural, à semelhança, por exemplo, da Física. A partir do desmonte sistemático do Estado e da ‘financeirização’ dos fluxos econômicos, essas idéias emprestaram a base teórica para a dissolução, no mundo industrializado, da sociedade do bem-estar, e para a cristalização da pobreza e da concentração de renda, nos países subdesenvolvidos.
Ao longo da história dos Nobel de Economia, que começa em 1969, são raros os casos de premiação de especialistas em desenvolvimento e bem-estar social. Mais rara ainda é a escolha de economistas nascidos no chamado Terceiro Mundo. O caso do indiano Amartya Sen, economista do Trinity College, de Cambridge, cujos estudos do desenvolvimento econômico apresentam um nítido viés social e histórico, premiado em 1998, é a exceção que confirma a regra. Como Sen, o criador do Índice do Desenvolvimento Humano (IDH), das Nações Unidas, Celso Furtado, por tudo, era um absoluto azarão.
O resultado da hegemonia desse tipo de pensamento econômico tecnocrático e sem compaixão humana, da qual Celso Furtado encontrava-se a anos-luz de distância, é que, apesar do progresso tecnológico e material, tem aumentado e já supera a marca de 2 bilhões o exército de seres humanos na face da Terra condenados a sobreviver com menos de US$ 2 por dia. Na América Latina, especificamente, abaixo dessa linha de pobreza encontram-se hoje mais de 130 milhões de pessoas – cerca de um terço do total e 10 milhões a mais do que em 1990.
Entre os adoradores do mercado as idéias de Furtado não passam de um anacronismo desprezível. Mas a verdade é que, enquanto as teorias ‘modernas’ não conseguirem remover do mundo a vergonhosa mancha da pobreza e da exclusão, idéias como as de Celso Furtado, a um só tempo generosas e rigorosas, permanecerão vivas.’
Aloizio Mercadante
‘Um grande brasileiro’, copyright O Globo, 22/11/04
‘Mestre e referência intelectual, há quase meio século, de uma parcela expressiva dos economistas brasileiros, Celso Furtado sempre foi também um símbolo da esperança de transformação do nosso país, de ruptura com seu passado de dependência e desigualdade social. Ele nunca abandonou o sonho de ver o Brasil desenvolvido — e desenvolvimento, na sua concepção, não é um processo meramente econômico, envolve também conotações sociais, éticas e políticas, dentro das quais valores como democracia, soberania e cidadania ocupam um lugar central.
Este sonho alimentou sua criatividade e sustentou sua coerência e integridade ao longo de sua trajetória como intelectual e homem público. Foi, em realidade, o substrato de toda sua imensa contribuição ao entendimento da realidade social brasileira e à formulação de políticas de desenvolvimento nacional e regional.
Não por acaso sua obra tem como fio condutor, que articula suas análises em diversos momentos da nossa evolução econômica, o resgate da dimensão histórica e estrutural na abordagem dos problemas do desenvolvimento brasileiro. Isso se evidencia em sua visão do subdesenvolvimento como condição específica dos países periféricos e em sua insistência em colocar a análise da realidade social como matriz constitutiva para a formulação das políticas de desenvolvimento.
Daí derivam suas teses sobre o papel do Estado e do planejamento no desenvolvimento, sobre a subordinação das políticas monetária e cambial à política de desenvolvimento e sobre a necessidade de articular a transformação econômica com a homogeneização social através de reformas estruturais e políticas redistributivas. Esses elementos convergem para a formulação de um projeto de Nação — expressão de uma vontade nacional articulada em torno a objetivos fundamentais — mediante o qual se avançaria na implementação do processo de transformação da economia e da sociedade.
Esses temas continuam sendo peças relevantes no debate econômico atual. A discussão entre monetaristas e estruturalistas, por exemplo, que opunha nos anos 50 as correntes liberais às reformistas, é a mesma que hoje opõe os monetaristas, travestidos de neoliberais, aos chamados desenvolvimentistas. Também são os mesmos, embora com invólucros aparentemente diferentes, os debates envolvendo a relação Estado/mercado e o caráter da inserção do país na economia internacional.
Hoje, lamentavelmente, não podemos mais nos beneficiar do convívio e da criatividade de Mestre Furtado. Mas seu exemplo e sua obra permanecem, são parte do patrimônio ético e cultural de nosso país. Por isso, creio que a melhor homenagem que lhe podemos prestar é aplicar, na prática, as reflexões contidas em um dos seus últimos escritos, sobre a responsabilidade do economista:
‘O valor do trabalho de um economista, como de resto de qualquer pesquisador, resulta da combinação de dois ingredientes: imaginação e coragem para arriscar na busca do incerto…. Mas não basta armar-se de instrumentos eficazes para alcançar esse objetivo. Atuar de forma consistente no plano político, portanto, assumir a responsabilidade de interferir no processo histórico, impõe ter compromissos éticos.’
E mais adiante, conclui:
‘Quando o consenso se impõe a uma sociedade, é porque ela atravessa uma era pouco criativa. Ao se afastar do consenso, o jovem economista perceberá que os caminhos já trilhados por outros são de pouca valia. Logo notará que a imaginação é um instrumento de trabalho poderoso, e que deve ser cultivada. Perderá em pouco tempo a reverência diante do que está estabelecido e compendiado. E, à medida que pensar por conta própria, com independência, conquistará a autoconfiança e perderá a perplexidade.’’
José Serra
‘Um apaixonado pela razão’, copyright O Globo, 22/11/04
‘Início de 1963, aeroporto de Congonhas, São Paulo, porta de desembarque, sábado ensolarado. Lá estava eu aguardando a chegada de um Convair da ponte aérea que trazia o então ministro do Planejamento, Celso Furtado, para levá-lo a um debate sobre o Plano Trienal, preparado por ele mesmo para João Goulart, cujo governo saíra fortalecido depois da recente vitória do presidencialismo contra o sistema parlamentarista, num plebiscito. Eu tinha 20 anos e presidia a União Estadual dos Estudantes, que, junto com a UNE, organizara o seminário. Celso chegou sozinho, elogiou a iniciativa do debate e propôs tomarmos um café, antes de seguirmos para a Cidade Universitária. Por seus livros e, principalmente, pela Operação Nordeste e a criação da Sudene, para nós ele já era um mito e foi uma surpresa constatar que era um homem simples, cordial e discreto.
Na mesa, o debatedor principal era Mario Alves, baiano da geração do ministro e dirigente nacional do Partido Comunista Brasileiro. O Plano Trienal pretendia, de fato, combater a inflação, naquela altura superior a 50% ao ano, promover reformas no setor público e oferecer um caminho para que a economia brasileira retomasse o dinamismo da segunda metade da década anterior. Previa deter o galope inflacionário combatendo o déficit público, controlando a expansão monetária, melhorando a oferta agrícola, atenuando o desequilíbrio externo e freando a espiral preços/salários. A esquerda criticava não os objetivos mas os instrumentos e a consistência do próprio plano, que, embora defendesse a reforma agrária, não previa a ampliação da participação do Estado na economia nem maiores restrições ao capital estrangeiro, considerados por ela como fatores-chave de qualquer estratégia econômica nacional que se pretendesse bem-sucedida.
Para os padrões atuais, o debate foi civilizadíssimo. Mario Alves — que poucos anos depois morreria assassinado sob tortura nos porões da ditadura — falou de forma crítica mas bem educada e as perguntas e comentários do público seguiram a mesma linha. As pessoas, principalmente estudantes, estavam a fim de se informar, de aprender. Celso fez uma exposição clara, com domínio de conceitos e perspectiva histórica, rebateu de forma suave as críticas, esclareceu dúvidas e respondeu com clareza e elegância todas as questões. Um poço de racionalidade. Ganhou o debate e mesmo aqueles que não se convenceram de suas teses devem ter saído de lá desejando que sua razão fosse a verdadeira. A maioria, estivesse ou não fora da realidade, não apostava no quanto pior melhor.
Naquela tarde, assistindo ao debate (e até falando, imaginem!) decidi que, depois de concluir meu curso de engenharia, iria estudar economia. Ficara fascinado pelo duelo entre Mario e Celso, e, acima de tudo, com a complexidade da economia e dos problemas econômicos do país, cuja compreensão pareceu-me essencial para a construção do Brasil que ambiciosamente sonhávamos.
No bojo da instabilidade política e sob o impacto da aceleração da inflação, que já estava em andamento, as diretrizes do Plano Trienal mal saíram do papel. No segundo semestre daquele ano Celso já havia voltado para a Sudene. Em abril do ano seguinte rumava para o exterior, depois do golpe militar que cassou seus direitos políticos e vitimou a democracia brasileira do pós-guerra.
Já nos primeiros meses angustiados do exílio, inicialmente na França, depois de ler um par de manuais de economia, debrucei-me sobre três livros do ex-ministro brasileiro: ‘Formação econômica do Brasil’, ‘Desenvolvimento e subdesenvolvimento’ (um conjunto de ensaios que, para mim, é o melhor livro de Celso Furtado) e ‘A pré-revolução brasileira’, já editado em francês. Ele combinava os instrumentos da melhor análise econômica cambridgeana, o conhecimento histórico, o domínio e a confiança na razão como elemento mobilizador e transformador das sociedades. Um estilo seco, objetivo, sem qualquer grandiloqüência.
Nenhum intelectual exerceu tanta influência entre nós quanto Celso Furtado, e nenhum brasileiro foi tão reconhecido, ouvido e publicado no exterior como ele, com sua obsessão pela compreensão histórico-estrutural do processo de subdesenvolvimento e das condições complexas para superá-lo. Um dos fundadores da ‘escola’ estruturalista latino-americana foi seu mais profícuo formulador.
Com Celso, aliás, vai o último grande personagem dessa escola, que firmou o que há de identidade latino-americana, na segunda metade do século passado: Raul Prebisch, Jorge Ahumada, Juan Loyola e o grande Anibal Pinto. Como disse ontem seu principal auxiliar na época da Sudene, Francisco de Oliveira, ‘poucos cientistas sociais podem se orgulhar de terem visto suas idéias transformarem-se em força social e política; a obra de Furtado passou por essa dura prova da História. Contra ou a favor ela exige que se tome posição a seu respeito’.
Uma obra cuja valorização é extremamente oportuna quando nosso país vai completando um quarto de século de semi-estagnação econômica — a pior fase desde o último terço do século XIX — e, mais ainda, quando a falta de um projeto nacional de desenvolvimento chega a ser apreciada pelo pensamento dominante como virtude nacional. Como se as grandes questões econômicas e sociais pudessem ser resolvidas pela combinação de ‘inativismo’ estatal, sinalizações amigas ao mercado e ao assistencialismo, estigmatizando-se o debate sobre políticas macroeconômicas alternativas.
A última vez que encontrei Celso Furtado foi em abril último, no seu pequeno apartamento em Paris, que visitei em companhia dos jornalistas Reale Junior e Mario Sergio Conti. Sua lucidez estava intacta, ao contrário de suas condições físicas. Entre outros temas, numa conversa despretensiosa, ele falou de sua formação, da figura de seu pai. Mas começou esclarecendo-me que a poltrona de couro já havia sido aposentada, houvera poucas semanas.
Explico: quando houve o golpe no Chile, em 1973, antes de ser preso, eu havia enviado móveis e livros para a França, para onde iria com minha família, convidado para trabalhar em universidade. Depois da prisão e de uma longa reclusão numa embaixada, mudei os planos. Uma vez na Europa, visitei-o em Paris, onde ele morava, e depois em Cambridge, na Inglaterra, onde passou um tempo como professor visitante. Hospedou-me alguns dias em sua casa. Numa conversa descontraída, eu lamentei: ‘Se for mesmo para os Estados Unidos (como veio a acontecer), vou acabar perdendo meus móveis. Você não quer guardar, e usar, uma poltrona de couro nova, que eu gosto tanto e mal cheguei a usar?’ Ele topou e, no final, é óbvio, eu nunca quis a poltrona de volta, a mesma que durante 30 anos foi usada por ele, Rosa e suas visitas, para minha enorme satisfação.’
Carlos Heitor Cony
‘Celso Furtado’, copyright Folha de S. Paulo, 22/11/04
‘RIO DE JANEIRO – Na última quinta-feira, tive de sair mais cedo para ir ao médico. Ao me despedir de Celso Furtado, ele me tomou as mãos e perguntou como ia minha saúde. Agradeceu as palavras que, durante a sessão, foram ditas a respeito de seu artigo (que seria o último), publicado na véspera, no ‘Jornal do Brasil’.
Um artigo antológico, sobre a hegemonia do capital internacional, com dois tentáculos que asfixiam os países que lutam para sair do subdesenvolvimento: o Consenso de Washington como Legislativo e o FMI como Executivo.
Lutador histórico de nossa soberania, Celso teve formação especializada, mas nunca deixou de ser um humanista. Lembro duas conferências feitas recentemente por ele na Academia: uma sobre Euclides da Cunha, outra sobre Eça de Queiroz.
Revelou o que eu não sabia. Durante a Segunda Guerra Mundial, da qual participou como integrante de FEB, ele passou por Lisboa e fez questão de ser fotografado, sozinho e fardado, junto ao monumento do mestre, ali na rua do Alecrim
Era um homem bonito. Quando completou 80 anos, acompanhei-o à Paraíba, sua terra natal, onde seria homenageado pelo governo e povo paraibanos. Estava em forma, assombrosamente lúcido.
Nos dois últimos anos, a saúde declinou, mas seus olhos verdes permaneciam jovens, iluminados. Precisava de ajuda para sentar ou levantar de sua poltrona, tinha um jeito enternecido de agradecer qualquer atenção que recebia.
Não tenho preparo suficiente para falar sobre o economista e o sociólogo. Sei que nossa paisagem intelectual fica mais pobre sem ele. E a Academia mais órfã.
Apesar da saúde em declínio, ele ia a todas as sessões, a todas as palestras e eventos que ali se realizam. Com alegria, participava de nossa vida, recuperava o menino paraibano da infância e mocidade. A Academia tornou-se sua turma de amigos, sua tribuna, sua última casa. Era emocionante vê-lo. E impossível, agora, não chorá-lo.’
Folha de S. Paulo
‘Economista Celso Furtado morre aos 84’, copyright Folha de S. Paulo, 21/11/04
‘Decano dos economistas brasileiros, Celso Furtado morreu na manhã de ontem aos 84 anos, em sua casa, em Copacabana. Autor do clássico ‘Formação Econômica do Brasil’ (1959), ele fundou a Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste) na década de 50, foi ministro do Planejamento no governo João Goulart (1961-1964) e ministro da Cultura no governo José Sarney (1985-1990).
Até as 15h de ontem, sua viúva, a jornalista Rosa Freire D´Aguiar, não havia informado o momento exato nem a causa imediata da morte de Furtado. Mas o seu falecimento já era conhecido e lamentado por amigos de longa data, como o ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) Carlos Lessa e a economista Maria da Conceição Tavares.
O corpo de Furtado será velado na ABL (Academia Brasileira de Letras), para a qual ele foi eleito em agosto de 1997.
O presidente da ABL, Ivan Junqueira, ainda tentava no meio da tarde falar com Rosa D´Aguiar para preparar o velório e o enterro de Furtado.
Nos últimos meses, o economista pouco falou em público. Sua saúde estava abalada pela doença de Parkinson e por um câncer ósseo, segundo Junqueira.
Seu último gesto político foi a assinatura do manifesto que defendia a permanência na presidência do BNDES de Lessa, seu discípulo, indicado para o cargo por ele e por Maria da Conceição Tavares.
Desilusão
Com quem conversava, Celso Furtado não escondia a desilusão com os rumos da política econômica do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, cuja eleição apoiou. Numa curta conversa por telefone com a Folha, há quatro meses, ele lamentou a falta de novas idéias para o desenvolvimento autônomo brasileiro.
Em maio passado, por causa da saúde abalada, Furtado não participou de um seminário em sua homenagem promovido pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Numa mensagem lida por seu filho, André, ele criticou o corte ‘desmedido’ de investimentos públicos do governo com o objetivo de cumprir as metas de superávit fiscal, ‘impostas por beneficiários de altas taxas de juros’. Disse que isso escapava ‘de qualquer racionalidade’.
Na mensagem, Furtado avaliou que, no Brasil, ‘não houve correspondência entre crescimento econômico e desenvolvimento’ – para o primeiro se converter no segundo, disse, é preciso que seja ‘fruto da realização de um projeto, expressão de uma mensagem política’.
Celso Furtado nasceu em 26 de julho de 1920, em Pombal, na Paraíba. Bacharel em Direito pela UFRJ e doutor em economia pela Universidade de Paris (Sorbonne), ele participou da Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial.
De 1944 a 1945, foi técnico de administração do governo de Getúlio Vargas. No fim dos anos 40, participou da fundação da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), onde contribuiu, ao lado do economista argentino Raúl Prebish, para um novo enfoque sobre as causas do subdesenvolvimento da América Latina.
Exílio
Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados por dez anos. No exílio, foi professor das universidades Yale (EUA), Sorbonne (França), Cambridge (Reino Unido) e Columbia (EUA).
Com a redemocratização, foi embaixador do Brasil na Comunidade Econômica Européia, antes de assumir a pasta da Cultura no governo Sarney.
Celso Furtado publicou mais de 30 livros. O último deles, ‘Em Busca de um Novo Modelo’, foi publicado em 2002.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou luto oficial de três dias a partir de ontem.
REPERCUSSÃO
CARLOS LESSA, economista, ex-presidente do BNDES:
‘Perdi um amigo de 42 anos e estou extremamente abalado. Ele foi um brasileiro com letras maiúsculas, prova de que os brasileiros são grandes. Era um gigante no mundo das idéias, do comportamento moral e ético, era de uma honestidade total’.
ANTONIO PALOCCI FILHO, ministro da Fazenda:
‘Lamento profundamente o falecimento do professor Celso Furtado. É uma grande perda para o Brasil, cuja história econômica e social está fortemente marcada pela sua vigorosa contribuição. Seu nome ficará para sempre na memória nacional. Celso Furtado criou legiões de admiradores e discípulos por seu trabalho intelectual e profissional. Foi o primeiro economista a apontar a importância do combate à desigualdade de renda para o crescimento de longo prazo. Ao longo de nossa história ninguém superou Celso Furtado na compreensão dos desafios regionais do desenvolvimento nacional. Sua ausência será muito sentida por todos nós que sempre o admiramos’.
ANTONIO CANDIDO, crítico literário, professor emérito aposentado da USP
‘Os grandes homens são raros. Celso Furtado é certamente um deles, porque pôs a sua inteligência a serviço de problemas essenciais do país, com realizações marcadas pelo realismo dos procedimentos e a radicalidade dos objetivos, como foi o caso da Sudene. Essas realizações e mais os seus escritos configuram um tipo de intelectual empenhado em medidas e atos que favoreçam a justiça social. Expressiva neste sentido foi, por exemplo, a declaração de que o movimento dos sem-terra era o mais importante do Brasil no século 20. Neste caso, ele sentiu bem, na linha das suas aspirações, que faltava a atuação decidida do trabalhador rural a fim de completar o amadurecimento político da população, sem o qual as soluções tendem a emanar de cima. É preciso ressaltar a serenidade com que esse pensador eminente praticava suas idéias, sem prejuízo da inflexível firmeza.
JOSÉ LUÍS FIORI, cientista político e professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro:
‘Com a morte de Celso Furtado o Brasil perde um grande pensador e um líder, mas sobretudo perde um homem que jamais abriu mão de suas idéias, de sua coerência ética e de sua paixão pelo Brasil. Morre pouco depois de saber da demissão da presidência do BNDES do seu discípulo, o professor Carlos Lessa, atropelado pelos interesses financeiros que comandam o Brasil já faz tempo e que conseguem destruir todos os brasileiros honestos que tentam resistir a sua onipotência. Talvez tenha sido o último gesto de protesto ou suspiro de tristeza deste grande patriota que foi Furtado’.
NELSON JOBIM, presidente do Supremo Tribunal Federal:
‘Ele foi um homem importante para o Brasil. Colocou a inteligência e a capacidade de trabalho a favor do país. Ele se foi, mas o legado e o ensinamento dele -a necessidade de trabalharmos todos para a redução das desigualdades- não morrem’.
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., economista e professor da FGV-EAESP:
‘Ele foi o economista brasileiro mais importante da segunda metade do século 20. Principalmente pela contribuição intelectual dele, uma obra muito importante, criativa, original, de influência enorme para uma série de economistas. Junto com Raúl Prebisch, foi dos mais importantes economistas latino-americanos’.
CRISTOVAM BUARQUE, senador (PT-DF):
‘Nós perdemos um dos raros brasileiros que foram capazes de colocar uma mente absolutamente lúcida a serviço do povo. Ele foi um dos homens que mais contribuíram para criar um Brasil rico e justo. Ele, como muitos de nós, estava em uma fase de muita inquietação e desconforto com a situação que estamos vivendo, com os rumos do país’.
JOSÉ DIRCEU, ministro-chefe da Casa Civil
‘O Brasil perde um pouco de sua alma. Nós, da geração de 68, perdemos um homem que sempre nos guiou, nos ensinou, e que para todos nós era um exemplo de vida, da vida íntegra que ele levou, dedicada totalmente ao Brasil e a nosso povo. É um momento de tristeza, mas também de reafirmar, particularmente eu quero deixar bem claro, que sou absolutamente fiel a seus ideais, a seu pensamento e a seu exemplo de vida. No governo do presidente Lula sempre estarei ao lado das pessoas que sonham’.
WALDIR PIRES, ministro da Controladoria Geral da União:
‘Poucos brasileiros se identificaram tanto com a necessidade de transformações sociais e econômicas e com a instalação do Estado democrático que tivesse a responsabilidade de construção de um mundo autônomo e de solidariedade. Celso é uma das figuras mais extraordinárias da nossa vida política, porque ele era, de fato, um pensador político’.’