Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Luiz Zanin Oricchio

‘Um multifacetado painel da história política brasileira contemporânea pode ser visto nos documentários Peões, de Eduardo Coutinho, e Entreatos, de João Moreira Salles, ambos com estréia marcada para dia 26, em São Paulo e no Rio. No filme de Salles acompanha-se os bastidores da campanha vitoriosa de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência, em 2002. Peões mostra outro lado da história. Coutinho vai atrás dos anônimos grevistas de 1979/80, no ABC, e tenta descobrir como vivem hoje e como se recordam das lutas daquela época.

São histórias de contrastes mas que não se opõem – antes, se complementam. De um lado, em Peões, se tem os antigos metalúrgicos que hoje estão aposentados ou voltaram para suas cidades, algumas no Nordeste. A maior parte recorda as greves comandadas por Lula como um momento excepcional em suas vidas. Aquele momento em que se sentiam ‘fazendo história’. É o caso da mulher que lembra com orgulho de ter escondido da polícia a cópia de um filme (Linha de Montagem, de Renato Tapajós) e assim ter salvado um documento histórico sobre a greve.

De outro lado, temos em Entreatos, o ‘peão que deu certo’ e está a caminho da posto máximo da República. No filme de João Moreira Salles vemos um Lula desenvolto, piadista, certamente posando para a câmera, mas com muita espontaneidade. Vemos o candidato sendo barbeado, enquanto concede uma entrevista por celular, e exultando quando recebe o apoio de empresários à sua campanha.

SAIA-JUSTA

Há momentos de saia-justa registrados no filme, sendo o mais significativo aquele em que José Dirceu estranha a presença de cineastas na intimidade da campanha e pergunta: ‘Quem é esse pessoal?’ O secretário de Lula, Gilberto Carvalho, responde que é gente de confiança, fazendo um filme autorizado pelo próprio candidato, e a fita da gravação é guardada todo dia num cofre. Cético, Dirceu responde: ‘Se você soubesse o que eu tenho das outras campanhas, você não falaria isso, Gilberto.’

Não faltam indiscrições também em Peões, quando os ex-companheiros falam de Lula. Em geral, o tom é elogioso, mas uma delas, a dona de uma lanchonete, diz que o atual presidente bebia demais. A cena acabou sendo cortada da versão final do filme, segundo o diretor Eduardo Coutinho para proteger, não Lula, mas a própria personagem que dá o depoimento. ‘Eu acabei me convencendo de que ela seria hostilizada, tida como traidora de classe e então, pela primeira vez na minha carreira, cortei uma fala de personagem depois que o filme já estava montado’, disse Coutinho.

Mas não faltam referências à bebida também no outro filme. Em Entreatos, Lula diz que ele e seus amigos iam na hora do almoço a um boteco onde tinham garrafas de cachaça com seus nomes gravados no rótulo. ‘A gente tomava três, quatro doses de pinga, comia um prato de comida da altura de um Pão de Açúcar, em 15 minutos, e depois ia jogar bola no sol quente’, diz.

O diretor do filme não vê motivo de escândalo nesse tipo de declaração. ‘É um registro da cultura operária’, diz João Moreira Salles. ‘Se alguém disser que um executivo toma dois dry martinis e depois vai jogar golfe antes de voltar para o escritório, ninguém vê problema nenhum. A reação escandalizada não passa de sintoma de preconceito de classe’, acredita o cineasta.

De qualquer forma, há cenas bastante significativas no filme e que não dizem respeito a hábitos etílicos. Por exemplo, na maneira como o marketeiro Duda Mendonça dirige a campanha, enfatizando o que Lula deve ou não dizer. ‘As pessoas têm medo do Lula grevista’, insiste. ‘Você é um ex-sindicalista, agora está a caminho de ser o presidente da República’, diz. Há uma passagem que fica engraçada e não despertaria a atenção meses atrás, quando Duda Mendonça diz que entende muito de futebol – e de brigas de galos.

Talvez as melhores seqüências sejam aquelas filmadas no jatinho usado na campanha. A intimidade no aviãozinho, o tédio do vôo, forneciam as condições para que o candidato se abrisse. Numa delas, Lula relembra a fundação do Partido dos Trabalhadores e sua relação com os intelectuais. ‘Eles queriam discutir se o partido deveria ser tático ou estratégico e eu respondia: `vamos fundar um partido e pronto, pô´. ‘

Em outra, Lula, um tanto melancólico, já antevê alguns problemas para quando assumir o poder. Teme ser engolido pela máquina burocrática. E receia a influência dos militares: ‘Aqueles militares, atrás de mim, dando palpites, como fazem com o Fernando Henrique Cardoso, me incomoda demais, demais, demais…’’

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‘´Tirei cena da bebida para proteger a personagem´’, copyright O Estado de S. Paulo, 18/11/04

‘Eduardo Coutinho é autor de um documentário clássico, Cabra Marcado Para Morrer, e de alguns dos melhores filmes do cinema brasileiro recente como Santo Forte e Babilônia 2000. Pode ser considerado um mestre na arte de extrair depoimentos dos seus personagens. Na entrevista abaixo, ele explica sua polêmica decisão de cortar uma cena de Peões.

Você afirmou que tirou a cena da mulher da lanchonete, que diz que Lula bebia demais, com o propósito de protegê-la. Não tem medo de que fique a impressão de você tirou a cena para proteger o próprio Lula?

Não tem jeito. Vai ficar parecendo isso mesmo. Por isso foi tão difícil tirar a cena. Mas para mim, depois de toda a exploração com essa história da bebida feita pelo jornalista do New York Times, tive medo de que ela fosse considerada uma traidora da classe e isso tornasse a sua vida impossível. A matéria do NYT foi imbecil e a resposta do governo foi burra. Foi criado um ponto muito sensível com essa história da bebida. Infelizmente, quando percebi, vi que tinha de tirar. Era um imperativo ético: defender a quem não pode se defender. O Lula não precisa de ninguém que o defenda.

E você não tem medo de que o seu filme seja analisado só por esse tipo de aspecto?

É um risco mesmo. No Brasil, só factóides ganham destaque. Mas acho que num segundo momento, tanto o meu filme como o do João Moreira Salles serão vistos em seu conjunto e não apenas por esses episódios, totalmente secundários.

Em Peões há certa melancolia nas pessoas, como se recordassem nostalgicamente um tempo em que haviam lutado, sido mais ativas. Concorda?

Acho que é reflexo da mudança história. Isso passa em filigrana no filme. Por exemplo, um dos depoente diz, com bom humor, que hoje não daria para fazer uma greve no ABC, simplesmente porque robô não faz greve. Tudo mudou muito. Outra pessoa diz uma coisa muito certa: naquele tempo, você saía de uma fábrica e havia emprego em outra. Hoje, o desemprego desarticulou o movimento sindical. É natural então que apareça esse tom melancólico. É a melancolia com o rumo que a história tomou.

Como escolheu os personagens?

Meu negócio é trabalhar com anônimos. Na verdade, só abro uma exceção para o Djalma Bom, mas que tem também uma aparição rápida. Ou seja, descartei todos os ex-companheiros de Lula que haviam ascendido em postos sindicais, por exemplo. Queria ouvir gente que não tinha grande coisa a perder. Destes vêm as melhores revelações. Por exemplo, do último que dá depoimento e que constrói a definição do peão, que dá título ao filme.’

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‘´Procuro o importante nos pequenos detalhes´’, copyright O Estado de S. Paulo, 18/11/04

João Moreira Salles (irmão de Walter Salles, diretor de Central do Brasil) é um dos documentaristas mais festejados da nova geração. Seu Notícias de uma Guerra Particular abriu caminho para o novo cinema brasileiro, que se preocupa com a violência urbana e o tráfico de drogas. Em conversa com o Estado, Salles explica por que resolveu fazer Entreatos e participou desse projeto ao lado de Eduardo Coutinho.

Como surgiu a idéia de Entreatos?

Eu achava que aquele era um momento histórico. Mesmo que o Lula não ganhasse a eleição eu queria ter esse registro. Ao mesmo tempo, sempre quis tocar um projeto junto com o Eduardo Coutinho. Então acabaram sendo filmes complementares. Mas nada foi tão pensado assim. Pela idéia inicial, cada um de nós filmaria a campanha de um dos candidatos.

E por que isso não foi feito?

Porque seria inviável. Em primeiro lugar, o Coutinho não teria paciência para acompanhar um candidato como eu fiz. Em segundo, um filme como Entreatos precisa da total concordância do candidato. Quando cada um soubesse que o adversário também estava sendo filmado, tudo seria inviabilizado. Acabamos ficando nesse formato e foi bom porque para entender Lula seria preciso entender a cultura operária da qual ele fazia parte – e isso o filme do Coutinho faz.

O filme começa como uma porta que se abre para vocês e depois com uma porta que se fecha e a câmera fica de fora. Por quê?

Quis mostrar ao espectador que não estou registrando tudo. Nem poderia. Estou registrando o que me permitem. No momento em que a porta se abre, eu e minha equipe entramos na intimidade de uma campanha, coisa inédita no Brasil até onde eu sei. Mas depois, quando tudo termina, há o núcleo duro do futuro governo, Lula, Dirceu, Palocci, e nessa hora a câmera se retira.

Há espectadores que se queixam de que você não registra o Lula épico, aquele que conduz as greves, funda o partido e chega ao poder.

É uma opção pessoal. Prefiro o antiépico, o pequeno, o familiar. Acho que as grandes revelações vêm daí. Mas também isso não era planejado. Tenho mais de 24 horas filmadas, com cenas de comícios e encontros com multidões. Algumas me pareceram muito repetitivas. Acho que o Lula verdadeiro está em outra parte. Naqueles momentos no avião, no apartamento dele, na cadeira de barbeiro. São momentos menos defensivos e nos quais a verdade pode aflorar com mais facilidade.’



Rafael Cariello e Tereza Novaes

‘Coutinho diz proteger mulher que fez relato’, copyright Folha de S. Paulo, 19/11/04

‘O cineasta Eduardo Coutinho, autor do documentário ‘Peões’, tomou o que chama de ‘decisão tardia’: cortar uma cena de seu filme em que uma colega de Luiz Inácio Lula da Silva nos tempos de sindicato afirma que o presidente ‘bebia mesmo’, a ponto ter ‘um garrafão’ no armário de sua sala no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo (SP).

Coutinho disse que a decisão foi motivada pela preocupação de proteger ‘a personagem’, e não o ‘objeto, que é o Lula’. Segundo o cineasta, ela poderia ser vista pelo sindicato como uma ‘traidora de classe’. A declaração foi feita anteontem, em São Paulo, após a apresentação de outro filme produzido na eleição de 2002, ‘Entreatos’, de João Moreira Salles.

O filme de Coutinho conta as trajetórias de ex-companheiros do presidente, desde os tempos do sindicato, no final da década de 70, até os dias atuais. A personagem em questão, Luíza, era, e ainda é, a responsável pela lanchonete do sindicato.

Desde que o tema dos supostos hábitos alcoólicos do presidente vieram à tona, após uma reportagem do ‘New York Times’ neste ano, Coutinho vem recebendo, segundo disse, pedidos para a retirada da cena.

‘Foi uma decisão tardia’, disse, acrescentando que custou a perceber que a manutenção da cena poderia ser fatal para a personagem. ‘Ela se sentiria traidora do cara que ela admira, que é o Lula.’

‘Em função dessa preocupação, tomei a decisão de, pela primeira vez em 20 anos, ter um filme prontinho e tirar um plano. É uma visão absolutamente soberana, que será explorada pela imprensa.’’



Rafael Cariello

‘Diretor corta cena que fala do hábito de Lula de beber’, copyright Folha de S. Paulo, 17/11/04

‘O cineasta Eduardo Coutinho, autor do documentário ‘Peões’, anunciou ontem ter tomado a ‘decisão tardia’ de cortar uma cena de seu filme em que uma colega de Luiz Inácio Lula da Silva nos tempos de sindicato afirma que o presidente, à época, ‘bebia muito’, a ponto ter sempre ‘uma garrafa’ no armário de sua sala no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP).

Coutinho disse que a decisão foi motivada pela preocupação de proteger ‘a personagem’, e não o ‘objeto, que é o Lula’. Segundo o cineasta, ela poderia ser vista pelo sindicato como uma ‘traidora de classe’. A declaração foi feita em debate no Espaço Unibanco de Cinema, em São Paulo, após apresentação de outro filme produzido nas eleições de 2002, ‘Entreatos’, de João Moreira Salles.

O filme de Coutinho conta as trajetórias de ex-companheiros do presidente, desde os tempos do sindicato, no final da década de 70, até os dias atuais. A personagem em questão, Luiza, era a responsável pela lanchonete do sindicato, na época das greves.

Desde que o tema dos supostos hábitos alcóolicos do presidente vieram à tona, após reportagem do jornal ‘The New York Times’, em meados deste ano, e da decisão do governo brasileiro de expulsar o correspondente responsável pelo texto -mais tarde revertida- que Coutinho vinha recebendo, segundo disse, pedidos para a retirada da cena.

‘Foi uma decisão tardia’, disse. ‘Custei a perceber que a manutenção da cena poderia ser fatal para a personagem.’ ‘Tem que proteger aquele que é desprotegido. Ela podia se tornar estigmatizada’, disse Coutinho, para quem o problema ético de um documentário ‘não é o que se pode fazer com o mundo; é o que não se pode fazer com o personagem’.

‘Em função dessa preocupação’, ele disse, ‘tomei a decisão de, pela primeira vez em 20 anos, ter um filme prontinho e tirar um plano’. ‘É uma visão absolutamente soberana, que vai ser explorada pela imprensa.’

O debate, que teve a presença de Moreira Salles, foi realizado após a pré-estréia de seu filme ‘Entreatos’. Ambos os documentários estréiam no final do mês.

O filme mostra bastidores da reta final da campanha e momentos em que muitas questões que marcariam seu governo até agora são discutidas por Lula. Apesar de expor supostas fragilidades do PT, no que depender da reação da platéia, o filme pode reforçar a empatia do presidente. A platéia riu e chegou a bater palmas para a informalidade do candidato.’