O semanário The Economist (11/8) duvidou da capacidade da infraestrutura brasileira em atender as demandas da Copa do Mundo em 2014 e dos Jogos Olímpicos em 2016. Dias depois, o governo brasileiro anunciou o maior plano de investimentos neste setor de base para toda a atividade econômica em qualquer parte da geografia do desenvolvimento contemporâneo. O Plano de Investimento em Logística, publicou o G1 da Globo, (15/8), promete investir R$ 133 bilhões em ferrovias e rodovias (com prioridade para as ferrovias), dos quais R$ 75,4 serão aplicados nos próximos cinco anos. O prazo final do programa é o ano de 2037.
Mas eles, do Economist,acreditam que não vale a pena investir aqui. E que falta muito para Dilma atrair a iniciativa privada para o setor básico de serviços públicos de infraestrutura. O financiamento do BNDES, para eles, “tende a comprimir os outros credores, e os títulos de infraestrutura, livres de taxação, têm baixa atração para o mercado por seu risco excessivo”. O velho liberalismo conservador de sempre. A iniciativa privada não está interessada no assunto. E sem capital privado não se faz investimento, acreditam eles. Há aqui uma avaliação tendenciosa no periódico: todos os projetos grandes em infraestrutura necessitam de financiamento estatal. Seja local ou estrangeiro. Como o dos chineses na África.
Planejamento estatal é uma heresia execrável para os conservadores articulistas anônimos do velho semanário britânico. Mesmo que o Brasil lidere no Índice de Desenvolvimento Humano nos BRICs, à frente da China, Índia e África do Sul, publicou a Carta Capital (2/11/2011), a infraestrutura empobrecida e desgastada reduz nossa capacidade de crescimento. O IDH é uma medida comparativa entre países que leva em conta riqueza, educação, expectativa de vida, natalidade e outros fatores como colonização, produto interno bruto, renda per capita e outras medidas de desenvolvimento com foco na qualidade de vida.
Entraves à produção industrial
A Carta Capital teve o cuidado de avisar que nossa posição cai para 97º lugar se ajustarmos o IDH à nossa extrema desigualdade social (IDHAD). E a China a cada ano aproxima-se mais e mais do Brasil no IDH. A curva do desenvolvimento desse índice ao longo dos anos apresenta uma elevação constante e firme no país asiático e uma tendência à estagnação no Brasil, que deve ter se aprofundado com o fraco desempenho do nosso país em 2012. A revista acabou com o ufanismo de muitos e trouxe-nos de volta à realidade: enquanto não melhorarmos nossos programas em educação, a tendência do país é ao declínio, quando comparada à China.
The Economist, o conservador jornal em formato de revista, apresentou números do Fórum Global Mundial (World Economic Forum) que situam a nossa infraestrutura em 104º lugar entre 142 países pesquisados. Atrás da China (69º), Índia (87º) e Rússia (100º). “Em recente visita a Santos, o maior porto do país, nosso correspondente assistiu homens a limpar os restos de um navio que explodiu carregando material químico – nos anos de 1970”, ironizou o abertamente adversário dos governos do PT. O Economist pratica o jornalismo cívico e assume posições editoriais abertamente. Não costuma ser simpático com os governos do PT, mas a reportagem foi bem elaborada e colocou questões pertinentes.
As estatísticas são baseadas em dados da ONU originados no PNDU, o programa das Nações Unidas para o desenvolvimento. São dados preocupantes e não podemos negar que nossas condições para abrigar competições internacionais de grande porte são precárias. E que a educação do nosso povo deixa muito a desejar. O governo atual, apesar de atento ao problema, encaminha projetos com soluções para os nossos sufocantes gargalos na infraestrutura de modo reativo. O planejamento só dá conta da administração do pessoal e do combate à pobreza absoluta. Nosso Plano de Aceleração do Crescimento está atrelado ao crescimento da China e só vai funcionar com o país a reboque da potência asiática, para a qual é fornecedor de matéria-prima. Perdemos a guerra pela superação de nossos entraves à produção industrial e à inovação tecnológica.
O intervencionismo de Estado na Ásia
A infraestrutura não foi privilegiada por nenhum governo do Brasil depois do restabelecimento da democracia. Depois dos dois Planos Nacionais de Desenvolvimento nos anos de 1970, nada mais foi feito no setor. Os planos do governo militar conseguiram fechar o ciclo de produção industrial no país em bases questionáveis. O endividamento que se seguiu derrubou as ambições do governo autoritário, já em fase de abertura democrática. O segundo PND foi nosso maior esforço em planejamento estatal em larga escala. Acabou mal, deixando dúvidas sobre nossa capacidade de intervir em larga escala na economia.
A BBC entrevistou o prefeito Eduardo Paes, do Rio, que na matéria (13/8) admitiu que “brasileiros não estão acostumados a planejar e cumprir prazos. Somos muito latinos nesse sentido”. A fala do alcaide do Rio esconde a verdade. Temos muita gente bem preparada e bastante experiência em planejamento econômico. Se o contrário fosse verdadeiro, não teríamos mais luz nas cidades, não conseguiríamos construir Itaipu, nem seríamos um dos maiores exportadores de aeronaves de médio porte no transporte aéreo regional e internacional. Os chineses e outros emergentes não conseguem acompanhar os padrões da Embraer, uma filha bem sucedida do planejamento estatal e que brilharia anos depois de sua criação, quando passou para a iniciativa privada.
Mas a coisa parou por aí. Fomos aniquilados pela competição dos países asiáticos, que sempre souberam utilizar o planejamento estatal em larga escala combinado com a iniciativa privada. A Ásia soube financiar seus megaprojetos aceitando os investimentos internacionais em setores-chave, como energia, transportes, habitação, instalações portuárias e aeroportos, sem comprometer as metas nacionais locais. O intervencionismo de Estado na Ásia soube combinar nacionalismo, capitalismo e planejamento estatal. Por isso, eles conseguiram impor seu modelo de desenvolvimento ao mundo.
A hipocrisia dos empresários
O Brasil começou a ampliar sua urbanização muito antes da Ásia. E tudo começou com investimento estrangeiro em infraestrutura, logo no início do século passado. Mas, num certo ponto de nossa história, passamos a acreditar na reserva de mercado quando se trata da base em que se escora o desenvolvimento econômico. Mas nossos equívocos não têm origem no “temperamento latino”, como quer acreditar o prefeito do Rio. Nossos planejadores de cidades e regiões estão acuados nas universidades – não há vagas para eles no mercado de trabalho. Planejar, para os liberais oportunistas e cegos ao futuro, é o maior atentado contra a economia. É colocar rédeas no mercado e impedir o progresso que vem com a livre concorrência. O simplismo dessa visão é embaraçoso, mas foi ardorosamente defendido pela reportagem do Economist.
Venho acompanhando com angústia a incapacidade dos políticos brasileiros em enxergar o futuro, impotentes voluntários diante das carências em investimentos em infraestrutura no Brasil. São uns imediatistas gananciosos, incapazes de compreender a insustentabilidade do modelo de desenvolvimento brasileiro, pautado pelo improviso e pela ganância cega. Neste único ponto, concordo com o semanário inglês: paramos no tempo quanto à renovação e ampliação de nossa infraestrutura, que cresceu dos anos de 1970 até o início da década de 1980. Quando começou seu longo declínio, até chegar ao cenário preocupante atual das nossas condições básicas de sustentação da atividade econômica e desenvolvimento territorial.
Nossa infraestrutura decadente comprometeu as conquistas sociais que vieram com a estabilização da economia e com os governos de Fernando Henrique, Lula da Silva e Dilma Rousseff. Mas os empresários ocidentais têm dois pesos diferentes para Brasil e China. Aos chineses é permitido o protecionismo e todo o tipo de conduta desviante do dogma liberal. O Brasil não tem o mesmo crédito. Não crescemos a taxas tão elevadas quanto a China e outros emergentes. Por isso, os investidores internacionais não admitem planejamento no Brasil, mas o aceitam na China. A hipocrisia cega dos empresários internacionais condena o Brasil ao atraso eterno. E nós estamos a conviver com isso muito bem.
Segregação geográfica
Há brechas perigosas no planejamento do atual governo. Nosso planejamento econômico não deve mirar apenas o combate à miséria absoluta. É preciso ir além. Ter competitividade, hoje, é aceitar a hegemonia absoluta das vantagens competitivas (que substituíram as comparativas) e copiar sem pudor produtos criados por outros em distintas partes do globo. Como a Samsung fez com a Apple. Temos que impor porosidade ao investimento tecnológico dos orientais no Brasil e fazer o que eles fizeram aos americanos e europeus: engenharia reversa e réplicas competitivas de inovações criadas alhures. Somos grandes o suficiente para passar por cima das decadentes leis de patentes, verdadeiros entraves ao desenvolvimento que devem ser ignorados. É a única e incerta forma de tentar recuperar a estrada perdida do Brasil para o desenvolvimento.
A implantação de linhas de montagem de iPads no país pode ser uma boa oportunidade para isso. Mas os chineses da Foxconn não aceitam nossas exigências de transferência de tecnologia. Eles sabem o que fizeram ao Ocidente e não vão abrir caminho para o Brasil repetir sua fórmula bem-sucedida. Não vão ceder o acesso à inovação por livre e espontânea vontade. O contrário é verdadeiro: vão lutar para garantir o acesso interminável aos nossos recursos naturais e às nossas matérias-primas e continuar a empurrar-nos para baixo.
Precisamos mirar o chão para extrair minério. Devemos contemplar nossos mares com os olhos postos no espelho d’água para explorar jazidas petrolíferas com investimentos de altíssimo valor agregado. E manter nossos olhos fixos na terra, para a soja, a produção de alimentos e outras commodities. É isto que o mundo espera de nós: cabeça baixa e trabalho de baixa qualificação. Não vai haver espaço para o Brasil entre as grandes economias industriais sem ousadia e coragem: o acesso ao desenvolvimento tecnológico tem que ser arrancado deles pela força, que só vem com a educação mínima da população. A miséria não vive só no corpo, mas ocupa a alma da maioria dos subjugados. E nós ainda estamos muito longe de ficar livres de nossos complexos de inferioridade. Isto se aplica também as classes médias e superiores. Se não viveram a discriminação étnica, sofreram a segregação geográfica. Mas a grande maioria sequer tomou conhecimento do fato.
Os liberais estão certos?
Os chineses estão a investir maciçamente em educação básica, enquanto o Brasil pretende colocar toda a população nas universidades. Enquanto perdemos tempo com essa utopia inútil, estaremos assinalando ao mundo que ainda não entendemos que primeiro precisamos cuidar da educação básica como cuidamos da miséria absoluta: com determinação, paixão e coragem. De nada vai adiantar trazer linhas de montagens de base tecnológica para o país sem gente preparada para gerir as mesmas. Infelizmente, agora só nos resta este caminho: a ampliação exponencial da infraestrutura e da educação. Mas há muitas dúvidas se vamos conseguir superar nosso atraso nestes setores.
Os chineses querem investir em portos, rodovias e ferrovias. Querem escoar nossas matérias-primas mais rápido para suas cadeias de produção. Também tentaram se aproveitar da crise do euro para comprar parte da dívida soberana da zona do euro, originada pelo maior fracasso mundial em desenvolvimento regional. É assim que devemos entender o fracasso e a crise da moeda europeia: um colossal erro em política de desenvolvimento territorial em larga escala. O maior da História mundial desde a queda de Roma, na antiguidade.
Nossas crianças já deveriam estar a prepara-se para os Jogos Olímpicos em espaços já construídos, mas onde estão eles? A questão, quem colocou foi a BBC (12/8). Será que o Economist e os liberais estão certos? Perdemos o caminho do desenvolvimento? O jornal inglês acredita que sim.
(Uma observação faz-se necessária: chamo o semanário britânico de jornal porque seus editores assim o definem. Grande parte da imprensa usa o termo “revista”. Mas falta compromisso com o entretenimento e a programação visual para que o periódico inglês seja chamado adequadamente de revista. Revistas têm também uma relação mais estreita com a literatura. Jornais, com a precisão e a rapidez da informação.)
Consumismo imprudente
Está o jornal inglês de má vontade conosco? Não creio que seja o caso. Seus anônimos colaboradores têm sido consistentes com seu conservadorismo retrógrado e com a oposição ao regime do Brasil depois que o PT subiu ao poder. Mas igualmente também têm reservas quanto à infraestrutura chinesa e deploram o papel do Estado na economia do país. O que há então, além da tradicional e vetusta posição editorial do Economist? A verdade é que o encantamento com o Brasil no exterior acabou. Era coisa superficial de investidores desesperados para fugir da crise iniciada em 2008 nos Estados Unidos e que se alastrou mundo afora. Agora, com todos mais sóbrios, as verdades vão aparecendo. As nossas e as deles.
Nós ainda não acordamos do prometido sonho de uma socialdemocracia de base popular que o PT nos prometeu. Estamos ainda ufanistas com a ascensão social de boa parte da população pobre nos últimos anos. Mas precisamos voltar rapidamente à realidade: a economia não foi bem em 2011, a nossa infraestrutura está deteriorada e o plano de investimentos em estradas e rodovias ainda é um projeto a enfrentar nossa lenta e pesada burocracia estatal e nossos políticos corrompidos e suas agendas mesquinhas, imediatistas e interesseiras. Não temos estratégia para inserir o país na economia de base tecnológica, pois nosso povo mal fala português e é um dos mais mal preparados do mundo em matemática – a base para o crescimento em tecnologias de comunicação.
Estamos a consumir demais para nossas possibilidades. Automóveis e produtos de alta tecnologia ainda são vistos como sinal de status social. A Forbes publicou um artigo impactante mostrando que no Brasil um carro de luxo pode custar três vezes mais que nos Estados Unidos. E mesmo assim o veículo vende bem no Brasil dos consumidores deslumbrados. A baixa educação e o consumismo imprudente, somados a infraestrutura decadente, demonstram que vai ser muito difícil para o Brasil afirmar-se como nação desenvolvida. Ainda estamos anos-luz distantes do desenvolvimento que nossos políticos andam a prometer irresponsavelmente.
Desenvolvimentismo precário
A Ásia demonstrou que crescimento com pobreza e exploração desmedida da mão de obra são compatíveis e ajudam a queimar etapas na direção ao desenvolvimento. A questão aqui envolve mais ética e moral que economia: queremos um desenvolvimento a qualquer custo? Vamos trabalhar 12 horas por dia para cumprir metas do governo? Não acredito nisso. Principalmente, quando vamos começar a ter vergonha de nossa imagem no exterior? Quando vamos parar de tentar inutilmente copiar hábitos perigosos de consumo e voltar à realidade de nosso povo mal preparado e deslumbrado como criança em loja de brinquedos?
Não somos “latinos”, como disse o senhor prefeito do Rio: somos muito mais e muito menos que isso: vivemos bem com a corrupção e a malandragem. Nossa cultura é primitiva e atrasada. Enquanto procuramos os culpados pelo “mensalão”, a corrupção continua a imperar no País dos coitadinhos do Emil Farhat. Por enquanto, desafortunadamente ainda somos “coitadinhos” e com “complexo de vira-latas“, como disse Nélson Rodrigues depois da Copa de 1958. O papel da imprensa tem sido irresponsável e superficial. Não fiscaliza o poder como devia porque é muito partidarizada e com isso perde o crédito.
Enfim, vamos ter a infraestrutura que precisamos para os Jogos, ou não? A pergunta é traiçoeira: podemos organizar competições de curta duração sem qualquer legado concreto para a população. Não queremos melhorias no conjunto de serviços públicos essenciais ao país apenas para os jogos. Queremos avanços para o país inteiro, e não somente para o Rio de Janeiro. A prefeitura da cidade perece mais interessada em entregar a ultima fronteira habitacional da cidade (Barra da Tijuca) à exploração do capital imobiliário do que acrescentar melhorias significativas nos serviços públicos essenciais para a população como um todo. Duvido que o Rio vá repetir Barcelona nos Jogos Olímpicos de 1992. A cidade catalã é uma das capitais mundiais do pensamento e ação em planejamento urbano.
A realidade é que o Brasil, e todos os países emergentes, tem grandes gargalos na infraestrutura. A imprensa pode ser mais ou menos tolerante com esses limites. No caso do jornal inglês, pode-se dizer que ele é relativamente imparcial quanto a esta questão. Tolera mais as deficiências da base em serviços públicos de infraestrutura de acordo com os resultados que uma determinada economia apresenta. São mais tolerantes com a China e outros novos poderes porque eles estão a pagar mais ao investidor que o nosso modesto e precário desenvolvimentismo de compromissos suspeitos.
Referências
>> FARHAT, Emil. O país dos coitadinhos, Companhia Editora Nacional, , SP,1966
>> RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. SP: Cia. das Letras, 1993. p.51-52: “Complexo de vira-latas”; Texto editado na revista Manchete esportiva, a 31 de maio de 1958, e republicado em À sombra das chuteiras imortais – crônicas de futebol, organização de Ruy Castro para a Cia. das Letras, São Paulo, 1993)
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]