Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nota falsa vira dinheiro na Apple

A Apple conseguiu uma vitória estrondosa sobre a Samsung na sexta-feira (24/8). O júri da cidade de San José, condado de Santa Clara, Califórnia, numa decisão relâmpago, reconheceu e acatou os argumentos da gigante americana. A empresa sul-coreana deverá pagar 1,051 bilhão de dólares à sua rival americana, publicou o iG Tecnologia (24/08). Outro julgamento aconteceu em Seul, Coréia do Sul, onde as duas empresas foram declaradas culpadas de copiar uma à outra. O júri local proibiu a venda de quatro produtos diferentes da Apple e mais o iPhone 4. Mas o mundo não prestou muita atenção no que aconteceu em Seul. A Apple triunfou na Califórnia porque soube usar impiedosamente todos os recursos de que dispunha para arrasar sua rival. Dentro e fora dos tribunais.

Um dos meios empregados pela Apple foi usar propaganda disfarçada de notícia nas principais publicações online do mercado que cobre a mídia digital, principalmente nos Estados Unidos. Empresas menores e o público em geral foram aberta e voluntariamente usados para defender os interesses da gigante americana. Este artigo explora uma das técnicas empregadas pela Apple para ganhar o domínio do mercado mundial da telefonia digital, apelando para todos os métodos possíveis para lograr seu intento final: aniquilar a concorrência em todo o planeta, inclusive manipular o mercado de publicações sobre tecnologias digitais.

Tudo começou com uma nota de redação não assinada e publicada no Globo.com (21/8). A nota apresentava o retrato de uma loura bonita e um título em letras bem grandes, com uma mensagem abertamente comprometida com a Apple. No resumo da notícia, a executiva-chefe do Yahoo Marissa Mayer afirma que quer padronizar a companhia com “um iPhone a cada funcionário” para trazer mais “coerência” à empresa. Uma “fonte anônima” teria aconselhado a CEO do Yahoo. A nota é tão curta que o máximo que se extrai dela é sua fonte. E não foi a revista de tecnologia BRG que publicou a notícia, como diz o pequeno comunicado.

A grande guerra não acabou

A página da BRG apenas encaminha o leitor para a fonte original, o pretensamente sério Business Insider. No jargão da web, páginas assim são chamadas de bounce (pulo, ou quique): são apenas pontes entre o leitor e a fonte original de alguma notícia. O leitor clica (ou “quica”) nela e é transportado até a matéria que originou a nota. Assim, pulei da BRG para o site Business Insider, a fonte original da notícia (21/8), que apareceu com um artigo maroto, com o mesmo título enganoso que o Globo.com só teve o trabalho de traduzir: “Marissa Mayer quer dar a cada empregado um iPhone”. Segundo o Business Insider, ela foi aconselhada pelo guru high tech Sriram Krishnan a obrigar os funcionários a escolher entre o Android ou a Apple:

“Chega de Blackberries como aparelhos oficiais no Yahoo. Cada um que consiga um Android ou iPhone. Despeça o pessoal de TI que discordar. Faça um upgrade da tecnologia de informação interna, desenvolvimento de sistemas e use ferramentas que as modernas iniciantes usam. É duro ampliar o assunto sem quebrar a confiabilidade, mas todo engenheiro do Yahoo lendo isso agora sabe do que estou a falar”, pontificou o “mestre”.

A história foi mal contada. Mais uma vez, um título chamativo engana, ou tenta enganar o leitor. Foi deixado espaço para o Android, no Yahoo. Mas a notícia foi propositalmente manipulada para beneficiar a Apple (e enterrar o BlackBerry). O Globo.com pôs uma nota de redação não assinada na web. Com que intenção? Fazer a conexão com a fonte original? Não havia link na página.

A Apple e a Samsung (que utiliza o Android, do Google), dominaram o mundo da telefonia digital móvel até sexta-feira (24/8), quando a Samsung foi fragorosamente derrotada. Mas a grande guerra na pequena mídia ainda não acabou: todos os usuários do Android estão agora em situação delicada: o preço de seu uso pode subir e anular as vantagens dos concorrentes da Apple.

Padronizar o Yahoo com Android ou iPhone

O Google fez um grande negócio em cima do software livre sem gastar quase nada. Desenvolveu o Android, utilizado na maioria dos smartphones do mundo, e agora colhe seus lucros. Sem entrar na guerra dos smartphones. Como dizem os bons estrategistas, as melhores vitórias são ganhas sem luta. O Google estava escondido no cenário de guerra armado pela Apple a Samsung. E é o próximo adversário da Apple, em sua cruzada para dominação do mercado mundial de telefonia digital. Vai ter que sair da sombra e lutar, ou diminuir os lucros e pagar mais taxas de licença à Apple. A Wired (24/8) afirmou que, depois da Samsung, o Google foi o grande perdedor do dia.

O Android tem 68,1% do mercado de sistemas operacionais para telefonia móvel, informou o site do IDC – Corporação Internacional de Dados – (08/08). O iOs, da Apple, responde por 16,9% do mercado. Se subtrairmos os 44% que só a Samsung traz através de seus celulares, a participação no mercado do sistema operacional do Google cai para 24,6%. Se a Apple conseguir paralisar as vendas da Samsung, seu sistema operacional ficará mais perto da liderança do Google.

O Yahoo não quis e nem pôde se dar ao luxo de escolher lados. Preferiu ficar em cima do muro. Quer apenas sobreviver e está disposto a tudo. Não quer começar litígios que não pode ganhar. Marissa Mayer sabe quem está por trás do Android. Ela trabalhou 13 anos no Google. Assim sendo, espaço foi deixado para o para o concorrente da Apple. Foi apenas isso o que aconteceu. Ela quer padronizar a empresa com Android ou iPhone. Nada mais. É isso o que informa o site Business Insider.

O caminho até você

A nota do Globo.com e o artigo no Business Insider informaram errado e de forma parcial. O Globo.com citou uma suposta fonte “anônima” que de anônima nada tinha: ela foi identificada pelo Business Insider que, por sua vez quase me engana, com seu marketing descarado a posar de “artigo”. Mas, como não se deve fazer concessões ao tempo quando o assunto é notícia séria, fiz uma leitura do artigo até seu o final. Só para receber a ferroada inesperada do vendedor: “O custo para o Yahoo poderia ser uns dois milhões de dólares ou menos – ninharia para uma companhia que tem bilhões a disposição. O benefício é imenso. O Yahoo estaria inovando para o futuro, e o BlackBerry não é parte do futuro. Eles (da RIM) são parte do passado que quietamente vai desaparecendo”, aconselhou o colaborador do Business Insider. Que, logo depois, acrescentou sem cerimônia: “Agora assistam: tudo sobre o iPhone 5”, dizia a última frase do texto.

Logo abaixo estava um filme de propaganda da Apple (que mobilizou o mundo inteiro e usou de todos os recursos para finalmente derrotar a Samsung). Apesar de muitos comentários na página, muitos leitores não perceberam que tudo não era nada além de mais um título chamativo para uma matéria feita para impulsionar vendas, com a srª executiva-chefe do Yahoo a fazer o papel de garota- propaganda da Apple. Não ficou bem. A moça é bem preparada e tem uma boa trajetória. Mas sua astúcia não passou despercebida pela nota do Globo.com na web.

As revistas de TI estão quase todas vendidas às grandes corporações tecnológicas da mídia digital. Suas páginas são meros balcões de anúncios. É cansativo percorrer as longas fileiras de anúncios de gadgets e outras bobagens supérfluas pagas para estar na publicação. Mas é assim que as quatro grandes (Google, Apple, Amazon e Facebook) encontram o caminho até você. Pode ter certeza, leitor. Mesmo apagando os cookies, desabilitando o Java-script, desativando todos os complementos e extensões, elas vão chegar até você. Custe o que custar.

O Google que se cuide

O site Business Insider não é exceção. Vende seu espaço para quem pagar mais. A matéria não passou de uma grande jogada de marketing que quase me enganou. Enganou o Globo.com, que publicou uma nota falsa e enganosa: nunca houve “fonte anônima”. O conselheiro de Marissa Mayer do Yahoo foi identificado no Business Insider: o sujeito é colaborador nessa revista. Quem quer que tenha escrito aquela nota no Globo.com, ou não leu o original em inglês até o final do artigo, ou também está a fazer propaganda gratuita para a Apple. Uma pequena nota de redação tem que estar comprometida com a exatidão com a mesma intensidade que um artigo assinado ou editorial.

Ando muito decepcionado com as principais publicações digitais internacionais que circulam na web: a Wired, a TechCrunch, a Mashable, a CNet News, a ArsTechnica (que já foi séria um dia), a AllThingsD (que caiu nas mãos de Rupert Murdoch) e a seção de TI do Business Insider, todas tornaram-se meras prateleiras de vendas de produtos. São fileiras e fileiras de “artigos” sobre as últimas novidades a venda. É só o que se vê em suas páginas e posts na web. Jornais, jornalistas e redações devem tomar mais cuidado com essas revistas. Abertamente, fazem propaganda para uma ou outra empresa ou marca. Reproduzi-las sem tradução rigorosa e total do texto pode levar a erros elementares e embaraçosos, como a “fonte anônima” do Globo.com. Nunca houve “fonte anônima”. O nome do informante é Sriram Krishnan e ele já foi identificado pelo Business Insider.

Elas publicam matérias atreladas a vendas de produtos como se fossem artigos sérios. Precisam apresentar novidades sensacionais. Como a loura bonita que quis um dia quis padronizar os celulares do Yahoo fazendo a propaganda da Apple. Uma nota falsa, com um link para uma matéria enganosa, ajudou a Apple a embolsar mais de um bilhão de dólares e destruir sua concorrência. Contei quase 20 títulos com a mesma propaganda disfarçada de notícia espalhada pelo mundo afora. O Google que se cuide.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]