Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Muito além do “mensalão”

O termo “mensalão” está em voga na mídia brasileira novamente. É possível que não existam jornais no Brasil que não estejam comentando a Ação Penal 470. Não pretendemos neste artigo exprimir se houve ou não crimes cometidos, nem é intenção discutir o cenário desse longo processo político/judicial, pois esse debate já foi estabelecido nos mais diversos órgãos da imprensa brasileira. Cito, por exemplo, como sugestão de análise/leitura, o trabalho do jornalista Washington Araújo “O BBB da TV Justiça”.

O objetivo deste artigo não são os personagens, ou seja, os atores envolvidos na ação político/judicial. O presente trabalho representa uma possibilidade de estarmos refletindo acerca da crise das instituições democráticas envolvidas, ou melhor, do modelo institucional que, em tese, deveria dar conta de obstaculizar a formação de esquemas com interesse em tirar proveito dos espaços e recursos públicos.

Atualmente, a tarefa de investigar e condenar as violações ao patrimônio público está a cargo do Poder Judiciário. No entanto, tal estrutura geral parece condenada ao fracasso devido ao perigo da banalização (mesmo mal que corrói a política brasileira). Explico: o perigo para o Judiciário é que a banalização privilegie um corpo de conhecimento teórico e prático de ações específicas, muitas vezes favorecendo interesses particulares e reduzindo a capacidade de imaginar ou conceber um determinado nível de preocupação e responsabilidade com as questões de interesse público. Ou seja, essa perspectiva de justiça moderna (midiática e vulgarizada) corre o risco de distorcer e simplificar eventos e circunstâncias que estão longe de serem simples.

A “infalibilidade científica”

No mesmo sentido, outro perigo que podemos apontar em relação ao Poder Judiciário é o presentismo (destaque para a leitura da entrevista Graphic Interface), esse fenômeno apontado no texto sugere que estamos vivendo uma era de “descasos”, porém o principal descaso é com o próprio tempo/tempo próprio. Nesse sentido, abre-se mão das próprias decisões em nome da interferência das instituições que devem ditar os rumos de como as coisas devem ser.

O fenômeno apontado acima fica mais claro quando observamos as famílias que estão deixando a cargo da escola a responsabilidade pela educação dos filhos alegando falta de tempo. Outro exemplo são os casais que consideram mais importante a opinião de um “especialista” do que o próprio diálogo entre si. Casos como os mencionados acima estão se tornando cada vez mais comuns. Paralelamente a isso surgem os mais diversos distúrbios de atenção e novas prescrições de medicamentos prometendo a longevidade e a cura imediata. Na mesma corrente presentista, o Judiciário acena para regular as mais diversas questões, de forma que tudo tenha que passar pelo crivo jurídico.

Nessa mesma linha de raciocínio, as diversas ciências começam a influenciar diretamente o comportamento humano numa lógica de que a sociedade se organiza resumidamente da seguinte forma: o papel da população é a produção de bens de consumo; no entanto, dentre as pessoas, há aquelas que devem regular a produção e essa regulação passou a ser também do círculo de relações daqueles responsáveis pela produção. De tudo isto resta uma convivência brutal de concorrência e seletividade onde o “mais forte” deve sobreviver. Assim, nada foge à “infalibilidade científica” da organização da sociedade em que cada pessoa cumpre o seu papel e volta “satisfeito” para casa seguro de que cumpriu o seu dever.

As brechas na legislação

O presentismo não é apenas um problema jurídico; na verdade, é uma questão que parte da interferência das instituições na vida dos indivíduos. Nesse sentido, é a prova real de que cada vez mais é o ambiente externo que regula e tem a função de resolver as questões ambivalentes (o que causa um enfraquecimento considerável no debate sobre o comportamento público em relação ao comportamento privado ‘ver aqui’). A tentativa de capturar e controlar a ambivalência das opiniões está comprimida ao regramento do politicamente correto que encobre a realidade, principalmente, dos preconceitos que devem ser “banidos” não por serem considerados falsos, mas por funcionaram como “meias verdades” e meias verdades são perniciosas ao status da sociedade atual.

Mas o que tudo isso tem haver com o “mensalão”? Num primeiro momento, pode parecer que nada tenha relação, porém quando paramos para pensar que há um sistema de gerenciamento estatal que se apresenta como infalível, mas que dá condições a ações como a do famigerado julgamento do “mensalão”, perguntamos: que margens são estabelecidas para que não haja uma banalização da corrupção? Até o momento, a exposição do “mensalão” no STF está servindo para mostrar que o principal pilar da justiça brasileira está se espelhando no mesmo cenário de grande parte do setor político brasileiro, ou seja, da reificação/coisificação dos interesses públicos. Nesse cenário comprometido com o capital privado, só os interesses particulares tendem a sobreviver pelas famosas brechas na legislação.

As brechas da lei tornam-se cada vez mais comuns e provam que o burocratismo sozinho não dá conta de apresentar soluções aos problemas públicos. As brechas na legislação estão tão vulgarizadas que uma estudante de Direito ganhou visibilidade na mídia brasileira nos últimos dias com esse argumento (ver aqui). Como sugestão para tentar sair desse estado presentista do completo burocratismo (ao menos por um momento) aproveito o espaço para compartilhar um vídeo com a quarta parte da entrevista de Patch Adams ao programa Roda Viva (ver aqui).

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[Marlos Mello é jornalista e psicólogo, Porto Alegre, RS]