‘O papel da imprensa nesta crise política, como em outras tantas vezes, é crucial, e em vários momentos nestes últimos dias diversos atores de mais este lance de nossa dramática história política recente se referiram a ele. O próprio presidente Lula, quando, saído do torpor que dominou todo o governo nos dias após as primeiras denúncias, fez o já famoso discurso do ‘cortar na carne’ – por enquanto só cortou a carne dos protegidos do Roberto Jefferson, transformado de ‘parceiro’ em inimigo número um – disse que as denúncias da imprensa são fundamentais na democracia.
O discurso, porém, pelo que se viu ontem na discussão sobre a CPI dos Correios, ficou apenas nisso, um palavrório vazio. Enquanto discutiam com o PT e a base aliada do governo a composição da CPI dos Correios, o líder do PFL, deputado Rodrigo Maia, me dizia que se, porventura, o rolo compressor do governo impusesse com sua maioria, a nomeação do presidente e do relator da CPI, a oposição irá se apoiar na imprensa para denunciar cada manobra governista que tentasse inviabilizar as investigações.
Na quarta-feira, no encerramento de um seminário da Associação Nacional de Jornais (ANJ), com o apoio da Unesco, sobre liberdade de imprensa, participei de um debate em Brasília no qual, utilizando pesquisa de notícias de jornais e revistas nos últimos anos, chamei a atenção para a ameaça que representa hoje para a liberdade de expressão a censura prévia que a Justiça pode decretar, com base em um dispositivo constitucional que o próprio presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Edson Vidigal, jornalista de profissão e coração presente ao encontro, disse que não deveria existir. Foi com base nesse dispositivo que o livro de Fernando Morais foi retirado das livrarias, e que a TV Globo foi inicialmente proibida de divulgar a fita mostrando a corrupção de vereadores em Rondônia.
Lembrei que a imprensa enfrenta no mundo uma permanente batalha de credibilidade, que volta e meia é perdida. Embora aqui no Brasil ainda apareça entre as instituições mais respeitadas pela opinião pública, há um permanente desconforto na relação da imprensa com a sociedade.
Se de um lado ela ainda depende da imprensa para ter seus direitos respeitados e para que denúncias sejam investigadas pelos governos, de outro há questionamentos persistentes quanto à irresponsabilidade do noticiário, sobre as acusações veiculadas – o que muitos classificam de denuncismo- ou quanto ao superficialismo do noticiário.
No Brasil, há uma relação de amor e ódio típica de um país que ainda não tem as instituições solidificadas, e onde a Justiça não funciona plenamente. A imprensa aqui se transforma no quarto poder, por uma desfunção dos demais poderes. Feitas essas considerações, ressaltei uma recente pesquisa realizada pelo Ibope que mostra que a confiança que a população tem nos jornais subiu de 65% em setembro de 2003 para 74% em maio deste ano, marcando a melhor colocação dos jornais nos últimos 16 anos. Os jornais só perdem em credibilidade para os médicos (85%) e as Forças Armadas (75%), ficando na frente do rádio (64%) e da televisão (61%), numa relação de 17 instituições.
Momentos antes, em conversa com um pequeno grupo convidado pelo presidente da ANJ, Nelson Sirotsky, o ministro Antonio Palocci havia ressaltado o papel fundamental da imprensa mesmo nas críticas ao governo. Lembrou que quando era prefeito de Ribeirão Preto, aprendeu a lidar com o que chamou de ‘implicâncias’ da imprensa local, lembrando um episódio que ele mesmo classifica de engraçado: ao lançar um dos primeiros programas de Bolsa Escola do país, começou com 700 de um universo de duas mil famílias que seriam beneficiadas. A manchete do jornal de oposição foi ‘1.300 famílias ficam sem a Bolsa Escola’.
Palocci, no entanto, reconheceu que o papel da imprensa não é apoiar os governos, mas representar os anseios da sociedade, e disse que considerava uma ajuda fundamental as denúncias de irregularidades feitas pela imprensa. Admitiu até que, ao cobrar do governo contenção dos gastos públicos, por exemplo, a imprensa ajuda a manter viva a chama do equilíbrio fiscal, que ele considera indispensável para a credibilidade da economia.
Ainda sob o impacto da recente crise política, Palocci insistia que o país precisa ter políticas econômicas acima dos partidos, políticas que deveriam ser ‘do país’. Para ele, a pressão da sociedade, refletida pela imprensa, faz com que os governos sintam seus limites e se ajustem à vontade popular.
O ministro Antonio Palocci foi outro que aderiu ao ideograma chinês e viu uma oportunidade nessa crise de estabelecer regras permanentes para a política econômica com um horizonte de dez anos. Se estabelecermos metas permanentes de longo prazo de redução da inflação, superávits primários, redução de gastos públicos, teremos condições de reduzir os juros e manter a economia em expansão também a longo prazo, ressaltou Palocci. Lembrou que não adianta nada termos políticas sociais aparentemente generosas se elas literalmente quebram as finanças do país.
Ele certamente vai travar mais uma batalha dentro do PT: a esquerda do partido também vê nessa crise uma oportunidade para fazer uma inflexão da política econômica, reduzindo o superávit fiscal e relaxando as metas de inflação para ganhar mais espaço para políticas sociais.
Os piores índices da pesquisa do Ibope ficaram com os políticos, que não têm a confiança de 87% dos entrevistados, os partidos (85%), a Câmara dos Deputados (74%) e o Senado (71%). O que torna a presente crise mais grave ainda, e o papel da imprensa mais delicado.’
METAJORNALISMO
Arthur Dapieve
‘O ‘trausente’’, copyright O Globo, 10/06/2005
‘Daí, vocês não vêem. Sorte sua. Aqui, escrevo sempre de bermudas, quase sempre sem camisa, mesmo quando o ar condicionado está no máximo. Acho que meu termostato friulano veio regulado de fábrica para temperaturas mais baixas. As pernas de fora têm sido, nas últimas semanas, deformadas por mosquitos de todos os calibres. Não sei onde vocês moram, mas aguardo o retorno triunfal da dengue a Laranjeiras para breve.
No parágrafo acima, descrevi meus hábitos para a hora de escrever. Lamento frustrá-los. Nada muito excêntrico, admito. São, tão-só, fruto da necessidade de paz e bem-estar, assim como fechar a porta para reter o frio e deter as crianças e demais animais de pequeno porte, exceto os pernilongos… Ah, escrevo escutando música direta, indireta ou inconscientemente relacionada ao tema. Neste momento, ainda escuto System of a Down.
‘Você tem algum hábito estranho na hora de escrever?’ é uma das perguntas que jornalistas, escritores e afins mais ouvem. Tendo repetido a verdade e testemunhado tantas expressões frustradas, concluí que a única resposta satisfatória para os entrevistadores seria: ‘Claro que sim! Escrevo untado em óleo de dendê, vestindo roupa de neoprene e pés-de-pato. Antes, sangro um carneiro sobre o teclado, consulto as suas vísceras e faço um círculo de sal grosso em torno da mesa da computador. Se não for assim, o texto não sai.’
Tal expectativa, creio, se deve à idéia de que escrever é troço misterioso, do outro mundo, unção dos céus, maluquice, gênio. Lenda que muitos de nós gostam de espalhar a seu próprio respeito. Escrever, porém, é um trabalho. Não digo ‘como qualquer outro’. É diferente de fazer pães, vender sapatos ou ser gerente de banco, atividades de meus avôs e pai. O meu negócio é contar boas histórias, reais ou ficcionais. Basicamente isso.
Quem escreve, menos que manias, tem é truques para vender melhor seu peixe. A cada ponto final, por exemplo, clico avidamente em ‘localizar’ e saio procurando palavras, radicais ou sufixos que tendo a repetir ou que noto ter repetido circunstancialmente. Sempre procuro ‘-mente’, sufixo repetido, leiam as linhas anteriores, a cada advérbio de modo. Fica feio tal eco, além de, no caso do texto para jornal, levantar a bola da mentira em seu seio. Tese minha: nunca li o demodê Lair Ribeiro e sua neurolingüística.
Tento ficar atento, também, à troca de gêneros. Não é incomum escrever ‘a mar’ ou ‘o flor’, como se eu tivesse sido alfabetizado em outro idioma. Quando releio e pego um erro desses, lembro-me da dublagem do sargento Schultz, do velho seriado de TV ‘Guerra, sombra e água fresca’, e fico rindo sozinho. Não sei por que isso se repete, texto após texto.
Repilo qualquer menção a reflexos de vidas passadas. Como acreditar em vidas passadas se não estou seguro nem quanto à vida presente? Digressiono, digressiono.
Meu cacoete mais exótico diz respeito à palavra ‘transeunte’, adjetivo e substantivo comum aos dois gêneros. Vocês clicam aí no ‘Houaiss’ eletrônico e lêem ‘que não permanece; passageiro, transitivo, transitório (…) que não deixa vestígios (…) que está de passagem ou temporariamente em algum lugar (diz-se de pessoa), que transita a pé por algum lugar (diz-se de pessoa), que da causa se comunica ao efeito (…) pessoa transeunte.’
Pois bem. Da minha mais tenra e alfabetizada infância até vida profissional adentro, acreditei piamente que a palavra era ‘trausente’. Tinha tudo a ver com os contextos em que eu a lia nos jornais: ‘Os t. não esboçaram reação alguma diante do assalto à velhinha cega’, ‘os t. se aglomeraram em torno dos aparelhos de TV nas lojas de eletrodomésticos’. Aquelas pessoas todas estavam em trânsito, ausentes, anestesiadas, bestificadas.
Erro de leitura, ato falho ou licença poética, não importa: a palavra certa é ‘transeunte’ e eu tenho sempre de ficar atento quando a escrevo. Uso correto: ‘Os governos são transeuntes, mas deixam marcas profundas’. Hoje a palavra caiu em desuso nos jornais, que preferem ‘passante’ quando se referem à pessoa. Gosto também de ‘circunstante’: diz mais ou menos a mesma coisa e acrescenta a idéia de circunstância.
Na verdade, e essa é outra expressão que em tese se deve evitar usar nestas páginas porque pressupõe o ‘na mentira’, todo esse papo pintou na minha cabeça porque eu escrevi o sobrenome de Warren Zevon errado na coluna passada. Logo o autor de ‘Desperados under the eaves’ e ‘Excitable boy’… Escrevi ‘Zeavon’, contaminado pela fonética.
Minha obrigação era estar mais ligado no lance, pois quase dei exatamente este vacilo no passado. O autor de um verso porreta como ‘as árvores não parecem ladrões crucificados?’ não merece o lapso, ninguém merece. Passei a semana me martirizando. Devia estar ‘trausente’ quando revisei o texto. Volte a descansar em paz, Mr. Zevon.
***
A charmosíssima Anne Bancroft, estrela de um de meus filmes favoritos, ‘A primeira noite de um homem’, morreu de câncer no útero na noite de segunda-feira, aos 73 anos, em Nova York. Até para este descrente aqui, mais do que nunca os versos de Paul Simon na trilha do filmaço de Mike Nichols fazem sentido, senão como prece, como desejo sincero: ‘Jesus te ama mais do que tu irás saber/ Deus te abençoe, por favor, Mrs. Robinson/ O céu guarda lugar para aqueles que rezam.’’
A DEATH IN BRAZIL
Nelson Motta
‘Além da imaginação ‘, copyright Folha de S. Paulo, 10/06/2005
‘Denunciado pelo irmão, cuja mulher teria seduzido, o presidente da Republica é investigado pelo Congresso e a nação estarrecida e eletrizada descobre que ele é o chefão da quadrilha e que o seu tesoureiro de campanha é o operador-chefe de uma rede de corrupção e achaques que estava tomando de assalto as empresas e os cofres públicos. O presidente acaba removido do cargo pelo Congresso e pela pressão popular. O tesoureiro, que teria amealhado uma bolada de US$ 1 bilhão para a quadrilha, é preso, cumpre dois anos numa prisão de segurança mínima, consegue a liberdade condicional e é encontrado assassinado com a amante em sua casa de praia.
Familiar, não é ? Pois é esse o sensacional enredo do romance de crime e mistério do escritor inglês Peter Robb, ‘A Death in Brazil – A Book of Omissions’ (Uma morte no Brasil – um livro de omissões), recebido com entusiasmo pela critica e com ótima resposta de público na Inglaterra. Eles não sabem que tudo é verdade nesse ‘romance investigativo’ sobre a saga trágica de Pedro e Fernando Collor e a morte de PC Farias, que são os personagens principais do livro, com seus próprios nomes.
O autor conhece bem o Brasil, para onde viaja desde os anos 80, deve falar bem português e construiu um espetacular enredo policial, que tem como ambiente uma grande crise politica em um grande país tropical abençoado por Deus, bonito por natureza e que, além de rico e altamente corrupto, é hipersexualizado. O livro começa logo com o narrador -um inglês que visita o Brasil-, com uma faca no pescoço, nas mãos de um assaltante que invadiu o seu apartamento em Copacabana.
Por mais que o autor conheça a obra de Gilberto Freyre e cite Machado de Assis, por mais fiel que seja aos fatos e personagens, nesse livro brilhante e envolvente, em muitos momentos, o que conhecemos como realidade parece inverossímil até como ficção.’