Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Barbárie ou civilização?

A justiça midiática, consoante parte da doutrina, seria regida por uma peculiar forma de interpretação do Direito chamada de interpretação ingênua (eu diria, não tão ingênua), que se caracteriza (conforme Monzón, La violencia, los medios y la valoración jurídica, 2005, p. 25 e ss.) pelo seguinte: (a) reducionismo e vaguidade do que é noticiado, (b) atribuição à ineficiência da Justiça como causa do aumento da insegurança e da corrupção, (c) processos e julgamentos paralelos com base em estereótipos, (d) ausência de neutralidade ou objetividade, (e) imposição de sanções morais (para satisfazer o instinto da vingança), (f) duras críticas contra o sistema legal de justiça (ou seja: deslegitimação contínua da Justiça oficial) e (g) difusão de uma cultura jurídica peculiar (externa) que constitui a base de uma construção da realidade fundada em princípios e valores (sobre o crime, o processo, a justiça etc.) muitas vezes completamente antagônicos com o modelo oficial.

O valor das garantias do devido processo legal, por exemplo, é frequentemente contestado pelo populismo penal midiático. São duas visões opostas: para os juristas, elas são de aplicação universal; já para o jornalismo populista, são de aplicação restrita e particular. O populismo penal midiático concorda e, às vezes, até defende impressionantes retrocessos na concepção do Direito Penal a etapas primitivas da civilização, tais como o exercício da vingança privada ou aplicação de penas desproporcionais, ou ainda a inobservância das garantias fundamentais.

O populismo midiático, nesse sentido, é bastante pródigo em sugerir ou afirmar coisas (do ponto de vista jurídico) totalmente disparatadas. Em um caso em que um suspeito não quis falar nada para uma CPI (direito ao silêncio) um aloprado editorial do Correio Braziliense (23/5/12, p. 14) afirmou: “A cidadania levou ontem (frente ao exercício do direito ao silêncio pelo acusado) um tapa no rosto e se descobriu impotente, abandonada.”

Omesmo erro

A linguagem é terrorífica. Coloca toda população na posição de vítima. O exercício do direito constitucional ao silêncio constitui (para esse populismo midiático) uma grave “ofensa”, um “mal” que deve ser extirpado do ordenamento jurídico brasileiro. Coisa do diabo, e não de Deus (consoante Maffesoli). Aliás, a proposta final do editorial foi a seguinte: “É hora de colocar uma vírgula no direito que garante o silêncio: se o crime é contra o bem público, o acusado não pode se calar impunemente ante a autoridade. Elementar.” Extirpação, pura e simples, da garantia, para alguns casos, embora constitua cláusula pétrea no nosso sistema constitucional. Do ponto de vista jurídico, aberração maior é impossível.

Todos nós queremos a proteção do Estado (essa é a postulação do populismo midiático), que esquece que também não podemos nunca desprezar a proteção contra o Estado, que constitui fonte de muitos abusos e arbitrariedades. Em nome do eficientismo penal (defendido pelo populismo midiático) não podemos abandonar as garantias constitucionais que configuram termômetros de civilidade. As duas coisas, aliás, não são incompatíveis. O Estado conta com mil maneiras racionais e válidas de provar os delitos organizados dos poderosos econômicos, que não podem mesmo ficar impunes. Mas não podemos abandonar o velho e bom discurso formulado por Beccaria de que o direito penal constitui também garantia do réu contra os abusos do Estado.

O populismo midiático se equivoca redondamente quando, para reivindicar mais eficiência da persecução penal, sugere o corte dos direitos constitucionais. Não se pode cobrir um corpo descobrindo outro, quando há cobertor para os dois. A proteção do Estado (punindo os criminosos) é fundamental, tanto quanto a proteção contra o Estado. O populismo penal midiático comete o mesmo erro dos nazistas, assim como de alguns criminólogos críticos que ignoraram a função protetiva (e civilizatória) dos direitos e das garantias. O populismo penal midiático deve resolver, de uma vez por todas, seu dilema entre a barbárie e a civilização.

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[Luiz Flávio Gomes é jurista e cientista criminal; www.professorlfg.com.br]